António Lobo Antunes- Auto dos Danados
Vende borrões nas galerias de arte de Lisboa, e cujo nome descubro de quando em quando nos jornais, com elogios hiperbólicos assinados por compinchas do Bairro Alto que o elevam aos píncaros do génio, como se fosse capaz de melhor do que três ou quatro riscos ao acaso, perante os quais entendidos de barba se extasiam.
Os moucos nunca compreendem o que a gente lhes diz, ou se o compreendem, compreendem mal e ofendem-se.
Lisboa aparenta-se a um mendigo ao sol, com os piolhos dos pardais a escarafuncharem livremente as farripas das árvores.
… e te deposito na vagina dois centímetros cúbicos de paixão
O Paraíso é uma espécie de clinica para anjos deprimidos, e os bigodes dos
apóstolos o mata-borrões das suas lágrimas.
A procissão coxeava nas varizes das ruas tortas da vila, atacada por pandeiretas, clarinetes e trombones, numa pompa miserável e trágica.
… cheguei ao Porto de comboio, uma cidade maior do que Évora mas sem sol, castanha e preta como um dente estragado, onde chovia interminavelmente a água melancólica de um Outono antigo, um desses Novembros em segunda mão que se compram barato no ferro-velho.
… porque todos se consideravam com direito a nada num país onde nada é o
que geralmente se possui e coisa nenhuma o que os defuntos nos deixam ao deixar-nos além de dívidas e uma saudade zangada em relação ao lugar vago na mesa e ao riso do retrato, o qual vai perdendo substância com a agonia da memória.
Paciência é o género de palavra que irrita até às tripas qualquer infeliz com vinte e três anos de casado
Que falta o ódio faz, para nos sentirmos saudáveis. Acharmo-nos em harmonia com o mundo é uma infeção mortal.
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