Soren Kierkgaard - O Banquete
Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira alguma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação.
Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que o sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice».
Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe, porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.
A feliz recordação do velho é, como a feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efectivamente idealidade, mas, como tal, implica uma responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente ao ideal. A recordação tem por fim evitar as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua passagem pela terra se efectua uno tenore, num só traço, num sopro, e pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se encontra de repassar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem é, que a vida dele decorra uno tenore.
Não faltam, certamente, pessoas que tenham escrito as suas memórias, nas quais o leitor não encontrará vestígio de recordação, e, no entanto, esses homens apresentam as lembranças para com elas garantirem a imortalidade. A recordação é, por assim dizer, uma letra comercial que o homem saca sobre a eternidade, a qual tem a caridade de conceder o máximo crédito e de considerar solventes todos os homens.
A bem dizer, ninguém se pode recordar senão do essencial; a recordação do velho está submetida às circunstâncias; O essencial não é somente condicionado por ele próprio, mas também pela sua relação com aquilo a que diz respeito. Depois de se ter rompido com uma ideia, não se pode agir essencialmente, e nada se pode empreender de essencial (…)
Mas coisa de que uma pessoa se recorde é coisa de que ela não se pode esquecer; nada há que seja indiferente para a recordação, enquanto a lembrança pode ser indiferente à memória.
A memória pertence ao imediato e é socorrida pelo imediato, enquanto a recordação só o é pela reflexão. Por isso é que recordar é também uma arte.
A arte da recordação não é fácil, visto que a recordação pode diferenciar-se no próprio momento em que se elabora, ao passo que a memória conhece somente uma flutuação entre a exactidão e o erro de cada lembrança. Que é, por exemplo, a nostalgia? Uma lembrança recordada. Simplesmente, a dor-da-terra resulta da distância. A arte consistiria em sentir a mesma dor, permanecendo na terra, o que exige a virtualidade da ilusão. (…)
Considerar-se-á talvez paradoxal o conselho, e recear-se-á suportar a dor primeira, que é sempre preferível, como se fosse a primeira desgraça. Mas a lembrança refresca, e assim a memória enriquece a alma com uma soma de pormenores que dissipam a recordação.
Examinemos, por exemplo, o remorso: é a recordação de uma culpa. Do ponto de vista psicológico, creio realmente que a polícia endurece a criminoso porque lhe torna mais difícil o arrependimento. À força de ouvir e de repetir o seu curriculum vitae, ele adquire uma tal, virtuosidade em dizer de cor o seu passado que a idealidade da recordação desaparece completamente; ora, para se arrepender realmente, é indispensável uma grande idealidade, grande e imediata; porque a natureza também pode vir auxiliar o homem, e o arrependimento tardio, de tão pouca importância para a memória, é muitas vezes o mais opressivo e o mais profundo. - A faculdade de se recordar é também a condição de toda a actividade criadora. Quando quiser deixar de produzir, bastará que a pessoa se lembre perfeitamente da coisa que queria dar à luz sob a influência da recordação; a actividade criatriz será então impossível, ou causará tanto sofrimento e tanto desgosto que mais valerá a pena renunciar sem demora a qualquer veleidade de criação.
Não existe, a bem dizer, recordação comum. Há apenas uma espécie de pseudo comunidade à qual, se recorre quando se pretende captar uma recordação. O melhor processo de o suscitar consiste por vezes no seguinte: imaginar que nos confiamos a outra pessoa, apenas para esconder atrás deste abandono fictício um novo acto de reflexão pelo qual a recordação se manifeste. A memória, pelo contrário, admite muito bem o concurso de uma assistência recíproca. Os festins, os aniversários, as promessas de amor, as «leinbranças» preciosas, são então de grande oportunidade e exercem função semelhante à das dobras nas páginas de um livro, as quais servem para nos lembrar onde interrompemos a leitura, e por consequência nos vão dando a certeza de lermos bem a obra inteira. Elaborar a recordação é trabalho que cumpre a, cada qual fazer por si só. Tal necessidade está longe de ser uma maldição. Cada recordação vale tanto como um segredo, já que a consciência que dela se tem é intransmissível. Ainda que muitas pessoas estejam interessadas no mesmo acontecimento que motiva a recordação no homem que dele toma consciência, este é todavia o único a ter conhecimento da sua recordação cujo carácter público é apenas aparente, puramente ilusório.
A contradição tem sempre por consequência a solidão.
O mundo, e tudo quanto ele encerra, nunca nos aparece tão belo como quando avistado de um mirante que propositadamente escolhemos para a observação. Certo é ainda também que tudo quanto o mundo diz, e tudo quanto nos convém ouvir, ganha a melodia dos sons mais belos e mais encantadores quando é por nós escutado dentro de um recanto secreto.
Haverá embriaguez que valha a de quem sabe gozar o silêncio? Em vão levará o bebedor a taça aos lábios, num gesto rápido: não conseguirá exaltar-se com a prontidão da embriaguez do silêncio, porque esta aumenta a cada instante!
O licor capitoso que a taça oferece não é mais do que uma gota no oceano do silêncio infinito em que afogo a minha sede!
Nada há, porém, que tão facilmente se desfaça como a embriaguez do silêncio; uma palavra basta para acabar com o encanto! Nenhum desgosto se compara a este, nem o do ébrio que por súbito despertador seja arrancado ao seu sono profundo.
Quantas vezes não meditei eu já neste pensamento! Na tumultuosa vida de sociedade, é possível pecar por ignorância, mas esse pecado tem desculpa; não assim para aqueles que pecam contra a solidão pacifica, porque esta é sagrada. Tudo quanto perturbar a solidão ficará marcado com o sinal da culpa, e o casto comércio do silêncio, uma vez ofendido, nunca mais perdoará. O solitário não aceita quaisquer desculpas, tem mesmo o pudor de não as ouvir.
O trabalho da recordação traz sempre consigo a sua bênção, e ainda a possibilidade de vir a renascer em nova recordação, que, por sua vez, cativará ainda mais. Quem alguma vez compreendeu oque é a recordação, nunca mais deixará de ser cativo cativado; a posse de uma recordação enriquece muito mais do que a posse do mundo inteiro; e tal como a mulher que está no seu estado interessante, aquele que se recorda encontra-se também em circunstâncias merecedoras de bênção.
A reunião para o banquete efectuou-se num dos últimos dias do mês de Julho, por volta das dez horas da noite. Esqueci já o dia e o ano; é que estes pormenores interessam apenas à memória e não à recordação, cujo objecto é unicamente o sentimento e o seu reino. Os vinhos generosos melhoram muito com passarem pela linha, pela evaporação das partículas aquosas; assim também a recordação se purifica ao perder as partículas de memória, sem que por isso se desvaneça em fumo, como também não acontece aos vinhos generosos.
Não há coisa mais desagradável do que uns destroços a lembrar o que a gente já amou.
Não há nada que tanto nos repugne como saber que algures existe um ambiente onde possa imediatamente surgir uma importuna realidade.
Tudo quanto é bom acontece sem demora; porque a instantaneidade é a mais divina de todas as categorias. O instantâneo tem as honras da locução latina ex templo, porque é o ponto de que parte o divino na vida; o que não acontece no instante é morosamente engenhado pelo espirito maligno.
Um banquete é já de si um empreendimento muito ingrato; por mais que a gente empenhe o melhor do talento e do gosto na sua preparação, há ainda outra coisa com que convém contar: o êxito. Claro está que não entendo por êxito aquele resultado que tem em vista a dona da casa ou a hospedeira ao preparar os manjares; não, senhores; trata-se de outra coisa de que ninguém pode antecipadamente dar a certeza: o concerto feliz dos sentimentos, vibrando de uníssono com as mínimas circunstâncias de festim, essas harpas eólias, essa música interior que ninguém pode encomendar a qualquer orquestra da cidade. Por isso é que é perigoso tomar a iniciativa de tal empreendimento; se faltar essa harmonia, repito, se faltar essa harmonia, logo no primeiro instante, o banquete pode ser indefinidamente prolongado que não chegará a ter êxito.
O que de ordinário se observa nos banquetes é o encontro de convivas ou de confrades que ali se reúnem por um hábito vazio de qualquer idealidade; a miséria intelectual de tais reuniões não salta à vista, porque delas desaparece o espírito crítico. Ora é esse espectáculo que devemos evitar.
A ideia presta-se à realização sempre que as mãos dos homens são forçados a isso.
O vinho é uma garantia da verdade, e a verdade é um elogio do vinho
Se não há faculdade como a imaginação para atribuir beleza a todas as coisas, também não há pior do que ela para estragar tudo, quando soa a hora da realidade que a afronta para nossa desilusão.
Quando se é criança, e há quem o seja por muito tempo, é-se dotado de imaginação suficiente para estar, durante uma hora ou mais fechado num quarto escuro, à espera de um grande acontecimento, e sempre, com a alma alerta; quando se está adulto, a imaginação não hesita em tornar insipida, antes de a ver, a própria árvore de Natal.
Quem, de entre os homens que alguma vez conheceram um instante feliz, fruiu e gozou sem sentir que subitamente poderia acontecer qualquer coisa, ou um nada, muito capaz de perturbar a sua felicidade?
(…) todavia desejar é por vezes mais cruel do que morrer na miséria!
A língua parece rica na ocasião em que se encontra ao ser viço do desejo; mas é tão indigente quando pretende descrever a realidade!...
Se é verdade o que diz o poeta, se o amor infeliz é a morte fatal, - ah! quão feliz me devo eu considerar neste momento, eu que nunca amei, eu que espero morrer de morte natural, e não, graças a Deus, de amor infeliz! Quem sabe, porém, se não será esta, precisamente a maior infelicidade? Quem me assegura então de que não sou infeliz? Talvez,-e digo talvez porque falo do amor como o cego fala das cores, - que o amor deva a sua importância à sua felicidade, o que também se exprime com o dizer que o fim do amor equivale à morte do amante.
Concebo o amor como uma experiência inteiramente intelectual, em que a vida e a morte entram em íntima relação. Mas se o amor é redutível a uma experiência de pensamento, então os amantes, que realmente se apaixonarem, parecer-nos-ão, ridículos. Por outro lado, se o amor é uma experiência da realidade, tudo quanto os amantes disserem terá que ser necessariamente confirmado no real. Ora, chegados a este caminho, dizei-me: parece-vos que tal é o caso, parece-vos que assim seja, apesar de tudo quanto se tem dito? Eu, por mim, vejo nisso uma das contradições em que o amor encerra o homem; ignoro o que acontece aos iniciados, mas para mim, repito, o amor envolve o homem na teia das contradições mais singulares.
Nenhumas relações entre pessoas, nenhuma relação inter-individual exige a idealidade, o que só acontece no amor; e no entanto, observando bem., dir-se-ia que tal idealidade nunca se encontra. Isto é já razão suficiente para que uma pessoa se ponha de sobreaviso contra ele; receio, efectivamente, que ele me obrigue, a mim também, a falar em vão de uma felicidade ou de uma infelicidade que realmente nunca experimentei... Tenho, porém, de me explicar porque me convidaram a desenvolver o tema do amor, se bem que para isso me julgue incompetente; falo num circulo de amigos que me agrada tanto como um banquete grego; em outras ocasiões, o amor não me dá cuidados, por que não desejo perturbar a felicidade de qualquer outra pessoa, mas apenas viver contente com os meus próprios pensamentos. Sim, talvez que as minhas ideias pareçam, aos olhos dos iniciados, rugas tão inconsistentes como as teias das aranhas; talvez que aminha ignorância resulte de eu nunca ter aprendido, nem desejado aprender, como é que se chega a amar. É verdade que eu nunca tive a imprudência de provocar com os meus olhares a atenção de uma mulher; preferi sempre baixar os olhos, recusar-me à impressão de ter visto a significação daquele poder, - daquele poder à mercê do qual não me queria abandonar.
Não será também uma história de amor a história de quem nunca amou? Aliás, se a experiência é condição indispensável para quem fale do seu caso singular, a inexperiência autoriza-o justamente a falar do Eros; os pensamentos que tem estado a exprimir valem para todo o sexo, valem para toda a humanidade, quando apresentados em termos gerais.
(…) Que engraçado! Entre os nossos camponeses não é homem quem não, gosta de fumar cachimbo; entre a gente masculina não é homem quem nunca experimentou o amor.
