Na sombra da solidão
A sociedade actual apresenta-se imensamente desenvolvida, assistindo-se a um contínuo e diário progresso ao nível científico e tecnológico, o qual se reflecte numa acentuada evolução ao longo do tempo. Porém, e apesar de todos os aspectos positivos que possam advir desta evolução, a sociedade desenvolvida é afectada por um mal comum, do qual não se consegue desviar – a solidão. Reflexo do estrangulamento dos laços que ligam o ser humano ao mundo que o rodeia, a solidão é um vazio sentido desde as profundezas da alma, que deteriora a personalidade, a auto-estima e o bem-estar dos indivíduos que vivem este problema, o qual é frequentemente manifestado sob a forma de isolamento social.
É possível encontrar a solidão em qualquer quadrante da sociedade. Pobres, idosos, divorciados, pessoas portadoras de doenças infecto-contagiosas, indivíduos de raça ou nacionalidade diferente são afectados por este flagelo, sendo o mesmo igualmente visível entre os adolescentes. São inúmeras as causas passíveis de conduzir à solidão, sendo elas de natureza pessoal e individual, sócio-económica, cultural e familiar. O indivíduo é, por vezes, o agente causador da própria solidão. Nestes casos, o sujeito trava consigo próprio uma batalha de contornos emocionais, caracterizada pelo surgimento de complexos de inferioridade em relação a outro indivíduo ou em relação à comunidade na qual ele se insere. Tais complexos conduzem, inevitavelmente, ao isolamento do ser, o qual vai sufocando silenciosamente na sua angústia e dor.
No âmbito sócio-económico, actualmente verifica-se a prevalência de uma sociedade para a qual a lei da competição é irrefutável, surgindo com muita frequência a marginalização de indivíduos, ao nível profissional. Muitos são os excluídos do mundo dos negócios devido ao facto de não possuírem a motivação competitiva que lhes permitiria triunfar no mercado de trabalho. Estes sujeitos acabam por ser rejeitados, sendo consequentemente invadidos pela desilusão que passam a nutrir por eles próprios, sendo esse facto que os fará isolar-se do resto da sociedade. Tal isolamento afecta o sujeito na esfera profissional e também pessoal, corroendo as relações que se estabelecem entre indivíduos.
As diferenças culturais são um factor que pode, de modo análogo, levar ao isolamento na medida em que, sujeitos possuidores de culturas diferentes são caracterizados por formas de ser, pensar e agir próprias, bem como por possuírem costumes e tradições específicas, sendo este um factor que constitui uma barreira, por vezes intransponível, entre sujeitos não pertencentes à mesma cultura. Desta forma, e devido à existência de dificuldades de adaptação de determinados indivíduos a certa cultura, surge uma incompatibilidade cultural por vezes dificilmente tolerada. Este facto conduz à discriminação e, consequentemente, à solidão.
Em termos familiares, surgem situações em que as expectativas que a família nutre em relação a determinados membros (normalmente em relação aos jovens) não são concretizadas. Tal situação conduz o jovem à vivência de uma solidão interior pois, embora não deixe de pertencer à família em termos físicos, deixa de lhe pertencer em termos psicológicos, uma vez que deixa de se identificar com os princípios que regem a mesma, possuindo ideias e objectivos que se opõem às expectativas sentidas pelos seus restantes membros. Note-se que o surgimento destes casos de solidão se encontra muito dependente da educação, valores, cultura, estereótipos e preconceitos vigentes na família, sendo que estes últimos resultam, em grande parte, da influência do meio no qual a família se insere. Ainda em termos familiares, no que respeita a faixas etárias mais elevadas, a solidão faz-se sentir, em certa parte, devido ao abandono dos idosos pelas respectivas famílias, sendo a perda do companheiro de uma vida uma outra causa de solidão. Esta separação entre dois seres e toda a angústia que lhe é inerente, pode em alguns casos, conduzir a uma progressiva perda da força que mantém qualquer ser humano vivo, cuja última instância é a morte por suicídio. De igual forma e, cada vez com maior frequência, é notório o surgimento do suicídio por entre os adolescentes, como forma de pôr termo ao sentimento de incompreensão que os invade, sendo muitos aqueles que, não conseguindo superar os conflitos característicos de tão conturbados período, permanecem fechados na sua solidão, acabando por levá-la ao extremo suicida, como já referido.
