O Retrato - Capítulo III - continuação
"- Olha a minha sobrinha favorita! - cumprimentou o tio João quando chegou.
- Isso é ironia. Dizes sempre o mesmo à minha irmã. – respondeu ela, imitando um tom afectado.
- Lá estás tu, sempre séria. Ninguém pode brincar contigo.
Novamente, o empregado da pastelaria veio atender aquela mesa. Depois do pedido feito, João olhou para a sobrinha, agora, com ar mais sério.
- Passa-se alguma coisa contigo? - inquiriu.
Ela não respondeu de imediato. Fitou por momentos o chão decorado da loja e só depois fixou o olhar no tio.
- Estou confusa, tio.
- Com o quê?
- Sabes aquele meu amigo, o Luís... - começou, mas João interrompeu-a, sorrindo.
- Bem me parecia que aquilo não era só amizade.
- Não é nada disso. Dá para me ouvires? - pediu e, após receber um aceno de confirmação, continuou - Bem, sabes que ele está a estagiar em Londres como, aliás, sempre foi o sonho dele.
- Sim, tu contaste-me.
- Pois. Ele quer que no próximo ano eu vá para lá em Erasmus. - ao dizer isto, não conseguiu disfarçar um certo entusiasmo.
- E tu não sabes se hás-de aceitar ou não. Estou certo? – perguntou ele num tom neutro.
Ela olhou-o nos olhos tentando, desesperadamente, descobrir o que estava ele a pensar.
- Sim. - acabou por confessar.
Fez-se um silêncio. João estava pensativo. Marta nervosa brincava com um guardanapo de papel. Finalmente o gelo foi quebrado:
- Linda, compreendo que estejas com medo. E acredita que ao pedires-me este conselho me colocaste numa situação difícil.
Imagina que sabias que tudo o que fizesses ia correr bem. Qual seria a graça? Deixavas de ter expectativas. Deixavas de sonhar. Se assim fosse, a vida perdia todo o interesse.
Mas felizmente a vida não é assim. Ela não nos pertence. Não somos senhores de escrever o nosso próprio destino. E é isso que torna cada dia tão especial, simplesmente pelo facto de não sabermos como será o próximo. Não tenhas medo de viver, de te aventurares, de tentares a felicidade.
Se a ideia te agrada, porque não tentar? Se correr bem, fantástico. Se correr mal, estarei cá para te apoiar.
Marta sentiu um incrível alívio no peito. Era como se o ar, de repente, voltasse a ser respirável. Olhou o tio com todo o carinho que tinha. Sabia que podia contar com ele sempre que precisasse. Sabia que ouviria um conselho ou uma palavra amiga sempre que o resto do mundo se calasse. Sorriu para si e prometeu, no seu íntimo, que ainda o havia de orgulhar muito. Um dia seria uma boa veterinária, tal como ele."
(in O Retrato - Autora: Luzia Gomes - Corpos Editora)
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