Para mim o essencial é e continua a ser a ideia. Terá o amor, entre todas as coisas do mundo, o privilégio de não se poder falar nele antes de o conhecer? Nesse caso, que me aconteceria, se eu, amante, só muito tarde tivesse conhecimento dessa particularidade? Eis porque julgo bom reflectir previamente no amor. Certamente que os amantes dizem também que já nisso tinham pensado, mas vá lá saber-se! É que eles partem do pressuposto de que amar faz parte da essência do homem, mas isso não é reflectir sobre o amor, isso é admiti-lo por hipótese, enquanto se não encontra a confirmação.
Sempre que me aplico a pensar no amor, não alcanço mais do que contradição. Parece-me às vezes que algo me escapa; o quê, isso é que não sei dizer; mas a reflexão é capaz de me mostrar imediatamente as contradições. É por isso que o meu conceito do Eros implica a maior contradição cómica, além do mais. Uma coisa não vai sem a outra: o cómico depende sempre da categoria da contradição. Não me cumpre agora desenvolver esse tema; o meu propósito é apenas o de mostrar que o amor é cómico. Entendo, pois, por amor a relação que há entre o homem e a mulher dentro das respectivas condições.
O que eu digo, a propósito da relação do homem com a mulher, é que o amor é cómico, cómico aos olhos de terceira pessoa, e mais não digo. Se é essa a razão pela qual os amantes sempre detestam a terceira pessoa, ignoro; ora, não posso amar porque a minha reflexão intervém sempre como terceira pessoa, dentro de mim próprio.
Antes de mais, devo dizer-vos o que me parece cómico: isto é, que todos os homens amem, e queiram amar, quando até agora não foi possível elucidar em que consiste o amável, o verdadeiro objecto do amor. Deixo de parte a palavra «amar» que por si nada explica; para bem tratar este assunto, a primeira questão é a de saber o que é a coisa amada. Não há outra resposta possível, senão esta: quem ama, ama o amável. Com efeito, se professarmos com Platão a doutrina de que devemos amar o bem, então teremos percorrido, com um só passo gigantesco, todo o domínio da erótica.
Condescenderemos então em dizer que quem ama eleve amar o belo? Nesse caso, perguntarei, se amar uma bela paisagem ou uma pintura magnífica é que é verdadeiramente amar; mas obterei logo a resposta de que a erótica não cabe como espécie num género cuja expressão seria a do amor, porque a erótica constitui já de per si uma completa especialidade.
Vou dar um exemplo. Se um amante, para exprimir bem todo o amor que o domina, fosse dizer: «amo, as belas paisagens, amo um belo dançarino e um belo cavalo, amo a minha Lalage, enfim, amo tudo quanto é belo», Lalage mesmo que fosse bela, mesmo que não tivesse outras razões de se queixar, não gostaria com certeza do elogio do amante; mas imaginai também que ela era feia -era feia e era amada!
Se eu aplicar à erótica a distinção de Aristófanes, que dizia terem os deuses dividido o ente humano em duas partes, como as patruças, para explicar a razão por que os dois fragmentos procuram reunir-se, volto a cair numa dificuldade que não posso esclarecer; no entanto, posso invocar o meu autor, que vai mais além, já que não há razão que detenha o pensamento, posso admitir que os deuses, para melhor divertimento, poderiam ter dividido em três partes o ente humano. Sim, para maior gáudio dos deuses. Não é verdadeira a minha tese de que o amor torna o homem ridículo, senão aos olhos dos semelhantes, pelo menos aos olhos dos deuses? Admitamos, porém, que a erótica tenha por objecto do seu poderio a mútua relação dos elementos masculino e feminino. Que acontecerá então? Se o amante disser à sua Lalage: «amo--te porque és mulher; poderia amar muito bem outra mulher qualquer, por exemplo a feia Zoé», logo a bela Lalage se sentirá ofendida. Que é então o amável?
É o que eu pergunto, mas a fatalidade quis que nunca pessoa alguma tivesse respondido satisfatoriamente a esta questão. Cada amante está convencido de que o sabe, pelo menos no que lhe diz respeito, sem que possa explicar-se muito bem; e quando a gente escuta as conversas de alguns dos seus pares, percebe que nem sequer há dois que estejam plenamente de acordo, se bem que estejam todos a falar do mesmo. Não vou agora deter-me nessas explicações de rematada tolice que vos deixam, afinal de contas, a saber o mesmo que dantes. Não ligo importância alguma aos dislates dos que acabam por indicar os delicados pezinhos da bem-amada ou os soberbos bigodes de um janota por verdadeiro objecto do amor; desprezo o descritivo, ainda que o amante se exprima em estilo elevado, enumere primeiro diversas particularidades, acrescente a seguir toda a «amabilidade» do ente amado, e, para remate, faça alusão a «um não sei quê de inexprimível». Será essa uma maneira de falar que deve ser do especial agrado de Lalage; não me agrada, porém, a mim, porque não compreendo nem uma palavra; pelo contrário, em tudo isso descubro uma dupla contradição: a primeira é a de concluir pelo inexplicável a segunda é a de chegar a uma conclusão;
melhor seria ter começado por postular o inexplicável, e conservá-lo firmemente; ao menos evitam-se as suspeitas. Tomar o inexplicável por ponto de partida, não é acto que prove impotência de razão, porque dá pelo menos uma explicação negativa; mas começar de outro modo, para ter de acabar no inexplicável, isso é que é dar de si próprio uma grande prova de incapacidade.
Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal porque o trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis, falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos. Sim, deve necessariamente implicar uma dialéctica de razões, e quem não as quisesse ouvir ou não as quisesse expor, ganharia mais em desculpar-se com a inoportuna extensão do discurso do que em alegar a falência total de explicações. Ora a verdade é que o amante não pode explicar nada, não sabe explicar nada. Viu centenas de mulheres; deixou talvez passar muitos anos sem experimentar o amor; e um dia, de repente, vê a mulher, a única, a Catarina. Isto é ridículo. Sim, é cómico que tão grande força que há-de transformar e embelezar uma vida inteira - o amor -nem sequer seja como o grão de mostarda donde deverá surgir uma grande árvore, que seja menos do que isso, que, em última análise, se reduza a um quase nada. Sim, é cómico que do amor não se possa apresentar um só critério prévio, por exemplo a idade em que se produz este fenómeno, que da escolha da única mulher no mundo não se possa dar a mínima razão, que se haja escrito que «Adão não elegeu Eva, porque não teve possibilidade de a distinguir entre as mulheres». Não será igualmente cómica a explicação apresentada pelos amantes? Ou melhor, essa explicação não servirá para acentuar ainda mais o aspecto cómico? Os amantes dizem que o amor os cega, e depois de dizerem isso é que tentam iluminar o fenómeno.
Se um homem entrasse numa câmara escura para ir lá buscar um objecto qualquer, e se respondesse «não vale a pena, a coisa não tem importância», a quem lhe dissesse que procuraria melhor se levasse consigo uma luz, eu compreenderia muito bem a atitude desse homem. Mas se esse mesmo homem me chamasse à parte para em grande mistério me confiar que ia buscar uma coisa importantíssima, e que por isso mesmo tinha de a procurar às cegas-como poderia a minha pobre cabeça de mortal seguir a subtileza de tão desconcertante linguagem! Evidentemente que não lhe riria na cara, para não o ofender; mas, assim que ele voltasse as costas, não poderia mais conter a vontade de rir.
Já espero que ninguém se ria comigo do amor, se bem que ele seja muito cómico. Receio cair no mesmo embaraço que o judeu da anedota: «mas então não consegui fazer rir as pessoas ?» - perguntou ele, depois de ter escrito o livro. No entanto não, me esqueci, como ele, dos condimentos picantes. Se me entrego à hilaridade, estou muito longe de querer ofender alguém. Desprezo, porém esses loucos, persuadidos de que o amor deles está tão completamente justificado que podem de bom grado mofar dos outros amantes; pois, uma vez que o amor se furta a toda e qualquer explicação, todos os amantes se tornam igualmente ridículos. Vejo a mesma estultícia e a mesma soberba no homem que passeia o seu olhar arrogante num circulo de donzelas para ver se encontra a pérola digna da sua eleição, como vejo também a mesma estultícia e mesma soberba na mulher ainda nova que meneia a cabeça com desdém; ambos estão completamente entregues a pensamentos finitos que dependem de uma hipótese inexplicável. Não; o que me preocupa é o amor como tal; é o amor que eu acho ridículo; e é essa a razão porque sou tímido, receio tornar-me ridículo, pelo menos perante os olhares dos deuses que assim fizeram o homem. Se o amor é ridículo, tanto faz que eu me apaixone por uma princesa como por uma camareira; se o amor não é ridículo, nenhum mal haverá em amar mulher de baixa condição, porque o amável é o inexplicável. Eis a razão porque evito o amor; mas nisto mesmo vejo uma prova de comicidade; o meu receio assume, efectivamente, carácter trágico, carácter tanto mais acentuado quanto mais se ilumina o aspecto cómico. Quando um muro está para demolição, há sempre um cartaz que me avisa, e eu passo de largo; quando uma porta é pintada de novo há um sinal que disso nos adverte, e eu evito de lhe pôr as mãos; quando um cocheiro vai para atropelar alguém, grita imediatamente «atenção!»; quando grassa uma epidemia de cólera, há sempre uma sentinela diante dos lugares contagiosos, ete.; quero dizer que há sempre maneira de dar a advertência contra a ameaça de um perigo; quem proceder em conformidade com os avisos poderá certamente evitá-lo.
Eu, se receio que o amor me torna ridículo, assim penso porque o considero como um perigo; que hei-de eu fazer para o evitar?, ou para me subtrair à influência de uma mulher que se interesse por mim? Estou longe de me julgar um Adónis, predilecto das adolescentes; e que os deuses me preservem de tal! Mas já que ignoro em que consiste o amável, também não posso saber o comportamento a seguir para evitar esse perigo. Mas, além disso, como o contrário de um Adónis também pode ser amável, e como o inexplicável é o amável, encontro-me na mesma situação que aquele homem de que nos fala João-Paulo: com um pé no ar lê um cartaz: «atenção às ratoeiras», e não sabe se há-de levantar o outro pé, ou se há-de continuar a andar.
Estou decidido a não me deixar apaixonar por mulher alguma enquanto não estudar a fundo a noção do amor; se nunca o conseguir, terei pelo menos ganho este resultado, o de ter visto que ele é cómico; por isso me recuso a amar. Infelizmente, porém, o perigo não está afastado, visto que ignoro em que é que posso ser excitado por ele, ou qual é a minha amabilidade que pode interessar a uma mulher; é isto, não posso saber com certeza se evitei ou não o perigo. Eis o lado trágico do amor, e em certo sentido profundamente trágico, se bem que ninguém faça caso dele ou não se preocupe com a amarga contradição que um pensador descobre ao verificar que há algo cujo poderio se exerce por toda a parte, se bem que seja inconcebível, ameaçando talvez até surpreender de improviso quem se esforça em vão por analisá-lo.
Mas o trágico desta situação tem a sua razão profunda no cómico que já revelei. É possível que se voltem contra mim todos os meus argumentos, e, sem ver o cómico onde eu o descubro, o vão apontar ali onde descubro o trágico; mas isso mesmo prova, até certo ponto, que estou no caminho da verdade; e a razão pela qual posso vir a ser uma vítima trágica ou cómica, se alguma vez o chegar a ser, fica pelo menos manifesta: essa razão está na vontade de submeter à reflexão todas as minhas acções, e está também na recusa a deixar-me lograr pela ilusão de que reflicto, sobre a vida, quando, a respeito de uma decisão de tão magna importância, apenas digo de mim para mim: «resigna-te».
O homem é um composto de corpo e alma; todas as pessoas de ciência e todas as pessoas de bem estão de acordo neste ponto. Se fizermos, pois, residir a potência virtual do amor na relação mútua dos elementos masculinos e femininos, volta o cómico a revelar-se numa estranha subversão em que se vê o que a alma tem de mais sublime exprimir-se no sensível mais grosseiro. Estou a pensar em todas essas mímicas, extremamente curiosas, do amor, nesses sinais misteriosos, enfim, nessa linguagem de sociedade secreta que provém do inexplicável primordial. A contradição em que o amor encerra o homem é tal que o símbolo não significa nada, ou, o que vem a dar exactamente na mesma, tal que ninguém pode dele ministrar qualquer explicação.
Duas almas interessadas uma pela outra dão-se mútua garantia de que se hão-de amar para sempre; depois abraçam-se e selam solenemente com um beijo esse pacto eterno. Pergunto a qualquer homem capaz de reflexão se isso pode ser. Tais são as perpétuas alternativas do amor.
