William Shakespeare : A Comédia dos Erros – Ato IV - Cena III

Cena III

(Uma praça pública. Entra Antífolo de Siracusa.)

Antífolo de Siracusa
Não encontro ninguém nesta cidade que não me cumprimente como a velho conhecido. Meu nome todos sabem. Uns, dinheiro de empréstimo oferecem; outros me invitam para cearmos juntos; muitos se mostram gratos por finezas que eu lhes houvesse feito; outros insistem porque lhes compre as mais variadas coisas. Em sua loja, há pouco, um alfaiate me fez entrar, para mostrar-me sedas que para mim comprara e, sem delongas, tomou minhas medidas. Com certeza tudo isso é fantasia; aqui residem, decerto, os feiticeiros da Lapônia.

(Entra Drômio de Siracusa.)

Drômio de Siracusa
Eis o dinheiro, mestre, que pedistes. Mas, como conseguistes ver-vos livre do retrato do velho Adão de farda?

Antífolo de Siracusa
Dinheiro que eu pedi? Que Adão é esse?

Drômio de Siracusa
Não me refiro ao Adão que guardava o paraíso, mas ao Adão que é guarda da cadeia, o que se veste com a pele do bezerro matado para o filho pródigo, o que marchava por trás de vós, senhor, como anjo do mal e vos intimou a abandonar a liberdade.

Antífolo de Siracusa
Não te compreendo.

Drômio de Siracusa
Não? Pois é muito simples: refiro-me ao sujeito que anda como um rabecão, numa caixa de couro; o indivíduo, senhor, que dá empurrões nos cavalheiros fatigados e os obriga a repousar; o mesmo que se apiada das pessoas arruinadas e lhes arranja um fato indesfiável; é o tal, em suma, que se gaba de fazer mais piruetas com a sua clava do que os dançarinos com a lança mouresca.

Antífolo de Siracusa
Como assim? Referes-te a algum oficial de justiça?

Drômio de Siracusa
Perfeitamente, senhor, ao sargento dos títulos, o mesmo que chama responsabilidade as pessoas que não pagam as suas obrigações e que diz a toda a gente: "Deus vos dê bom repouso", como se todo o mundo estivesse no ponto de ir para a cama.

Antífolo de Siracusa
Muito bem, senhor; ponde remate a essas tolices. Nenhum navio zarpará esta noite? Saímos ou não desta cidade?

Drômio de Siracusa
Como não, senhor! Há uma hora vos disse que o barco "Velocidade" partirá esta noite, justamente quando o sargento vos deteve e vos obrigou a aguardar a chalupa "Retardo". Aqui estão os anjos que me mandastes buscar, para que vos livrassem.

Antífolo de Siracusa
Este velhaco está louco de todo, tal como eu. É ilusão tudo o que vemos. Daqui nos tire algum poder celeste!

(Entra zona cortesã.)

Cortesã
Mestre Antífolo, salve! Vejo agora que encontrastes o ourives, finalmente. É essa a cadeia que me prometestes?

Antífolo de Siracusa
Retira-te, Satã! Não me persigas.

Drômio de Siracusa
Mestre, essa é a senhora Satã?

Antífolo de Siracusa
É o diabo.

Drômio de Siracusa
Não, é pior do que isso: é a avó do diabo, que nos aparece sob a forma de uma meretriz leve; de aí o costume de dizerem as meretrizes: "Deus me dane!" que é como se dissessem: "Deus faça de mim uma donzela leviana!" Está escrito que elas aparecem aos homens como anjos leves de luz. Ora, a luz é uma conseqüência do fogo, e o fogo queima. Logo, as donzelas levianas queimam. Não vos aproximeis dela.

Cortesã
Vosso criado, senhor, e vós estais hoje muito espirituosos. Não quereis vir comigo? Poderemos comprar aqui perto alguma coisa para cearmos.

Drômio de Siracusa
Mestre, se fordes cear e houver probabilidade de tomardes sopa, muni-vos de uma colher comprida.

Antífolo de Siracusa
Por que, Drômio?

Drômio de Siracusa
Ora, porque quem come com o diabo precisa ter uma colher comprida.

Antífolo de Siracusa
Demônio, para trás! Por que o convite para cearmos? Como as outras todas, és uma bruxa. Assim, eu te conjuro a me deixares e ires daqui logo.

