Idade Madura (Carlos Drummond de Andrade)

   
As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras, nem delas careço.
Tenho todos os elementos
Ao alcance do braço.
Todas as frutas
e consentimentos.
Nenhum desejo débil.
Nem mesmo sinto falta
do que me completa e é quase sempre melancólico.
Estou solto no mundo largo.
Lúcido cavalo
com substância de anjo
circula através de mim.
Sou varado pela noite, atravesso os lagos frios,
Absorvo epopéia e carne,
bebo tudo,
desfaço tudo,
torno a criar, a esquecer-me:
Durmo agora, recomeço ontem.

De longe, vieram chamar-me.
Havia fogo na mata.
Nada pude fazer,
nem tinha vontade.
Toda a água que possuía
irrigava jardins particulares
De atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos.

Nisso, vieram os pássaros,
rubros sufocados, sem canto,
e pousaram a esmo.
Todos se transformaram em pedra.
Já não sinto piedade.

Antes de mim outros poetas,
depois de mim outros e outros
estão cantando a morte e a prisão.
Moças fatigadas se entregam, soldados se matam
No centro da cidade vencida.
Resisto e penso
numa terra enfim despojada de plantas inúteis,
num país extraordinariamente, nu e terno,
qualquer coisa de melodioso,
não obstante mudo,
além dos desertos onde passam tropas, dos morros
onde alguém colocou bandeiras com enigmas,
e resolvo embriagar-me.

Já não dirão que estou resignado
e perdi os melhores dias.
Dentro de mim, bem no fundo,
Há reservas colossais de tempo,
Futuro, pós-futuro, pretérito,
Há domingos, regatas, procissões,
Há mitos proletários, condutos subterrâneos,
Janelas em febre, massas da água salgada, meditação e sarcasmo.

Ninguém me fará calar, gritarei sempre
que se abafe um prazer, apontarei os desanimados,
negociarei em voz baixa com os conspiradores,
transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,
serei, no circo, o palhaço,
serei, médico, faca de pão, remédio, toalha,
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia,
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais:
tudo depende da hora
e de certa inclinação feérica,
viva em mim qual um inseto.

Idade madura em olhos, receitas e pés, ela me invade
com sua maré de ciências afinal superadas.
Posso desprezar ou querer os institutos, as lendas,
descobri na pele certos sinais que aos vinte anos não via.

Eles dizem o caminho,
embora também se acovardem
em face a tanta claridade roubada ao tempo.
Mas eu sigo, cada vez menos solitário,
em ruas extremamente dispersas,
transito no canto homem ou da máquina que roda,
aborreço-me de tanta riqueza, jogo-a toda por um número de casa,
e ganho.

Carlos Drummond de Andrade.

 

Submited by

Martes, Noviembre 1, 2011 - 13:02

Poesia :

Sin votos aún

AjAraujo

Imagen de AjAraujo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 6 años 50 semanas
Integró: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AjAraujo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Videos/Musica She (Charles Aznavour) 0 14.246 01/20/2011 - 16:40 Inglés
Poesia/Dedicada Gaivota (Alexandre O´Neill) 0 2.068 01/20/2011 - 10:40 Portuguese
Poesia/Intervención O que quis eu da poesia? Que quis ela de mim? (Alexandre O´Neill) 0 3.182 01/20/2011 - 10:38 Portuguese
Poesia/Meditación Canção (Alexandre O´Neill) 0 2.490 01/20/2011 - 10:34 Portuguese
Poesia/Intervención O Homem que outrora fui... (Aleksandr Pushkin) 0 2.857 01/20/2011 - 10:31 Portuguese
Poesia/Meditación Tormento de Deus (Alain Bosquet) 0 2.251 01/20/2011 - 10:27 Portuguese
Poesia/Meditación Vivei na casa - e a casa viverá. (Arsenii Tarkowski) 0 3.202 01/20/2011 - 10:24 Portuguese
Poesia/Meditación Mãos dadas (Drummond de Andrade) 0 2.361 01/20/2011 - 10:21 Portuguese
Poesia/Meditación Versos anunciam mudanças: estações do ciclo vital 1 1.097 01/19/2011 - 19:47 Portuguese
Poesia/Meditación Ciclo vital 1 2.319 01/19/2011 - 19:44 Portuguese
Poesia/Dedicada Chuvas de verão 1 1.912 01/19/2011 - 19:41 Portuguese
Poesia/Tristeza Um dia de cão 1 1.070 01/19/2011 - 19:39 Portuguese
Videos/Musica Memory - Musical Cats (Andre Rieu & Susan Erens) 0 16.362 01/19/2011 - 17:51 Inglés
Videos/Musica Don't cry for me Argentina - New York City (Andre Rieu & Susan Erens) 0 23.153 01/19/2011 - 17:45 Inglés
Videos/Musica Barcarolle (Andre Rieu and Orchestra) 0 4.798 01/19/2011 - 17:41 Portuguese
Videos/Musica Ode to Joy (Andre Rieu and Orchestra) 0 15.256 01/19/2011 - 17:37 Inglés
Videos/Musica The blue Danube (Andre Rieu) 0 7.684 01/19/2011 - 17:30 Portuguese
Poesia/Aforismo Poema de Desintoxicação (João Cabral de Melo Neto) 0 3.805 01/19/2011 - 11:18 Portuguese
Poesia/Dedicada Mulher da vida (Cora Coralina) 0 2.993 01/19/2011 - 11:14 Portuguese
Poesia/Intervención Consciência Cósmica (Guimarães Rosa) 0 3.491 01/19/2011 - 11:13 Portuguese
Poesia/Amor Maria (Castro Alves) 0 3.265 01/19/2011 - 11:10 Portuguese
Poesia/Archivo de textos Solidariedade as Vitimas do Rio de Janeiro 1 3.149 01/19/2011 - 03:03 Portuguese
Poesia/Dedicada Cosme e Damião (Parte II - A História) 1 5.180 01/19/2011 - 03:00 Portuguese
Poesia/Dedicada Cosme e Damião (Parte I - A Festa) 1 3.175 01/19/2011 - 02:57 Portuguese
Poesia/Pensamientos Alma e Abelha - Pensamentos I-XXIV (Victor Hugo) * 1 4.982 01/19/2011 - 02:54 Portuguese