A mais alta espiritualidade exprime-se pelo seu extremo oposto, e é o sensível que pretende caracterizar a nobreza da alma. Suponhamos agora que eu estava interessado, interessado no amor, é claro: seria para mim muito interessante que a minha bem-amada quisesse pertencer-me por toda a eternidade. Será muito compreensível, se falarmos aqui da erótica no sentido grego, quer dizer, do amor das almas belas. Assim que a minha bem-amada me desse a certeza, eu acreditaria, ou, se me ficasse qualquer dúvida, faria o possível por me convencer. Mas que acontece de facto? Se eu estivesse interessado, faria como os outros, procuraria outra certeza além da fé na minha bem-amada, quando, evidentemente, nenhuma outra prova me parece adequada.
Quando um papagaio no seu poleiro se meneia todo envaidecido para dizer a frase «Ai, Mariana!», como no teatro, toda a gente ri, e eu também. Talvez que os espectadores julguem que neste caso o cómico reside na relação de Mariana com o papagaio, que não pode ter amor algum por ela; mas supondo que havia amor: não seria ridículo? Parece-me que tanto num caso como no outro.O cómico provém então de que o amor se tornou comensurável, e por isso tem de ser comensurável com esta expressão. Pouco importa que se ascenda à origem do mundo para justificar os usos e os costumes; o cómico terá força de eternidade sempre que assente numa contradição, e nós estamos sem dúvida na presença de uma contradição. Um fantoche nada tem de especificamente cómico; não há contradição nos movimentos descontínuos que executa, porque bem sabemos que são produzidos pelos arranques de um cordel. Mas estar um fantoche ao serviço de algo inexplicável, eis o que é o cómico, e a contradição provém de que não se vê razão suficiente para que ele sofra puxões ora para a direita, ora para a esquerda.
Sempre que não posso compreender o que faço, recuso-me a continuar; quando não posso compreender o poder à discrição do qual me sinto entregue, recuso-me a continuar à sua mercê. E se o amor é uma lei misteriosa que concilia os contrários, quem me garante que dentro dele não possa subitamente surgir a confusão? No entanto, pouco me importo com isso. Ouvi muitas vezes dizer que certos amantes acham ridículas as maneiras de outros amantes. Não vejo que tenha sentido algum esse modo de troçar, porque, se a lei do amor for uma lei natural, terá que ser igual para todos os amantes, e se for uma lei do domínio da liberdade, será então indispensável que os trocistas conheçam as razões do seu procedimento, que estejam em condições de tudo explicar, o que efectivamente lhes é vedado.
Compreendo muito melhor do que a maior parte da gente a razão por que um amante se pode rir de outro: o outro é sempre divertido, o mesmo é que não é. Se é ridículo beijar uma mulher feia, também é ridículo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, não vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba não põe ninguém ao abrigo do cómico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido é, pretende também convencê-los de que hão-de cumprir fielmente o juramento.
Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade, como é que eu poderia impedir-me de ver o ridículo de tal explicação-tal como o exemplo que há pouco dei; e bem que diferente, é certo-, enquanto tal homem não se resolvesse a pôr termo à minha hilaridade, confessando que esses gestos não tinham significaçã o alguma. Num repente, com efeito, a contradição, que é a base do cómico, desaparece; porque não há nada ridículo em que uma coisa destituída de sentido seja reconhecida como tal, mas é grotesco atribuir-lhe um alcance universal.
Em relação ao involuntário, a contradição reaparece: não é possível admitir o involuntário num ente racional e livre. Suponhamos agora que ao Papa, no momento de coroar Napoleão, lhe dava vontade de tossir ou que uns noivos no momento solene da bênção nupcial, começavam a espirrar: o cómico surgiria instantaneamente. Quanto mais a circunstância sublinhar o carácter livre do ente racional, tanto mais o involuntário se presta ao riso.
O mesmo acontece no domínio da erótica, com respeito a essas gesticulações certamente cómicas, quando se pretende resolver a contradição que elas denunciam atribuindo-lhes uma significação absoluta.
É sabido que as crianças possuem em alto grau o sentido agudo do cómico; podemo-nos reportar ao que elas dizem a tal respeito. Em geral, costumam rir dos amantes; e se conseguirmos que elas nos narrem o que viram, não poderemos, com certeza, impedir-nos de rir. Talvez o nosso riso resulte de elas omitirem a malícia da situação. É curioso. Quando o judeu assim escrevia, ninguém tinha vontade de rir; aqui, dá-se o contrário; porque falta o espírito de malícia, toda a gente se entrega à hilaridade; mas já que ninguém pode dizer onde está o picante, é certo e necessário que esteja ausente. Os amantes não se explicam, e os panegiristas do amor também não; não pensam senão em dizer, como está prescrito na lei real, coisas amáveis e cheias de agrado.
Mas o pensador, esse, procede ao exame das categorias, e aquele que medita sobre o amor deverá igualmente analisar as categorias que ele suporte. Todavia, em relação ao amor julgam-se dispensados desta investigação, e por isso continuamos com falta de uma do género pastoral; pois, se numa pastoral um poeta se esforça por descrever o amor tal-qual é, a sua tentativa fica inteiramente adulterada pela intervenção de uma personagem de contrabando, graças à qual os amantes aprendem a arte de amar.
No domínio da erótica, encontrei pois o cómico que se descobre nas inversões pelas quais o mais nobre elemento de uma esfera não encontra a sua expressão na mesma esfera, mas no contrário absoluto de outra esfera. É cómico ver o sublime impulso do amor (esta vontade de duas pessoas mutuamente se pertencerem para a eternidade) acabar sempre como o xarope na despensa; mas ainda mais cómico é que esta conclusão queira dizer a suprema expressão do amor. «Onde houver contradição, sempre o cómico poderá aparecer; tal é o princípio que me serve de fio condutor.
Estou a falar como se tivesse um véu diante dos olhos, porque, quando me encontro na presença de enigmas, e só de enigmas, já nada posso distinguir, ou antes, perco todo o discernimento. Que é, verdadeiramente, uma consequência? Se ela não estiver relacionada, de uma ou outra maneira, com a antecedência, será ridícula ao pretender passar pelo que não é.
Imaginai um homem que quer tomar banho; cai na banheira e mergulha na água; já atordoado levanta-se, julga que está agarrado à corda na praia, engana-se, dá um puxão e logo o duche incide sobre ele de maneira necessária e rigorosa; a consequência está perfeitamente justificada pela antecedência. O cómico reside no engano; em cair o duche depois de puxar pelo cordão, não há nada ridículo; pelo contrário, ridículo seria que tal não acontecesse, como (para verificar a exatidão da minha tese sobre a contradição) se este amador de banhos, reunindo os seus espíritos e preparando-se a suportar valentemente o arrepio do duche, puxasse energicamente, puxasse- e sobre ele não caísse pinga de água.
Passemos agora para o nosso tema, para o amor. Os amantes querem pertencer um ao outro, e para toda a eternidade. Exprimem-se de maneira assaz curiosa quando se abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer e da mais alta felicidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos; domina-os, rebaixa-os ao seu serviço. Julgo isto muito mais ridículo do que a situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente.
Quem vê um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o que toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de uma metade que corre à procura da outra metade.
Nada há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a metade de uma maçã; não há contradição no primeiro casa, há apenas no segundo.
Se tomarmos a sério o dito de que a mulher é a metade do ser humano, a mulher não nos parecerá cómica na estranha situação do amor. O homem., pelo contrário, que goza de consideração social porque é um ser completo, torna-se cómico quando de repente se deita a correr em busca da mulher e prova assim que não deixara de ser apenas metade do ser humano.
Quanto mais reflectirmas tanto mais nos parecerá divertida a situação; porque se o homem é realmente um todo, na situação de amante deixa de o ser, ou então forma com a mulher muito mais do que uma unidade. Não estranhemos pois que os deuses se divirtam, e que principalmente se divirtam à custa do homem.
Quando os amantes, como dois pombinhos, voam pelos céus em núpcias deliciosas, podemos acreditar que eles querem unir-se, ser uma só unidade, já que dizem querer viver um para o outro pelos tempos sem fim. Mas -é curioso-, em lugar de viverem um para o outro, vivem, sem que disso suspeitem, apenas para a espécie. - Que é uma consequência? Se, quando surge, não a podemos relacionar com a antecedência, parece-nos então uma facécia, e as pessoas a quem tal acontece tornam-se muito ridículas.
Quando duas metades, que estavam separadas, finalmente se juntam, parece que nisso encontram satisfação e motivo de repouso; assim não é, porém, no amor, do qual resulta a agitação para uma vida nova. Compreender-se-ia, que do encontro resultasse para os amantes uma vida nova; não se compreende tão bem que resulte urna vida nova para outro ser. E, no entanto, esta resultante é uma consequência muito mais lata do que a antecedência; mas a explicação que se costuma apresentar exige necessariamente que o encontro final dos amantes marque a impossibilidade de qualquer consequência ulterior. Haverá outro prazer que ofereça analogia com este caso? Não há. A satisfação do prazer significa sempre um relaxe, e ainda que lhe sobrevenha uma tristitia mostrando o cómico implícito em todo o prazer, tal tristeza será uma simples consequência, mas nenhuma tristeza prova tão fortemente um cómico precedente como a tristeza que aparece no fim do amor. Em compensação, muito diferente é a consequência inaudita de que falo, aquela que ninguém sabe de onde procede, nem se é real, mas que, quando se produz, é apresentada a título de consequência.
Quem será capaz de conceber e conciliar tudo isto? No entanto o que aos olhos dos iniciados constitui o supremo prazer do amor é ao mesmo tempo coisa mais importante; tão importante que os amantes passam a ter nomes diferentes, nomes que resultam dessa consequência que recebe assim - coisa curiosa!-, a virtude de retroacção! O amante agora chama-se pai, a amante chama-se mãe, e não há agora para eles nomes mais belos! Mas há também outro ser para o qual esses nomes são ainda mais belos. Na verdade, que há de mais belo do que a piedade filial? A mim parece-me o mais belo de todos os sentimentos, com a vantagem, que é para mim uma felicidade, de neste caso compreender a respectiva noção.
Os homens ensinam que convém que os filhos amem os pais. Isso compreendo eu muito bem: nisso não vejo contradição alguma; também eu próprio me sinto ligado pelos laços ternos de piedade filial. Creio que o maior benefício de que estamos gozando é devido à vida que outro homem nos deu; creio que não há cálculo algum que possa avaliar o montante da dívida e, muito menos, que possa pagá-la; concordo com Cícero em que nunca o filho tem razão contra o pai; é a piedade que me ensina a abster-me de penetrar no íntimo segredo de meu pai, e que me obriga a espreitá-lo para o deixar intacto.
Com certeza, sinto-me feliz por ser o maior devedor de um homem; mas inversamente, antes de me resolver a fazer de outro homem o meu maior devedor, quero ser perfeitamente claro para comigo mesmo; porque, para mim, não há comparação possível entre o facto de ser assim devedor e o de se tornar por sua vez credor de um ser que nunca poderá, por toda a eternidade, pagar essa divida. A piedade não permite que o filho pense naquilo em que o amor obriga o pai a pensar. Eis que reaparece a contradição. Se o filho é um ente eterno, como o pai, que significa então ser pai? Tenho que sorrir de mim próprio ao pensar-me na categoria de pai, tenho que me comover profundamente ao pensar-me na categoria de filho, na relação com meu pai. Compreendo muito bem a bela frase de Platão, segundo a qual o animal dá origem a outro animal da mesma espécie, uma planta a uma planta semelhante, e assim também o homem; mas, dessa feita, nada fica explicado, o pensamento não fica satisfeito, mas pelo contrário, um sentimento obscuro começa a despertar. É que a procriação não pode afectar um ente eterno. Quando, pois, o pai considera o filho no seu ente eternal, e isto é o que está em questão, ele tem que sorrir de si próprio, pois reconhece que de maneira nenhuma pode conter essa plenitude de beleza e de riqueza espiritual que provoca a piedade e justifica o contentamento do filho que procriou. Além disso, se considerar o filho segundo a sua natureza sensível, deverá sorrir também, porque o termo de paternidade ultrapassa em muito o significado do valor desta relação.
