William Shakespeare : A Comédia dos Erros – Ato I - Cena II

Cena II

(O mercado. Entram Antífolo de Siracusa, Drômio de Siracusa e um mercador.)

Mercador
Deveis dizer, por isso, que nascestes em Epidamno, para vos livrardes de ficar com os bens todos confiscados. Ainda hoje, um mercador de Siracusa foi preso, por haver desembarcado, e, porque a vida resgatar não pôde, há de, acorde com a lei desta cidade, vir a morrer, antes que o sol no ocaso fatigado se deite. Eis o dinheiro que em confiança me destes, ainda há pouco.

Antífolo de Siracusa
Drômio, leva-o ao Centauro, onde pousamos, e lá te deixa estar até que eu chegue. Para o jantar ainda falta uma hora; verei, enquanto espero, os mercadores, estudarei os usos da cidade e observarei seus belos edifícios Depois, de volta para a hospedaria, pretendo repousar, que a longa viagem me deixou lasso e exausto. Vai depressa.

Drômio de Siracusa
Muita gente talvez tomasse à risca quanto dizeis e se pusesse ao fresco carregando tesouro tão opimo.

(Sai.)

Antífolo de Siracusa
É um criado alegre, meu senhor, que muitas vezes, quando estou cheio de cuidados e de melancolia, me dissipa todo o humor com seus ditos prazenteiros. Ireis passear comigo na cidade, para depois jantarmos na estalagem?

Mercador
Não, meu caro senhor; fui convidado por certos mercadores, com os quais conto realizar bons negócios. Desculpai-me. Mas às cinco horas nos encontraremos no mercado, se a idéia vos agrada, podendo, após, fazer-vos companhia até a hora de deitar. Negócio urgente me força a vos deixar por uns instantes.

Antífolo de Siracusa
Então até mais tarde; sem destino vou distrair-me a ver vossa cidade.

Mercador
Ao vosso bem-estar vos deixo entregue.

(Sai.)

Antífolo de Siracusa
Quem ao meu bem-estar me deixa entregue, faz entrega de todo em todo inútil, pois é do que careço. Sou no mundo como uma gota de água que à procura de outra gota no oceano se encontrasse, e que, ao cair ali, toda desejos de achar a companheira, desaparece na busca, sem ser vista. Assim, comigo: para um irmão e minha mãe achar - pobre de mim! - me perco a procurá-los.

(Entra Drômio de Éfeso.)

Eis outra vez meu almanaque vivo. Que é que há? Por que voltaste assim tão cedo?

Drômio de Éfeso
Tão cedo? Perguntai por que tão tarde. O capão já tostou; caiu do espeto, de tanto ser virada, a bacorinha; já o relógio da torre deu doze horas e a patroa me deu uma no rosto; quente ela está por causa da comida que esfriou; a comida ficou fria por não terdes voltado para casa; não voltaste porque não tendes fome; não tendes fome por comido haverdes. Nós, porém, a jejuar nos encontramos; por vossa culpa em penitência andamos.

Antífolo de Siracusa
Detende esses pulmões, senhor: dizei-me onde está minha bolsa com o dinheiro.

Drômio de Éfeso
Oh! Aqueles seis pences que me destes na última quarta-feira com o encargo de pagar o conserto do rabicho da patroa? Ao seleiro os dei, senhor; não costumo furtar coisa nenhuma.

Antífolo de Siracusa
Não estou hoje para brincadeiras. Deixa de lado as graças e me dize, sem subterfúgios, onde está o dinheiro. Sendo nós estrangeiros na cidade, como te mostras tão remisso, ousando separar-te de soma tão vultosa?

Drômio de Éfeso
Por obséquio, senhor, deixai as graças para a hora do jantar. Vim procurar-vos como correio, de ordem da senhora; se sem vós eu voltar, é coisa certa meter-me na correia, que ela as vossas faltas há de gravar na minha pele. Penso que deveríeis ter no estômago, como eu, relógio certo, para a casa vos chamar, sem haver necessidade de nenhum mensageiro ou de recados.

Antífolo de Siracusa
Pára com isso, Drômio; essas graçolas vêm fora de propósito. Reserva-as para hora mais alegre. Onde puseste o ouro que te confiei?

Drômio de Éfeso
A mim, senhor? Não sei de ouro nenhum que me entregásseis.

Antífolo de Siracusa
Vamos, senhor velhaco, acabai logo com essas maluquices, e dizei-me de que modo a incumbência foi cumprida.

Drômio de Éfeso
Minha incumbência constitui apenas em vos vir procurar até o mercado e vos levar, senhor, a casa, à Fênix, para jantar. Por vós já estão à espera minha senhora e a irmã.