Cortesã
Dai-me o anel que ao jantar me arrebatastes, ou, em troca, a cadeia prometida, que eu sairei, senhor, sem molestar-vos.

Drômio de Siracusa
Às vezes o demônio pede apenas as aparas das unhas, um cabelo,uma gota de sangue, uma pevide de cereja, uma noz, um quase nada. Esta, porém, mais ambiciosa, pede somente uma cadeia... Cuidado, mestre! Se lhe derdes isso, sacudindo as correntes, o demônio sem demora virá meter-nos medo.

Cortesã
Senhor, o anel, ou então dai-me a cadeia. Não acredito que queirais lograr-me.

Antífolo de Siracusa
Corre, Drômio, que é tempo. E tu, ó bruxa, fora!

Drômio de Siracusa
Disse o pavão: que orgulho! Ouviste-lo, senhora?

(Saem Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa.)

Cortesã
Não há dúvida: Antífolo está louco; se não, não se aviltara desse modo. Ficou com meu anel que vale cerca de quarenta ducados, prometendo que em paga me daria uma cadeia. No entanto, agora nega ambas as coisas. A principal razão de o julgar louco, sem falarmos no acesso de há momentos, se cinge à história singular que à mesa do jantar me contou, de que se achava impedido de entrar na própria casa. Só se a mulher, por ver o seu estado, mandou fechar a porta de propósito. Só me resta o recurso de ir à casa de Antífolo e contar à sua esposa que ele, por ter ficado de repente desassisado, me invadiu a casa e o anel me arrebatou. Sim, farei isso; reaver o anel perdido é bom serviço.

(Sai.)

Submited by

Thursday, May 7, 2009 - 23:22

Poesia Consagrada :

No votes yet

Shakespeare

Shakespeare's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 13 years 22 weeks ago
Joined: 10/14/2008
Posts:
Points: 410

Add comment

Login to post comments

other contents of Shakespeare

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 12: When I do count the clock that tells the time 0 6.230 07/12/2011 - 02:13 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 119: What potions have I drunk of Siren tears 0 4.084 07/12/2011 - 02:12 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 118: Like as to make our appetite more keen 0 3.722 07/12/2011 - 02:09 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 116: Let me not to the marriage of true minds 0 3.897 07/12/2011 - 02:07 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 115: Those lines that I before have writ do lie 0 3.994 07/12/2011 - 02:06 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 114: Or whether doth my mind, being crowned with you 0 4.128 07/12/2011 - 02:05 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 113: Since I left you, mine eye is in my mind 0 3.728 07/12/2011 - 02:04 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 112: Your love and pity doth th' impression fill 0 3.705 07/12/2011 - 02:02 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 111: O, for my sake do you with Fortune chide 0 3.560 07/12/2011 - 02:01 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 110: Alas, 'tis true, I have gone here and there 0 4.009 07/12/2011 - 01:59 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 11: As fast as thou shalt wane, so fast thou grow'st 0 4.133 07/12/2011 - 01:58 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 109: O, never say that I was false of heart 0 4.785 07/12/2011 - 01:57 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 108: What's in the brain that ink may character 0 3.916 07/12/2011 - 01:57 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 107: Not mine own fears, nor the prophetic soul 0 3.975 07/12/2011 - 01:56 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 106: When in the chronicle of wasted time 0 3.948 07/12/2011 - 01:54 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 105: Let not my love be called idolatry 0 4.646 07/12/2011 - 01:53 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 104: To me, fair friend, you never can be old 0 4.329 07/12/2011 - 01:53 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 103: Alack, what poverty my Muse brings forth 0 4.266 07/12/2011 - 01:52 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 102: My love is strengthened, though more weak in seeming 0 3.507 07/12/2011 - 01:50 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 101: O truant Muse, what shall be thy amends 0 4.310 07/12/2011 - 01:43 English
Poesia Consagrada/General Sonnet 100: Where art thou, Muse, that thou forget'st so long 0 4.059 07/12/2011 - 01:42 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 10: For shame, deny that thou bear'st love to any 0 4.067 07/12/2011 - 01:40 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 1 0 4.146 07/12/2011 - 01:38 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonet LIV 0 4.445 07/12/2011 - 01:37 English
Poesia Consagrada/General Silvia 0 4.480 07/12/2011 - 01:36 English