Enfim, se pudéssemos admitir que o pai exerce uma influência sobre o filho, no sentido de que o seu ser seja um dado de que o ser do filho não se pode libertar, a contradição reaparece por outro lado; porque este pensamento é terrível, porque então não haverá na terra nada que seja mais para temer do que a paternidade. Não há comparação sequer entre o acto de abater um homem com um golpe mortal e o acto de chamar à vida um novo ser; é que o primeiro tem apenas o efeito de apressar o tempo, o segundo decide de um destino para toda a eternidade. A contradição presta-se ao riso e às lágrimas, como no teatro. Será, pois, a paternidade uma ficção embora em sentido diferente do que diz a personagem Madelon, à personagem Jerónimo na peça Erasmus Montanus ou será uma realidade, e nesse caso, uma terrível verdade? Será o maior benefício altruísta ou o supremo gozo egoísta? Será um efeito acidental e contingente, ou será a missão suprema e necessária?
Estais agora a ver, meus caros amigos, as razões por que renunciei ao amor. As minhas razões são tudo para mim; o meu pensamento é tudo para mim. Se o amor é o mais delicioso de todos os prazeres, recuso-o; recuso-o sem pretender com isso ofender ou desdenhar alguém. Se o amor é a condição do maior benefício, perco a oportunidade de bem-fazer, mas salvaguardo o meu pensamento. Não é que eu esteja cego para a beleza, não é que eu esteja surdo para as harmonias e as melodias. Não. O meu coração não é insensível ao cantar dos poetas que gosto de ler, a minha alma não é destituída de melancolia e não deixa de sonhar com as belas imagens do amor. A verdade é que não quero ser infiel ao meu pensamento, pois, se o fosse, que lucraria com isso? Quanto a mim, não sinto felicidade quando não sinto o meu pensamento livre; nem quando tivesse de interromper os meus pensamentos para me ligar a uma mulher, para gozar as maiores delícias; porque a ideia é para mim o meu ser eterno, e, por isso, mais preciosa ainda do que um pai ou de que uma mãe, mais preciosa ainda do que uma esposa.
Bem vejo que se algo deve ser sagrado, é o amor; que se a infidelidade é algures infame é no amor; que se alguma traição é ignóbil, é no amor; mas a minha alma é pura, nunca olhei mulher alguma que a cobiçasse; nunca andei como borboleta em inconstantes voos até que, cego ou empurrado pela vertigem, fosse cair na mais decisiva das situações. Se eu soubesse em que é que consiste o amável, saberia também com exactidão se estarei ou não isento de culpa por ter induzido alguém em tentação; mas como ignoro o que é o amável, posso apenas ter a convicção de que conscientemente, nunca tal fiz nem quis fazer.
Suponde agora que eu tivesse capitulado, que me tivesse resolvido a rir ou que sucumbisse de medo, o que talvez fosse possível. Sim, eu não sou capaz de encontrar a via estreita pela qual os amantes tão facilmente seguem como se fosse larga, imperturbáveis em todas as vicissitudes(…). Mas, que dizia eu? Suponde que eu tivesse sucumbido. Não teria eu então, irremediavelmente, ofendido a minha bem amada com o meu riso, ou não teria eu, pela minha retirada, causado para sempre o desespero dela?
Quanto à mulher, vejo bem que ela não pode chegar a tão alto grau de reflexão; aquela que julgasse cómico o amor (usurpando assim o privilégio dos deuses e dos homens; porque é ela, mulher, por natureza a tentação que os incita a tornarem-se ridículos) trairia por isso inquietadores conhecimentos prévios, e seria portanto a pessoa menos apta para me compreender; aquela que concebesse o meu receio teria por isso perdido a amabilidade que era o seu encanto, sem que por isso ficasse apta para compreender; de um ou de outro modo, a mulher seria aniquilada, o que eu não sou nem serei enquanto tiver o meu pensamento para a minha salvação.
Não há agora ninguém que ria do meu discurso? Quando comecei por dizer que ia falar do cómico no amor, esperáveis talvez rir, propensos que sois para a galhofa, como eu também, que aprecio o bom humor; no entanto, nenhum de vós se deixou cair na hilaridade. O efeito das minhas palavras não foi aquele por que esperáveis; mas isso mesmo é que é a prova de que estive a falar do cómico. Se não há entre vós quem seja capaz de rir do meu discurso, haja ao menos quem ria de mim. Ride, meus caros amigos, que com isso não me dareis surpresa; também eu não compreendi nunca as afirmações que muitas vezes vos tinha ouvido fazer a respeito do amor: é que vós sois, ao que parece, o que eu não sou; vós sois uns iniciados! ...
É da mulher que vos quero falar. Também eu examinei, perscrutei e penetrei a sua categoria; também eu procurei e encontrei, porque fiz um descobrimento sem igual, que vos passo a dizer. Ninguém chegará a compreender a mulher se não a julgar na categoria de facécia. Compete ao homem ser e actuar absolutamente, exprimir o absoluto; a mulher está na zona do relativo. Entre dois seres tão diferentes, não há que esperar verdadeira inter-acção. Tal desproporção é que constitui exactamente a facécia, que entrou no mundo com a mulher. É evidente, porém, que o homem terá de saber permanecer no absoluto, senão, tudo se altera, quero dizer, tudo cai no que há de mais banal e de mais comum: um par muito bem equilibrado, onde o homem e a mulher não estão por inteiro, onde são duas metades de um casal.
«A facécia não pertence à ordem da estética; é uma categoria moral abortada. Actua sobre o pensamento como sobre o ouvinte actuaria o discurso de um homem que começasse em tom solene, dissesse duas ou três frases entre virgulas, pigarreasse mais ou menos reticente, e por fim se calasse. Assim é a mulher. Aplica-se-lhe a categoria moral, fecha-se os olhos, pensa-se nas exigências morais do absoluto, pensa-se no ser humano, abrem-se os olhos, fixa-se o olhar sobre a donzela pudica, observa-se se ela corresponde às exigências; tem-se um instante de ansiedade, e díz-se por fim: «Que facécia! Isto que eu pensava não era mais do que uma facécia!» A facécia consiste, efectivamente, em aplicar uma categoria que não convém, e a julgar a mulher por essa categoria. Com a mulher, o sério nunca pode ser a sério, o que é propriamente a facécia; isto porque se pretendêssemos que a mulher tomasse o sério a sério, teríamos uma sensaboria.
Se colocardes a mulher debaixo da máquina pneumática para evaporá-la, procedereis mal e a operação nunca será divertida; mas se lhe insuflardes ar suficiente para que ela adquira proporções sobrenaturais, até atingir a idealidade toda de que uma donzela de dezasseis anos se imagine capaz, então haveis de ter o prólogo de uma representação altamente recreativa. (…) porque a idealidade da mulher é totalmente ilusão.
A mulher causar-nos-á um mal irreparável se não a encararmos por este prisma; mas graças à minha teoria, ela será para nós inofensiva e agradável. Não há nada mais terrível para o homem do que cair no fantasiar destruidor da verdadeira idealidade. Cada qual pode arrepender-se de ter sido um impostor, de ter falado muito sem pensar a sério numa só palavra do que disse; mas fazer castelos no ar, acreditar no que se está a fingir, e depois reconhecer a estupidez, isso seria caso para um homem se enjoar até do seu próprio remorso. A mulher não seria capaz de fazer isso. A Natureza deu-lhe o privilégio de passar por metamorfoses em menos de vinte e quatro horas, graças à lengalenga mais inocente e mais desculpável; porque, na sinceridade da sua alma, está muito longe de querer enganar quem quer que seja; é que ela pensa tudo quanto diz, mas com a mesma adorável boa-fé diz o contrário, porque está sempre pronta a morrer até por novas opiniões.
0 homem que se entregue ao amor, porque o considere assunto sério, poderá gabar-se de ter realizado um bom seguro, se por acaso lhe for dado um bom contrato para assinar; pois, com matéria tão inflamável como é a mulher, há sempre sério risco para a empresa seguradora. Mas que faz o nosso homem? Identifica-se com ela; e se, em dia de festa, como aquele em que se queimam foguetes, ela se inflamar um pouco mais, arrisca-se ele a ser envolvido também por ela numa grande explosão. Ou pelo menos experimentará a iminência do perigo, se tiver a sorte de evitar a conflagração. A tudo esse homem se arrisca, tudo pode com a sua temeridade perder; porque o absoluto só tem um contrário absoluto: o fantástico absoluto. Não vá ele então procurar refúgio no convívio com pessoas corrompidas, porque não está perdido moralmente, longe disso; foi apenas reconduzido in absurdum, foi repelido para a felicidade do aranzel; transformou-se num bufão.
Na relação de homem para homem tal caso nunca pode acontecer. Se eu vir um homem dissolver o seu carácter entre fumaças de estultícia talvez o despreze; se o vir recorrer a matreira sagacidade para me enganar, aplico-lhe simplesmente a categoria moral, julgo-o, e o perigo torna-se insignificante; se ele me perseguir a ponto de me fazer perder a paciência, não há que ver, disparo-lhe um tiro nos miolos... Quem será capaz de desafiar uma mulher para duelo? Toda a gente vê que isso seria uma facécia, um disparate como o de Xerxes que mandou fustigar o mar.
Quando Otelo mata a Desdémona, supondo mesmo que ela estava realmente culpada, não obtém do seu acto qualquer vantagem apreciável; procede como um bufão, torna-se ainda mais ridículo, porque, esganando-a, não faz mais do que mostrar-se condescendente com uma consequência do que, desde o princípio, o prepara para o ridículo; em compensação, Elvira poderá parecer-nos inteiramente patética quando se apodera do punhal para se vingar. Se Shakespeare concebeu Otelo como um herói trágico (sem contar com a catástrofe lamentável, que a inocência de Desdémona representa) tal inconsequência explica-se unicamente, e também se justifica plenamente, pela razão de que Otelo não pertencia à raça branca.
É assim mesmo, meus caros amigos. Só um homem de cor, um homem que não nos parece totalmente um ser racional, um homem que é capaz de ficar verde quando acossado pela cólera, como todos sabem que é de facto verificado em fisiologia, só um homem desses, repito, seria capaz de levar as coisas para o trágico quando verificasse que a mulher o enganava. Reparai em que a regra é sempre a mulher dispor do pathos da tragédia no caso de ser enganada pelo homem. Um homem capaz de ficar vermelho como um peru poderá ser talvez personagem de tragédia, não aquele a quem é exigida a serenidade que resulta da cultura espiritual. Esse ou saberá escapar aos perigos do ciúme, ou então, se for vítima deste inferior sentimento, dará em personagem de comédia logo que pretenda vingar-se com um punhal. É pena que Shakespeare não nos tivesse dado um drama em que se visse a ironia castigar as justas pretensões do marido contra a mulher infiel; porque não é dado a quem descobre o cómico desta situação o poder expô-la de forma dramática, admitindo já que ela seja representável. Imaginai, senhores, Sócrates a surpreender- e digo surpreender, porque seria contrário ao pensamento socrático preocupar-se com a fidelidade da mulher, e mais ainda andar a vigiá-la - imaginai Sócrates, a surpreender Xantipia in flagranti: estamos já a ver tão delicado sorriso, aquele sorriso, que transformava o mais feio cidadão de Atenas no mais simpático dos homens, dilatar-se pela primeira vez num riso verdadeiramente homérico. Por outro lado, não compreendo que Aristófanes, o qual tantas vezes nos quis mostrar um Sócrates grotesco, não se tivesse lembrado de o pôr em cena a correr e a gritar: «onde está ela, que a mato», -ela, a infiel Xantipa. Que Sócrates tenha ou não sido marido enganado, eis o que pouco importa para o caso; fazer investigações a respeito da possível infidelidade de Xantipa seria tempo perdido; tanto como pentear macacos, ou atirar pedras à lua. Enganado ou não pela mulher, Sócrates continua a ser do mesmo modo herói intelectual; mas se ele sofresse do vício de ciúme, e se quisesse matar a mulher, então Xantipa exerceria sobre ele um ascendente e uma tirania tais que deixariam a esquecer na história o tribunal de Atenas e a pena de morte: a mulher abusaria do poder de tornar ridículo o filósofo.
0 marido enganado é, portanto, cómico na situação em que se encontra perante a mulher; mas pode parecer trágico nas suas relações com os outros homens. (…)Todavia, na situação de marido enganado, o trágico consiste essencialmente na impossibilidade de uma reparação, e no peso do seu sofrimento, o que, na verdade, forma um conjunto terrível.