Antífolo de Siracusa
Ora, tão certo como eu ser batizado, me responde onde puseste a salvo o meu dinheiro; se não, te quebrarei essa cabeça jocosa, que só cuida de pilhérias, quando me acho indisposto. Dize logo: em que lugar puseste os meus mil marcos?

Drômio de Éfeso
Marcas vossas eu tenho na cabeça; nos ombros tenho marcas da patroa; mas, reunidas, mil marcos não perfazem. Se forçado eu me visse a restituí-las a Vossa Senhoria, é bem possível que não as recebêsseis com paciência.

Antífolo de Siracusa
Tua patroa? Que patroa, escravo?

Drômio de Éfeso
A senhora de Vossa Senhoria, minha patroa da estalagem Fênix, a mesma que jejua à vossa espera, para jantar e que vos pede, instante, irdes jantar com ela neste instante.

Antífolo de Siracusa
Como! Zombas de mim na minha frente, conquanto eu to proibisse? Então toma isto.

(Bate-lhe.)

Drômio de Éfeso
Senhor, que pretendeis? A mão detende, por piedade! Se não, dos pés me valho.

(Sai.)

Antífolo de Siracusa
Sou capaz de jurar que esse malandro foi logrado e perdeu todo o dinheiro. Dizem que esta cidade abunda em fraudes, em escamoteadores astuciosos, feiticeiros noturnos que os sentidos confundem das pessoas, negras bruxas que matam a alma e o corpo informe deixam, charlatães convincentes, disfarçados embusteiros e muitos pecadores quejandos. Se tudo isso for verdade, não ficarei aqui. Vou ao Centauro dar outra coça nesse bandoleiro; temo que haja perdido o meu dinheiro.

(Sai.)

Submited by

Thursday, May 7, 2009 - 23:17

Poesia Consagrada :

No votes yet

Shakespeare

Shakespeare's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 13 years 22 weeks ago
Joined: 10/14/2008
Posts:
Points: 410

Add comment

Login to post comments

other contents of Shakespeare

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia Consagrada/General Sigh No More 0 3.798 07/12/2011 - 01:35 English
Poesia Consagrada/General Shall I compare thee to a summer's day? (Sonnet 18) 0 3.813 07/12/2011 - 01:34 English
Poesia Consagrada/General Orpheus with his Lute Made Trees 0 3.010 07/12/2011 - 01:33 English
Poesia Consagrada/General Orpheus 0 3.652 07/12/2011 - 01:32 English
Poesia Consagrada/General O Never Say That I Was False of Heart 0 3.966 07/12/2011 - 01:31 English
Poesia Consagrada/General Now, my co-mates and brothers in exile 0 2.345 07/12/2011 - 01:30 English
Poesia Consagrada/General Not marble nor the guilded monuments (Sonnet 55) 0 2.517 07/12/2011 - 01:29 English
Poesia Consagrada/General Not from the stars do I my judgment pluck (Sonnet 14) 0 1.928 07/12/2011 - 01:28 English
Poesia Consagrada/General My mistress' eyes are nothing like the sun (Sonnet 130) 0 2.249 07/12/2011 - 01:27 English
Poesia Consagrada/Love Love 0 2.040 07/12/2011 - 01:26 English
Poesia Consagrada/General Juliet's Soliloquy 0 1.705 07/12/2011 - 01:25 English
Poesia Consagrada/General It was a Lover and his Lass 0 1.899 07/12/2011 - 01:25 English
Poesia Consagrada/General How Like A Winter Hath My Absence Been 0 2.510 07/12/2011 - 01:24 English
Poesia Consagrada/General Hark! Hark! The Lark 0 2.086 07/12/2011 - 01:20 English
Poesia Consagrada/General Full Fathom Five 0 2.556 07/12/2011 - 01:17 English
Poesia Consagrada/General From you have I been absent in the spring... (Sonnet 98) 0 2.031 07/12/2011 - 01:14 English
Poesia Consagrada/General from Venus and Adonis 0 2.537 07/12/2011 - 01:13 English
Poesia Consagrada/General Fidele 0 1.462 07/12/2011 - 01:11 English
Poesia Consagrada/General Fear No More 0 1.380 07/12/2011 - 01:10 English
Poesia Consagrada/General Fairy Land v 0 1.442 07/12/2011 - 01:08 English
Poesia Consagrada/General Fairy Land iii 0 1.724 07/12/2011 - 01:07 English
Poesia Consagrada/General Fairy Land ii 0 1.612 07/12/2011 - 01:06 English
Poesia Consagrada/General Fairy Land i 0 1.460 07/12/2011 - 01:06 English
Poesia Consagrada/General Dirge of the Three Queens 0 2.166 07/12/2011 - 01:00 English
Poesia Consagrada/General Dirge 0 1.745 07/12/2011 - 00:58 English