Existem outras duas grandes causas que levam ao isolamento dos indivíduos_ o racismo e a xenofobia. Estes são fenómenos que surgem como consequência dos movimentos populacionais de emigração e imigração, os quais criam condições para a coabitação de indivíduos pertencentes a diferentes raças ou nacionalidades. A convivência entre estes indivíduos processa-se de forma complexa sendo que, nem sempre as diferenças que residem entre os mesmos são bem toleradas, o que conduz ao surgimento de conflitos, cuja final consequência é a marginalização, por vezes violenta, de membros pertencentes à população ou mesmo de comunidades inteiras. Os referidos conflitos surgem como fruto de estereótipos e preconceitos vigentes no seio da sociedade que recebe os indivíduos de diversas raças ou nacionalidades, facto que dificulta, em muito, a adaptação dos mesmos, lançando-os para o universo da solidão. Em situação similar encontram-se as pessoas portadoras de doenças infecto-contagiosas, tal como o caso dos doentes seropositivos que são, de forma exagerada, vítimas da solidão devido à ainda demasiada ignorância da população no que respeita às formas de contágio da doença.
Todas as situações apresentadas pretendem alertar para o verdadeiro flagelo social que é a solidão. Estar só é não ter ninguém a quem desabafar medos, tristezas, angústias, é não poder partilhar alegrias e vitórias. Estar só é não saber porque viver, é não ter força para lutar por objectivo algum pois, afinal, quem vive em solidão não é capaz de traçar metas a atingir. O olhar de um ser solitário é desprovido de esperança, não se direccionando para o mundo mas sim para o interior do próprio ser que vive só. Assim é a dimensão do sofrimento daqueles que vivem à margem dos outros, na sombra da sociedade que os rejeita e que, reciprocamente, é rejeitada por eles. Um ser cuja existência é marcada pela solidão nada procura na vida pois pensa nada poder encontrar, sentindo-se apenas capaz de vislumbrar, em cada minuto que passa, a prevalência da escuridão que marca a sua vida, afogada por uma solidão profunda.
Em conclusão, a abordagem construída sobre a solidão deixa transparecer que esta é um fenómeno intemporal, cuja incidência se exerce sobre os mais variados sectores sociais e faixas etárias. Nunca a sociedade foi tão numerosa e, simultaneamente, tão só. Por este motivo, a abordagem apresentada deverá ser objecto de meditação e questionação individual, por forma a criar vias para a diminuição deste flagelo frequentemente negligenciado. Assim, com vista a minimizar os efeitos deste problema tão marcante na sociedade actual, seria imprescindível operar uma mudança primeiramente a nível individual, e só então a nível geral. Logo, cada indivíduo, na sua singularidade, deveria banir da mente qualquer tipo de pensamento susceptível de causar discriminação social, tal como estereótipos e preconceitos, que tanto deturpam a visão dos seres. Cada um deveria procurar integrar na sua personalidade princípios de compreensão, paciência e tolerância aplicando esses princípios nas relações que mantém com o seu semelhante, seja qual for a sua raça, cultura ou religião. De modo geral, a sociedade, agindo como um todo, deveria procurar formas de diluir as diferenças sociais que excluem indivíduos tornando-se, assim, mais homogénea e aberta. A não concretização de tal mudança fará com que a solidão, mal de sempre, perdure para sempre no coração dos mais frágeis e vulneráveis a ela...aqueles que não conhecem outra forma de viver, senão na sombra da solidão.
2005
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