Matar a mulher, torturá-la ou desprezá-la por vingança, tudo isso não faz mais do que tornar ridículo o pobre do marido, porque a mulher representa simplesmente o sexo fraco. Eis o tema que incessantemente regressa para estabelecer em tudo a confusão. Se a mulher realizar grandes feitos, será muito mais admirada do que o homem, porque ninguém os espera do seu natural procedimento. Se a mulher for enganada, terá a seu favor todo o pathos; mas com o homem, o mais que pode é haver um pouco de compaixão; na frente dele, diz-se uma ou outra palavra de simpatia, mas nas costas todos riem ou sorriem.
Eis porque muito sagazmente procede quem oportunamente considera a mulher na categoria de facécia. O divertimento é sem par. Começamos por lhe atribuir um valor superlativo para nos situarmos na relação mais cautelosa do comparativo. Evitaremos levar a conversa para a contradição, onde a mulher domina por se sentir à vontade; e diremos sempre que sim a tudo quanto ela quiser. Vamos dando-lhe cada vez mais lastro; como ela não tem medida e não se sabe limitar, depressa chega aos máximos efeitos. Nunca se deve duvidar das palavras dela; pelo contrário, convém sempre fazer fé pelo que ela diz. Uma admiração inexprimível deve estar sempre nos nossos olhos inebriados de felicidade, e todo o nosso procedimento deve ser o de um adorador que sempre anda à roda do seu ídolo: ajoelhamos, damos às nossas feições um aspecto languescente, erguemos os nossos olhos para ela, ficamos pasmados, voltamos a respirar. Obedecemos-lhe como se fôssemos escravos,
Mas eis agora o melhor. Que a mulher seja capaz de falar, quero dizer verba facere, todos nós sabemos, e não precisamos de prova. Infelizmente, ela não goza de reflexão suficiente que a ponha ao abrigo da contradição que surge a curto prazo, digamos quando muito, ao fim de oito dias, pelo que o homem tem de intervir para lhe prestar auxílio lógico, para a restabelecer na ordem do pensamento, pelo que o homem tem de a contradizer. Acontece, pouco depois, que a confusão bate em cheio. Se não houver a preocupação da conformidade nos dizeres, a confusão talvez passe despercebida, porque a mulher é um ser tão pronto para falar como para esquecer o que falou. Mas quando o adorador persevera por todos os modos e até ao fim na obediência, a confusão manifesta-se. A mulher, quanto mais bem dotada for, mais aptidões tiver, tanto maior imaginação haverá de ter; quanto maior for a sua imaginação maior será a sua extravagância em cada instante, e tanto maior será a contradição no instante seguinte. Não se observa muitas vezes este divertimento na vida quotidiana, porque tal obediência cega aos impulsos variáveis da mulher é situação pouco frequente. Tal obediência pode ser a de um pastor lânguido, mas esse não tem a faculdade de descobrir o aspecto mais divertido da situação. A idealidade de uma ingénua que viva no instante e na imaginação não se encontra na realidade, nem entre os homens, nem entre os deuses; mas nem por isso deixa de ser mais divertido acreditar, ou simular acreditar, na idealidade de uma rapariga, e proceder de modo a que ela cada vez mais se excite nessa direcção.
Disse que tal divertimento é sem par. Disse porque o sei, eu que, por vezes, não pude dormir durante noites inteiras, enquanto pensava em assistir a novas confusões provocadas pela minha bem-amada, graças ao meu zelo de servi-la humildemente; porque nunca o jogador do loto chegará a ver tantas combinações singulares e imprevistas como o amante apaixonado por este jogo. Uma coisa é certa: a mulher é dotada de extraordinária faculdade de se perder e de se encontrar na insensatez com aquela amabilidade, com aquele à-vontade, com aquela segurança que convém ao sexo fraco. Quem é amante leal, procura descobrir todas as graças da amada. Ora, quem descobrir esta aptidão genial da mulher não deixará que ela permaneça no estado de possibilidade, pelo contrário, exercitá-la-á até à virtuosidade.
Não necessito de me alargar sobre este assunto; não sairei das generalidades; creio que todos me compreendem bem. Tal como há homens que se divertem a equilibrar um lápis na ponta do nariz, ou a correr com um copo na palma da mão, sem entornar o conteúdo, ou a dançar sobre um estrado onde estão ovos, enfim, a fazer exercícios tão recreativos como lucrativos, assim também, e não de outro modo, o amante encontra na companhia da amada o divertimento mais valioso e o estudo mais interessante.
Do ponto de vista da erótica, o amante procede com inteira fé; ele não se contenta com acreditar em que ela lhe é fiel, porque dessa fase do jogo em breve se cansa, mas acredita também, sem a mínima dúvida, em todas essas explosões de um romantismo sagrado em que ela poderia sucumbir, se não tivesse havido o cuidado de instalar uma válvula de escape pela qual os suspiros, fumos, árias, se vão libertando para envolver o amante numa atmosfera de felicidade. Ninguém o iguala na sua admiração por Julieta, com a diferença porém de que ninguém ousa tocar num só cabelo do Romeu.
Do ponto de vista intelectual, tem toda a confiança nela; e se lhe calha encontrar uma escritora, então, é só o tempo de contar um, dois, três, e logo encontra na sua frente uma mulher que sofre por dar à luz da publicidade um romance, é arrebatado pelo entusiasmo, põe a mão sobre a testa, e fica extasiado com as produções da sua mulherzinha. Tal é o divertimento sem par.
Não compreendo que Sócrates não tenha escolhido este caminho em vez de andar à bulha com a sua Xantipa; mas talvez compreenda, estou já a ver; é que ele queria exercitar-se como o cavaleiro que por mais bem adestrado que esteja o cavalo, irrita-o de vez em quando, para ter nova ocasião de o dominar.
Vou precisar um pouco mais o meu pensamento para esclarecer um caso particular, muito interessante. Fala-se muito da fidelidade feminina, mas raras vezes se diz o que convém. Do ponto de vista estritamente estético, ela paira como um fantasma por sobre o espirito do poeta, que vemos atravessar a cena em demanda da sua amada, que é também um fantasma preso à espera do amante, porque quando ele aparece e ela o reconhece, pronto, a estética já não tem mais que fazer.
A infidelidade da mulher, que podemos relacionar imediatamente com a fidelidade precedente, parece relevar essencialmente da ordem moral, visto já que o ciúme toca sempre os aspectos de paixão trágica.
Há três casos em que o exame é favorável à mulher: dois mostram a fidelidade, e um a infidelidade. A fidelidade feminina será enorme, excederá tudo quanto a gente possa pensar, enquanto a mulher não tiver a certeza de ser verdadeiramente amada: será muito grande, ainda que nos pareça incompreensível, quando o amante lhe perdoar; no terceiro caso temos a infidelidade.
Desde que sejamos dotados de suficiente espirito, e de suficiente liberdade de espírito para pensar, será fácil, depois do que eu disse, justificar a categoria da facécia. (…)Decidamo-nos a relacionar o amor infeliz com a morte, tenhamos seriedade suficiente para manter no espírito este pensamento de relação, e se assim estivermos bem preparados, poderemos ver nitidamente a facécia. A declaração de amor é naturalmente um discurso feminino ou de homem efeminado. Isto salta aos olhos, é evidente, porque esse discurso é uma dessas explosões de sentimento absoluto que, declamadas com grande firmeza no instante, sempre arrancam aplausos vibrantes; se bem que tal discurso seja questão de vida ou de morte, é todavia, como o alimento, destinado a fruição imediata; se bem que toda a vida esteja em jogo, de maneira nenhuma interessa ao moribundo; a declaração de amor poderá conseguir, quando muito, que o ouvinte corra a salvar quem está a desfalecer. O homem que se propõe fazer tal discurso, não está a divertir-se consigo próprio porque sente-se já tão miserável, e desprezível que nada lhe dá vontade de rir. A mulher, pelo contrário, é genial, e amável pela sua genialidade; é graciosa e agradável em tudo quanto diz, desde a primeira à última palavra. É por isso que a mulher morre com o amor, ou morre de amor; ela própria o diz, e ninguém duvida. Nisto reside a sua paixão; porque a mulher é um ser humano, e portanto homem, neste aspecto: pelo menos para dizer o que nenhum homem é capaz de fazer. Coloquei-a a par do homem, e ao dizer isto apliquei-lhe a categoria moral. Fazei vós o mesmo, meus caros amigos, e compreendei então Aristóteles. É que ele observa, e muito justamente, que a mulher não tem aptidão para a tragédia. É evidente que ela não pode faltar ao teatro, que tem lugar no divertimento sério e patético, se não na peça em cinco actos, pelo menos na meia hora dramática das futilidades. Sim, a mulher morre de amor. Mas impedi-la-á isso que volte a amar? Por que não, se houver quem a ressuscite? Depois, será já outra criatura, um ser inteiramente diferente, um ser com novidade e mocidade, que ama pela primeira vez. Isso nada tem de extraordinário! Ó morte, quão grande é, afinal, o teu poder. Nem o vomitório mais violento, nem o laxante mais eficaz, purgariam tão radicalmente como a morte de amor. - A confusão é magnífica, desde que se lhe preste bastante atenção para não a esquecer.
Uma das figuras mais divertidas que poderemos encontrar durante a vida é um morto. Depara-se-nos por vezes no caminho; mas é curioso que raramente aparece em cena. Um homem em recente letargia oferece já um fundo de particularidade cómica; mas um morto autêntico, um verdadeiro morto, ultrapassa tudo quanto possamos razoavelmente exigir de suplemento cómico. Preste-se-lhe boa atenção; eu próprio tive o cuidado de o fazer quando um dia passeava em companhia de um amigo. Passou por nós um casal. Percebi no semblante do meu amigo que ele conhecia aquelas pessoas, e fiz-lhe a pergunta, a que respondeu: «Sim, conheço-os muito bem. Principalmente a ela, que é a minha falecida mulher». «Que diz? A sua falecida mulher?» «Sim, a mulher que morreu nos meus primeiros amores. É uma história muito engraçada. Estou a morrer, dizia-me ela; e no mesmo instante, como era justo, falecia; se assim não fosse teria chegado a ficar viúvo. Mas já era tarde para a hora do casamento; ela estava morta, e morta ficou. Eu é que vou errando, como diz o poeta, ando a procurar em vão o túmulo da minha amada, não o encontro no cemitério, não sei onde verter uma lágrima». O homem que isto me dizia, era ele próprio um morto, porque se encontrava desamparado no mundo, era um morto, por muito que se consolasse de ver que a sua amada chegara a um estádio avançado da vida, se não por merecimento de outro, pelo menos em companhia de outro.
Pensava eu: bom é que as donzelas não sejam enterradas todas as vezes que morrem, pois, se até agora os pais se queixam de que os rapazes lhes gastam muito mais dinheiro do que as raparigas, estas, com tantos funerais, poderiam ser-lhes muito mais dispendiosas.
Uma simples infidelidade não oferece, ao que penso, tão divertido espectáculo como o de ver a mulher interessar-se por outro e ao mesmo tempo dizer ao marido: «não posso; é superior às minhas forças; tenho medo de mim própria; salva-me tu». Mas que ela morra de desgosto por não poder suportar que o amado se afaste porque tem de fazer viagem às Antilhas; que se conforme com a partida e que, quando ele regressar, esteja não só com muito boa saúde, mas além disso ligada para sempre a outro: eis o que me parece ser realmente um destino singular para um amante.
Não vejo, pois, razão para nos admirarmos de que um homem deprimido pela morte da amada se console a trautear, a cantar e até a gritar aquele velho estribilho nosso: «A morte vem; e ainda bem. Bom para mim, bom para ti. Quem ama nunca mais esquece a data feliz da separação!»
Perdoai-me, amigos. Falei de mais. Vamos beber. Bebamos pelo amor e pela mulher. É que ela é bela, graciosa, encantadora; isto é inevitável para quem a considere e julgue pelas categorias estéticas. Mas temos de ir para além disso; é o que vos aconselho, como outros o aconselharam já. Temos de observá-la dentro do campo moral; retomai o vosso juízo nessa categoria e tereis a facécia nada mais. Até Platão e Aristóteles admitiram que a mulher é uma forma imperfeita, e, portanto, uma grandeza irracional, que talvez em vida futura e melhor possa elevar-se à condição do homem; mas aqui na terra, meus caros amigos, é preciso ver que as coisas são como são. Que estou a dizer? Estou a caluniar? Não, de modo nenhum. Não tardará que tudo isto seja evidente, porque a própria mulher já não se contenta em viver na ordem da estética; quer passar para a ordem moral, quer ser emancipada, como ela diz, ou quer ser capaz de ser homem, como nós dizemos. Ah! Bebei, meus caros amigos, que a facécia já passa das medidas.
(…) agradecer o que não me foi concedido. Assim, limitar-me-ei a concentrar a minha alma para agradecer o único favor que me foi concedido: o de ter nascido homem, e não mulher.
A condição natural da mulher é muito singular. É um ser feito de elementos tão complexos, que um só predicado não o pode exprimir; e quando os predicados se acumulam, vemos que eles se contradizem de tal forma que com tal contradição só a mulher se pode harmonizar e, o que mais é, se pode sentir feliz. De a mulher na realidade exercer uma função inferior à do homem, não vejo que para ela resulte infelicidade; muito menos ainda de que possa adquirir consciência dessa situação, porque tal ciência é-lhe muito suportável. Não; a infelicidade da mulher resulta do absurdo a que o romantismo reduziu a vida. Com efeito, para os românticos, num instante a mulher é tudo, e no instante seguinte a mulher é nada; assim, nunca se sabe ao certo qual é a verdadeira significação da mulher na vida humana. A infelicidade da mulher está em não poder conhecer a sua situação e o seu valor, exactamente porque é mulher.
Quanto a mim, se fosse mulher, desejaria viver no Oriente, na condição de escrava; porque a condição pura e simples de escravatura é pelo menos alguma coisa, não é o tudo, não é o caos, não é o nada.
Ainda que a vida não apresentasse à mulher estes contrários, as honras que lhe são atribuídas, e que segundo a opinião pública, lhe são devidas, justamente por ser mulher, seriam já, suficientes para a advertirem e para a convencerem de quão absurda é a situação feminina.
O privilégio que os homens concedem às mulheres é a galantaria. Convém ao homem dar provas de galantaria para com a mulher, e esta arte consiste muito simplesmente em enquadrar nas categorias da imaginação a pessoa em relação à qual se formulam os galanteios.
Prestar as mesmas atenções a um homem seria ofendê-lo pela lisonja, porque o homem não está dependente, ou se estiver não deveria estar, de tais categorias. Pelo contrário, as mínimas deferências são devidas como tributo ao belo sexo, são-lhe devidas como a homenagem que por excelência lhe compete. As mínimas deferências... Ah! Ah! Ah! Se a galantaria fosse mera praxe de cavalaria, se só os cavaleiros se mostrassem galantes, a coisa não se prestava a demoradas reflexões. Mas tal não é o caso. No fundo, todo o homem é galante, ainda que inconscientemente, ainda que contra vontade. Ou, por outras palavras: foi a própria natureza que prendeu o belo sexo com mais esta graça. Aliás a mulher aceita espontaneamente, e sem contrariedade, tais homenagens. Isto é mais uma infelicidade; porque se só uma procedesse assim, ou se só algumas procedessem assim, poderíamos encontrar para o problema outra solução. Assim, temos de nos encontrar outra vez perante a ironia própria da vida. Se a galantaria correspondesse à verdade, deveria então ser reciproca; nesse caso, dar-se-ia como que a permuta de valoração entre a força e a beleza, entre o poder e a astúcia. Não é, porém, assim. A galantaria é essencialmente o privilégio da mulher, e a irreflexão com que a mulher a aceita explica-se pela atenção da natureza para com o mais fraco, mitigando-lhe o infortúnio com dar-lhe uma compensação, ou mais do que uma compensação, o infinito da ilusão. Mas esta ilusão é que é a fatalidade própria da vida da mulher.
São frequentes os casos em que a natureza toma cuidado do enfermo, consola-o e embala-o na ilusão de que é belo. Tudo quanto a natureza faz é bem feito, e o infortunado possui assim muito mais do que em pretensão razoável pudesse desejar. Todavia, que irrisão mais cruel poderia haver do que esta vantagem totalmente ilusória, que irrisão, mais cruel do que escapar à miserável condição da escravatura para ser enganado por uma quimera! A mulher está bem longe de não participar das vantagens concedidas ao enfermo, mas, por outro lado, não pode nunca sair da ilusão com que a vida a agraciou para sua consolação.
Se considerarmos, na sua totalidade, a existência da mulher, para discernirmos os momentos decisivos, veremos que esta existência nos dá em cada caso particular uma impressão absolutamente fantástica. No decurso da sua vida, a mulher tem momentos decisivos muito diferentes dos do homem, porque são para ela ocasiões de completo transtorno. (…)Tal é o fantástico de toda a existência feminina.
Se a mulher se chamar Juliana, a sua vida poderá resumir-se assim: «Outrora imperatriz dos vastos domínios do amor, e rainha titular da patetice em todo o esplendor; hoje, esposa do grave senhor Fulano de Tal, com loja aberta a uma esquina desta cidade» .
Na infância, a menina é menos considerada do que o menino. Quando rapariga, poucos anos depois, ninguém sabe bem o que virá a ser; enfim, no período decisivo da adolescência para a mocidade, sobe ao trono da sua ilusória soberania. O homem aproxima-se e adora-a; é um pretendente. Digo que adora, porque é na verdade o que ele faz, entre suspiros imprecativos; o pretendente nunca é um intrujão dominado por manhas e artimanhas. Até mesmo o carrasco, quando põe de lado os sanguinários utensílios do seu mister, para ir pedir a noiva em casamento, flecte o joelho, ainda que pense logo depois em execuções domésticas, tão naturais aos seus olhos, que não procura sequer desculpá-las invocando a raridade dos suplícios públicos. O homem culto procede do mesmo modo; cai de joelhos, adora, enfim, vê a amada debaixo das mais belas categorias da imaginação; depois esquece bem depressa esta atitude; ao tomá-la ele já sabia, aliás, que sacrificava a uma ilusão.
Se eu fosse mulher, antes queria ser vendida pelo meu pai a quem mais desse, como se faz no Oriente, porque o comércio tem pelo menos um sentido real. Ser mulher é já uma infelicidade; mas infelicidade maior é não ver essa infelicidade. Observai que a mulher se de alguma coisa se queixa, não é de ser adorada: é, pelo contrário, de deixar de o ser.
Se eu fosse mulher, acima de tudo exigiria que ninguém me fizesse a corte, dispensaria muito bem os galanteios; contentar-me-ia com pertencer ao sexo fraco, aceitaria a verdade da minha situação, e teria o brio de repelir as mentiras dos homens. A mulher não pensa assim, pouco se importa com a verdade. Juliana sente-se feliz no sétimo céu, e a esposa do senhor Fulano de Tal, com loja aberta na esquina da cidade, vive resignada, se não contente, com a sua sorte.
Agradeço, pois, aos deuses o ter nascido homem, e não mulher. Com isto, porém, não deixo de pensar nas vantagens que perdi. Desde as canções do botequim até aos versos de tragédia, a poesia é uma apoteose da mulher, para maior infelicidade dela e do seu adorador, porque, se este não tiver cuidado, quando estiver no melhor do seu culto, sentirá que o rosto lhe emagrece.
O homem deve à mulher tudo quanto fez de belo, de insigne, de espantoso, porque da mulher recebeu o entusiasmo; ela é o ser que exalta. Quantos moços imberbes, tocadores de flauta, não celebraram já o tema? E quantas pastoras ingénuas não o ouviram também?
Confesso a verdade quando digo que a minha alma está isenta de inveja e cheia de gratidão para com Deus; antes quero ser homem pobre de qualidades, mas homem, do que mulher-grandeza imensurável, que encontra a sua felicidade na ilusão.
Vale mais ser uma realidade, que ao menos possui uma significação precisa, do que ser uma abstracção precisa, do que ser uma abstracção susceptível de todas as interpretações.
É, pois, bem verdade: graças à mulher é que a idealidade aparece na vida; que seria do homem, sem ela? Muitos chegaram a ser génios, heróis, e outros santos, graças às mulheres que amaram; mas nenhum homem chegou a ser génio por graça da mulher com quem casou; por essa, quando muito, consegue o marido ser conselheiro de Estado; nenhum homem chegou a ser herói pela mulher que conquistou, porque essa apenas conseguiu que ele chegasse a general; nenhum homem chegou a ser poeta inspirado pela companheira de seus dias, porque essa apenas conseguiu que ele fosse pai; nenhum homem chegou a ser santo pela mulher que lhe foi destinada, porque esse viveu e morreu celibatário.
Os homens que chegaram a ser génios, heróis, poetas e santos cumpriram a sua missão inspirados pelas mulheres que nunca chegaram a ser deles. Se a idealidade da mulher fosse positivamente, e não negativamente, um factor de entusiasmo, inspiratriz seria a mulher à qual o homem, casando, se unisse para toda a vida. A realidade fala-nos, porém, outra linguagem. Quero dizer que a mulher desperta, sim, o homem para a idealidade, mas só o torna criador na relação negativa que mantém com ele. Compreendidas assim as coisas, poderá efectivamente dizer-se que a mulher é inspiradora, mas a afirmação directa não passa de um paralogismo em que só a mulher casada pode acreditar.
Quem ouviu alguma vez dizer que uma mulher casada tivesse conseguido fazer do marido um poeta?
A mulher inspira o homem, sim, mas durante o tempo que for vivendo até a possuir. Tal é a verdade que está escondida na ilusão da poesia e da mulher.
Que o homem não possua a mulher, isso é o que pode ser entendido de várias maneiras. Ou está ainda na luta para a conquistar, e assim se disse que a donzela entusiasmou o amante a ponto de fazer dele um cavaleiro, mas nunca se ouviu dizer que um homem se tornasse valente por influência da mulher com quem casou. Ou está convencido de que nunca lhe será possível casar com ela, e assim se diz que a donzela entusiasmou e despertou a idealidade do amante que se manifestou capaz de cultivar os dons espirituais de que porventura era portador.
Mas uma esposa, uma dona de casa, tem tantas coisas prosaicas com que se preocupar, que nunca desperta no marido a idealidade.
Há ainda outro caso, em que o homem não possui a mulher porque persegue um ideal. Assim vai ele passando de amor para amor, o que é uma espécie de ser infeliz no amor; a idealidade da alma do amante está então no ardor da procura e da perseguição, e não nos amores fragmentários que não valem a soma das aventuras particulares.
A mais nobre idealidade que uma mulher pode suscitar no homem consiste propriamente em lhe despertar a consciência da imortalidade. O nervo desta prova é o que poderíamos chamar a necessidade da réplica. Diz-se de uma peça que não pode acabar sem que tal ou tal personagem receba uma réplica; assim a idealidade pretende que a vida não pode acabar na morte, e exige uma réplica.
Esta prova é muitas vezes administrada de maneira positiva nos jornais. Eu acho isso completamente normal, porque, a ter de ser dada nos jornais, tem de o ser positivamente. A senhora Dona Fulana de Tal viveu um certo número de anos; na noite de 24 para 25, quis a Providência que, etc. O senhor Fulano de Tal, nessa ocasião, sofre um violento ataque de reminiscências do tempo em que fez a corte à sua falecida mulher, ou, para me exprimir com maior exactidão: nada mais o consolará do que o regresso a esse tempo. Entretanto, vai-se preparando para voltar a esse tempo feliz procurando outra mulher, pois, na verdade, um segundo casamento, se bem que esteja longe de ter a poesia do primeiro, é contudo uma boa imitação. Eis a prova positiva. O senhor Fulano não se contenta com exigir uma réplica; não, exige também uma, repetição.
É, sabido que o chumbo toma por vezes o brilho da prata, mas por pouco tempo. Isto é trágico para o vil metal, que tem sempre de se contentar com o que na realidade é.
Com o senhor Fulano de Tal, o caso é diferente. A idealidade é, com justa razão, o próprio do homem; se me rio, pois, do senhor Fulano de Tal, não é porque, comparando-o com o metal, vil, pense que só em raras ocasiões ele terá o brilho da prata; pelo contrário, é porque o falso brilho, ou prestígio, é a denúncia visível de que se transformou em metal vil. É assim que o espírito burguês se cobre de ridículo quando, endomingado de idealidade, nos dá um bom pretexto de dizer com Holberg: «por que não vestiram com um roupão novo esta vaca parturiente?» Retomemos, agora, o fio do discurso. Se a mulher desperta no homem a idealidade, e consequentemente, a consciência da imortalidade, sempre procede assim, mas sempre negativamente. O homem que, graças à mulher que não possui, deu em génio, herói, poeta ou santo, esse homem conseguiu com isso a imortalidade.
Se a faculdade de suscitar a idealidade estivesse positivamente na mulher, seria a esposa, e só a esposa, quem despertaria no homem a consciência da imortalidade. A vida mostra-nos exactamente o contrário. Para que a mulher desempenhe realmente aquele papel, é indispensável que morra antes de a peça acabar. No caso, porém, do senhor Fulano de Tal, ela deixou adormecida a idealidade. Se, pela sua morte, conseguir despertar a idealidade no marido, cumprirá então todas as grandes coisas que lhe atribui a poesia, mas, reparem bem, o que ela de positivo fez a tal respeito é letra morta.
Todavia, o papel da mulher torna-se cada vez mais duvidoso quanto mais ela persiste no desígnio de atribuir à sua acção um sentido positivo. Quanto mais a prova for neste sentido, tanto menos positiva será, porque se dá então a saudade, cuja substância deve ser considerada como essencialmente esgotada,visto que o vivido já foi vivido. A prova chega ao mais alto grau positivo quando a saudade se encontra ligada a determinado evento da vida conjugal, já passado, morto e enterrado, como daquela vez em que os dois andavam a passear entre as sombras do parque... A gente também pode ter saudade de um velho par de pantufas, confortáveis como nenhumas outras; mas esta saudade não vale de prova da imortalidade da alma.
Quanto mais negativamente for dada a prova tanto melhor será, porque o negativo é muito mais forte do que o positivo; o negativo é infinito e, por conseguinte, dissolve o positivo.
A significação que a mulher para nós assume é inteiramente negativa; o seu papel positivo nem de longe se lhe compara; pode dizer-se que é até mesmo funesto. Tal é a verdade que a natureza lhe escondeu. A Natureza compensou, porém, a mulher dotando-a de um poder de imaginação que ultrapassa de muito tudo quanto possa sair de um cérebro masculino, e com uma solicitude tal que a língua e tudo o mais contribuem para reforçar esta poderosa faculdade.
Até mesmo, quando a gente vê na mulher o contrário de uma inspiratriz, quando a gente vê na mulher uma causa de perdição, seja porque com ela tivesse entrado o pecado no mundo, seja porque na infidelidade dela esteja a causa de toda a desolação, não deixamos de lhe dar testemunho de galantaria com a nossa maneira de pensar. É que assim julgamos a mulher capaz de se tornar infinitamente mais culpada ou culpável do que o homem, e se tal dissermos fazemos-lhe uma estranha declaração. Ah! ah! ah! A verdade é muito diferente. Há uma interpretação secreta que a mulher não compreende; porque, no instante imediato, toda a gente concorda com a doutrina jurídica pela qual o homem é que é responsável pelos actos da sua mulher. A mulher é assim condenada como nunca homem algum o foi, porque este é apenas julgado de facto; não que o juízo que sobre ele recai seja mais suave, porque a sua vida não seria então ilusão total, mas a causa é que fica anulada, e deixa-se ao público, quer dizer, à vida, o cuidado de regular as custas. Num instante, tem ela que se servir de toda a astúcia imaginável; no instante seguinte, a gente ri-se de quem ela enganou, o que é uma contradição; até mesmo sobre a mulher de Putifar pairam ainda algumas dúvidas, já que ela quis parecer ser seduzida. Assim é que a mulher dispõe de uma possibilidade inacreditável de enganar, possibilidade tão grande que nenhum homem a poderia ter; mas a sua realidade está em proporção com a sua
possibilidade, e o que de mais terrível existe na condição da mulher é a magia da ilusão em que ela vive feliz.
Que Platão agradeça aos deuses por ter sido contemporâneo de Sócrates, invejo-o; que o faça por ter nascido grego, invejo-o também; mas quando dá graças a Deus de ter nascido homem e não mulher, estou de alma e coração, com ele. Se eu tivesse nascido mulher, e pudesse então compreender o que compreendo agora, que terrível seria isso para mim; se eu tivesse nascido mulher e se me visse por conseguinte incapaz de compreender a minha sorte, isso então é que seria muito mais terrível para mim!
Sendo as coisas como são, segue-se que o homem está sempre fora de qualquer relação positiva com a mulher. Há entre a mulher e o homem esse hiato que faz a felicidade dela, porque o ignora, e que faz o tormento mortal dele, quando o descobre.
A acção negativa da mulher pode levar o homem ao infinito; eis o que é preciso sempre repetir e repetir em honra da mulher, sem restrições; porque esta acção não provém essencialmente da natureza particular de cada mulher, isto é, do seu encanto, ou da duração do seu encanto. Esta influência vem de que a mulher aparece no momento oportuno, ou no momento em que a idealidade latente se descobre no ser do homem. Não é um momento, é um instante; por isso faz bem a mulher em desaparecer imediatamente. Porque, se o homem mantiver com ela uma relação positiva, entregar-se-á ao finito, não ao infinito, muito mais do que antes do encontro.
O maior serviço que a mulher pode prestar ao homem é aparecer aos olhos dele no instante oportuno; mas isso não depende dela, é complacência que pertence só ao destino; à falta disso, o melhor que ela lhe pode fazer é ser-lhe infiel, e quanto mais depressa melhor. A primeira idealidade ajudará o homem a chegar a uma idealidade de potência na qual encontrará sempre um socorro absoluto; quanto à segunda, é idealidade que se paga com o preço dos maiores sofrimentos, sem dúvida, mas que compensa o homem com a máxima felicidade; Infeliz homem, -coitado-, será aquele a quem a mulher permaneça sempre fiel!
Dou, pois, graças aos deuses de ter nascido homem e não mulher; em segundo lugar dou-lhes graças por me terem livrado da mulher que me jurasse fidelidade perpétua, de me terem livrado de estar constantemente a pensar nisso.
Que singular invenção foi essa do casamento! Isto é tanto mais curioso porquanto o casamento tem de ser um acto imediato. No entanto, nenhuma deliberação é tão decisiva; porque na vida o homem não conhecerá tirania mais ciumenta do que a do casamento.
Um acto tão decisivo deve ser executado imediatamente. E todavia o casamento não é coisa simples; na sua complexidade oferece o maior equivoco possível. A carne da tartaruga tem o gosto de todas as carnes; do mesmo modo, o casamento tem o gosto de tudo quanto há, e, como a tartaruga, anda muito devagar. Uma ligação amorosa é simples; mas o casamento! Será algo de pagão, de cristão, de divino, de mundano, de burguês, ou um pouco de tudo? Exprimirá a inexplicável erótica, as afinidades electivas de almas que se admiram? Será dever, associação, convenção, hábito, costume moral, praxe etnográfica, ou um pouco de tudo isso? Exigirá que se encomende a música à banda municipal ou ao coro da paróquia, ou a ambos? Quem fará os discursos, e quem lavrará os registos com o nome dos noivos e das testemunhas? Será o sacerdote ou o funcionário? As cerimónias celebram-se com o expediente das pessoas apressadas ou com a demorada liturgia das solenidades? Como tudo isto é complexo! No entanto, cada marido imagina que ao contrair matrimónio escolhe um elemento simples desta complexidade, ou um trecho desta composição; e que o leva para embelezar e dignificar a sua vida conjugal! Meus caros amigos: Não é verdade que a melhor prenda de casamento que poderíamos dar aos noivos, seria o aviso, a advertência contra tantas faltas de atenção?
Para exprimir uma ideia simples é por vezes indispensável gastar muitos esforços; mas submeter o pensamento a esta complexidade para o reduzir à unidade; exprimir este conjunto de maneira tal que cada elemento tenha a sua representação exacta sem que nenhum seja omitido; isso é, na verdade, tão grande façanha que quem a realizar poderá ser tido por um homem superior. Ora é precisamente este o caso do marido; e ele realiza a façanha, não há dúvida; não diz ele que a executa imediatamente? Se o casamento se realiza assim tão depressa, isso só pode ser em obediência a uma imediatidade superior, que penetra através de toda a reflexão. Mas a respeito disto é que ninguém diz palavra. Nem vale a pena falar com um marido a tal respeito. Quando pela primeira vez se comete uma inépcia, tem de se sofrer para sempre as consequências. A tolice foi ter-se deixado levar no embrulho, e o castigo é ver que já é tarde para remediar o mal. Às vezes os maridos têm sorte, tomam um ar patético, julgam ter cumprido algo de extraordinário com esse acto do, casamento; outras vezes ficam tristes e pensativos; e: outras vezes ainda, fazendo da necessidade virtude, celebram o elogio do Himeneu; mas uma síntese que reúna os membra disjécta da concepção mais heterogénea que se possa ter da vida, isso é o que eu espero há muitos anos em vão.
Apresentar-se como marido digno desse nome, é fazer troça; apresentar-se como sedutor, também é fazer troça; ver na mulher um estímulo de experiências para divertimento próprio é ainda e sempre fazer troça. Os três métodos implicam deferência do homem para com o sexo fraco, e os dois últimos tantas concessões, senão mais, do que o casamento.
O sedutor pretende representar muito bem o seu papel enganando a mulher, mas o facto de enganar, de querer enganar, de se dar ao trabalho de enganar, é prova da dependência em que o homem se encontra em relação à mulher; e o mesmo direi quanto ao psicólogo, amador de aventuras sentimentais.
Atitude positiva para com a mulher! Se tomarmos isso a sério, se pensarmos bem nisso, teremos de reflectir tanto que a própria reflexão nos inibirá de estabelecermos relação positiva ou negativa com a mulher.
Ser um marido exemplar, mas às escondidas ir seduzindo as mocinhas inexperientes, apresentar-se como um sedutor que encobre a fogosidade sentimental do romantismo, são situações reais e significativas; mas também aqui a contradição existe, porque a concessão do primeiro grau vem a ser afastada no segundo. O homem só encontrará a sua verdadeira idealidade numa reduplicação. Toda a existência imediata tem de ser aniquilada, e esta aniquilação tem de ser constantemente assegurada por uma falsa expressão. A mulher não é capaz de conceber esta reduplicação que faz do homem um ser que lhe escapa. Se ela pudesse encontrar o seu ser nesta reduplicação, já não seria possível pensar qualquer relação erótica com ela, e, como a sua natureza é manifesta, a relação erótica é perturbada de facto pela natureza do homem, que tira constantemente a sua vida do aniquilamento do elemento em que a mulher mantém a sua.
Estarei a aconselhar o celibato, já que por alguma razão me chamo Eremita? De maneira nenhuma. Deixemo-nos de celas e de claustros. Este viver solitário ou solteiro não é mais do que uma expressão do imediato aos olhos do espírito que se recusa a este género de expressão. Pouco importa que o dinheiro seja de ouro, de prata ou de papel; compreenderá o meu pensamento somente quem nunca se servir de dinheiro falso. Aquele para quem a expressão imediata não passa de uma falsidade, esse, e só esse, estará mais seguro do que se for viver para a cela; será sempre um eremita, ainda que ande de noite e de dia com as outras pessoas nos transportes públicos.
Falais muito bem, meus caros amigos; falais muito bem. Quanto mais vos ouço falar, mais vos compreendo, quanto mais vos compreendo mais me persuado de que sois uns conjurados. Saúdo-vos, pois. Saúdo-vos como conjurados que sois, o que de longe se compreende.
Falais, muito bem. Mas que sabeis vós do que falais? De que vale a vossa magra teoria que dizeis fundada na vossa experiência? De que vale a vossa experiência de pacotilha que ostentais como grande teoria? Vós sois afinal uns fiéis a partir do instante em que vos enleais nas malhas do amor.
Ao, contrário de vós, eu conheço a mulher; conheço a mulher pelo seu lado fraco; quer dizer que a conheço. No meu estudo, não encontro temor nem terror, porque não recuo perante meio algum de me assegurar do que compreendi; porque sou um frenético; é preciso ser frenético para compreender a mulher; quem não é frenético acaba por o ser se quiser compreender a mulher.
O salteador tem o seu retiro perto das grandes estradas do tráfego, o corsário tem a sua caverna junto das ondas que bramem; eu tenho os meus armazéns no meio da multidão buliçosa e sei que ele exerce sobre a mulher uma sedução irresistível como o monte de Vénus a exerce sobre o homem. No salão de modas é que a gente aprende a conhecer a mulher, de maneira completa e prática, sem precisar de recorrer às vossas teorias de oradores fluentes. Se a moda tivesse apenas por fim preparar a mulher para, na ardência do desejo, despir os véus que lhe envolvem o pudor, a moda teria já utilidade: mas a moda tem uma função muito diferente. A moda não serve de cortina que cobre e descobre a nua voluptuosidade, que devassa a lubricidade e a luxúria; a moda é uma hipócrita exposição da indecência, autorizada porque respeita as conveniências. Na Prússia pagã, a rapariga núbil usava um guizo cujo tilintar servia de sinal para os homens; assim também a moda que dá nos olhos equivale à campainha que fala sempre aos ouvidos, não digo dos vulgares devassos, mas dos apreciadores de requintes que vão perseguindo as mulheres. Há quem julgue que a felicidade é feminina; sim, a felicidade é como a moda, é mutante e inconsciente; mas a felicidade é de sinal positivo, porque ao menos é generosa e dadivosa; por isso, a felicidade não é mulher. A moda é que é mulher, porque a moda é a inconstância na insignificância, sequência e consequência que vai da extravagância até à folia. Vale mais uma hora de observação, na minha loja de modas, do que dias, meses e anos de estudo em outros lugares, para quem deseje conhecer a mulher.
Digo na minha loja de modas, porque é a única que vale a pena frequentar nesta capital; porque me dediquei totalmente e que totalmente me sacrifico para ser o sumo sacerdote no culto desse ídolo. Não há alta roda, não há ambiente mundano, onde o meu nome não passe de lábios para lábios; não há reunião de sociedade burguesa onde o meu nome, uma vez proferido, como o do soberano, não excite respeito e admiração; não há vestido desenhado e executado na minha casa, que, por mais extravagante que pareça, não faça ondas de admiração quando entra numa sala; não há mulher elegante e distinta que se atreva a passar diante da minha loja sem que imediatamente ceda à tentação de entrar; não há rapariga da média burguesia que não olhe para as montras da minha loja sem pensar e suspirar: «Ah, se eu tivesse dinheiro!»
Também, se ela entrasse não sofreria grande decepção; é que eu não engano ninguém; forneço a baixos preços os vestidos mais finos e mais sumptuosos, e faço até muitos abatimentos, porque não me move apenas a ambição financeira; aliás, ao fim de cada ano, obtenho lucros avultados. Sim, eu quero ganhar, quero; seria capaz de perder todo o meu dinheiro neste jogo, de o gastar todo na compra dos órgãos da moda, para ganhar a partida. Sinto uma volúpia sem igual a manipular os tecidos magníficos, a desenhar o corte, a encaminhar as tesouras pelas linhas directoras da elegância, enfim, a imaginar um vestido capaz de sugerir a folia da última moda, para o vender pelo preço mais barato que puder. «Julgais talvez que a mulher deseja estar na moda apenas de vez em quando, no começo das estações, ou nos dias solenes? Enganais-vos. A mulher quer sempre estar na moda, constantemente; não pensa em outra coisa. A mulher é muito espirituosa, mas emprega tão mal o seu espírito como o filho pródigo emprega o dinheiro. A mulher é muito reflexiva, é dotada de incrível dose de reflexão; nada há, por mais sagrado que lhe pareça, que não reduza imediatamente às dimensões do mero enfeite de que a moda é a expressão por excelência; e não devemos estranhar que ela assim pense, porque a moda é para ela sagrada. Também não há nada, por mais fútil que pareça, que a mulher não saiba reduzir a simples atavio de que a moda é a expressão mais frívola; e no vestuário dela não há nada, nem um pormenor sequer, laço ou botão que seja, que ela não relacione com a moda. A mulher veste-se à moda para atrair a atenção das outras mulheres, e sabe ver, num lance de olhos, se está ou não a ser observada e admirada. Até mesmo para ir ao meu salão, onde vai tratar de modas, não deixa de se vestir à moda.
O passeio, o desporto e a praia exigem trajos especiais; há também um modo especial de trajar para ir à loja de modas, pelo qual se distinguem as mulheres modernas. O vestido para esta oportunidade não tem a indecência do roupão em que a mulher gosta de ser surpreendida de manhã; no pijama ou no penteador a mulher concilia, de modo excitante, a garridice com o pudor. Mas o trajo de rigor para ir ter com o alfaiate é propositadamente devasso, fácil de despir, fino e leve; é assim exactamente porque não excita nem confunde os que trabalham na minha profissão; diante da mulher que aparece vestida desse modo, o alfaiate encontra-se numa situação muito diferente da do cavaleiro galanteador. A mulher usa então da sua garridice a mostrar-se a um homem ao qual, pelo mister que exerce, é vedado pretender qualquer favor ou gratidão da delicada senhora. Contenta-se ele com gozar subtilmente do que ela lhe vai confiando com profusão como que sem reparar ou sem imaginar sequer que até mesmo diante do alfaiate representa o seu papel de querendeira.
O cómico reside agora no natural esquecimento da dignidade feminina perante a mais alta preocupação da vida mundana, e a senhora da alta roda logo o revelaria num sorriso de compaixão ou de desprezo para com o alfaiate que se atrevesse a proferir a primeira frase do sedutor.
Quando um visitante a surpreende vestida com um roupão, logo a mulher se recata por um reflexo de pudor; no gabinete de provas da loja de modas, já ela se despe com extrema desenvoltura, porque a sua feminilidade não cai perante os olhos de um homem, mas apenas na frente de um costureiro. A combinação declina gravemente e deixa ver um pouco de nudez; se eu interpretar mal o que isso significa e o que a freguesa deseja, lá se vai a minha reputação pela água abaixo. Tenho que respeitar a mulher, deixando-lhe fazer o que muito bem quiser. Vejo-a que aperta a cinta, bamboleia as ancas, estremece as nádegas, mira-se e remira-se no espelho, repara no meu olhar de admiração, murmura uma frase, dá um pulinho, estende vagarosamente a perna, e deixa-se afundar na poltrona. Eu apresento-lhe logo um frasco de sais, ou num gesto de adoração refresco-a com perfume, ela afasta-me com mão negligente, perde o lenço e, sem mais, deixa cair o braço, indolentemente; inclino-me com todo o respeito, levanto o lenço caldo, entrego-lho, recebo de prémio um aceno simpático e um olhar protector. É assim que se porta uma senhora da moda na minha loja de alfaiataria.
Diógenes viu uma mulher rezar em posição um tanto ou quanto inconveniente; ignoro se foi perturbá-la para lhe perguntar se não sabia que os deuses podiam ver-lhe as costas; o que sei é que se dissesse de joelhos a Sua Excelência: «as pregas do seu vestido já não estão na moda», mortificá-la-ia muito mais do que se lhe demonstrasse que ofendera os deuses.
Ai da simples mulher de limpeza, ai da serviçal mais modesta, que não compreenda tudo isto.
Per deos obscero que vale uma mulher quando não está na moda?
Quereis saber se é verdade? Fazei a experiência. Quando a amada, ébria de felicidade, se atira ao pescoço do amante, e num abraço lhe diz com voz melíflua: «Sou tua para sempre!» responde-lhe ele: «Querida amiguinha, o teu penteado está muito fora de moda! » Os homens estão longe de pensar nestes assuntos, mas aquele que tiver esta ciência e se resolver a aplicá-la será o sedutor mais perigoso que possa haver no país.
Ignoro o que sejam as horas de felicidade que o amante frui em companhia da amada, antes do casamento; mas também ele ignora as horas de voluptuosidade que ela conhece na minha loja de modas. Sem a minha autorização e sem a minha sanção, um casamento é um acto nulo, se não for mero negócio de grande vulgaridade. Imaginai os noivos no instante em que vão já a caminho do altar; a noiva progride de consciência tranquila e feliz, porque o seu vestido foi submetido a várias provas na minha casa, onde o comprou. Mas eu precipito-me e digo: «Que pena, minha senhora! A sua coroa de flores de laranjeira não está bem, Se pudesse ainda ajeitá-la ... » A, cerimónia é logo suspensa, se não adiada. Os homens ignoram a arte da alta costura, e ignoram também os privilégios do alfaiate.
Para limitar a reflexão da mulher é indispensável uma grande dose de reflexão no homem; mas de tal reflexão só será capaz o homem que se dedique inteiramente a isso e que para isso possua aptidão. Feliz, pois, o homem que for capaz de conservar a sua independência perante a mulher; saiba ele que a mulher não lhe pertence, como não pertence a outro homem qualquer; a mulher está dominada por esse fantasma que surgiu do monstruoso comércio da reflexão feminina consigo própria: a moda.
A mulher deveria ser obrigada a jurar pela moda, para que os seus juramentos pudessem ser tidos por verdadeiros; porque a moda é objecto constante dos seus pensamentos, e tema que está sempre em relação com todos os outros assuntos de que se ocupe.
Da minha loja de modas saiu e espalhou-se na alta roda a boa notícia de que a moda impõe o uso de um certo modelo de chapéu para ir à igreja, e que este modelo difere um pouco conforme a devoção for de manhã ou de tarde. Quando os sinos tocam, a equipagem pára diante da minha porta. Sua Excelência desce, porque é notório que ninguém confecciona chapéus como os que vendo na minha loja; apresso-me a ir de encontro a Sua Excelência e faço várias reverências; acompanho-a ao gabinete de provas, vou dando-lhe a escolher e experimentar vários chapéus, vou-os ajustando de elegante maneira, o que ela deixa fazer com a máxima tolerância. Foi, enfim, escolhido um; mais uma prova na frente do espelho; a freguesa está contente; rápido, como mensageiro dos deuses, adianto-me, abro a porta do gabinete, inclino-me, vou até à porta do estabelecimento, ponho a mão sobre o peito como um escravo oriental e, animado pela distinção do cumprimento que recebo, tenho a ousadia de lhe atirar de longe um beijo pelo qual significo a minha fervorosa admiração. A senhora vai já subir para a carruagem quando repara que deixa esquecido no gabinete o livro de orações. Vou buscá-lo e depois entrego-lho pela janela do carro. Aproveito o momento para lhe lembrar que não deixe de inclinar o chapéu um poucochinho à direita, e de alterar o penteado se for conveniente. Ei-Ia que segue para a igreja; mas já vai edificada.
Julgais talvez que só as mulheres ricas e as que frequentam a alta sociedade prestam assim as suas homenagens à moda? Enganai-vos! A moda tem o seu culto até mesmo entre as minhas modestas costureiras; eu não fujo a despesas para que elas se apresentem bem vestidas, porque os dogmas da moda devem ser pregados à custa do exemplo dado por quem trabalha no meu salão. As minhas operárias formam um coro de semi-loucas ao qual presido, como sumo sacerdote, dando um exemplo brilhante; procedo com tal prodigalidade na intenção de tornar todas as mulheres ridículas por via da moda.
Sempre que um sedutor me vem dizer que não há virtude feminina que não se venda, - a questão é de preço, -não dou crédito às palavras dele; mas em compensação creio que todas as mulheres acabam por ser fanatizadas por esta auto-reflexão da moda, por esta contagiosa folia que perverte muito mais o sexo feminino do que todos os astuciosos processos do sedutor. Fiz muitas vezes a experiência.
Quando pessoalmente não logro êxito, sirvo-me de outras escravas da moda que pertencem ao mesmo meio social, para obter vitória; porque, se há quem excite os ratos a exterminarem-se uns aos outros, eu ensino as fanáticas da moda a morderem-se umas às outras, como a tarântula.
O jogo é, porém, mais sério, quando o homem aparece de permeio.
Não sei se sirvo a Deus se ao Diabo, mas tenho razão, quero ter razão, quero tê-la enquanto possuir dinheiro, quero tê-la até que o sangue jorre dos meus dedos. Costumam os fisiologistas desenhar o corpo da mulher com a deformação que resulta de uso nefasto do espartilho, e, ao lado, para comparação, desenham a imagem normal da formosura feminina. O fisiologista tem razão; mas de que lhe vale ter razão, se contra ele está a realidade: todas as mulheres usam espartilho. Imaginai, na sua miserável enfermidade, a excentricidade desta doença que é a moda(…)
Se alguma vez eu descobrir uma rapariga cuja modéstia humilde não tenha sido ainda corrompida pela indecente frequentação da sociedade feminina, farei o possível por que ela caia. Atrai-la-ei às minhas redes, e, depois, de presa, levá-la-ei ao lugar do sacrifício, quero dizer, à minha loja de modas. Na atitude mais desdenhosa que possa tomar a minha soberba desenvoltura, dispo-a; ela fica esmagada de terror; mas um riso que se ouve na sala ao lado, onde trabalham as minhas costureiras embuçadas, aniquila-a de vez. Quando ela parecer mais louca do que uma internada em hospital de alienados, ou ainda mais extravagante, a ponto de nem sequer ser admitida no hospital, então poderá sair da minha casa; está encantada; porque está encantada, nenhum homem, nenhum deus, conseguirá agora atemorizá-la; é que ela agora... está na moda.
«Compreendeis-me, agora? Compreendeis porque é que vos chamo conjurados, mas ainda não iniciados? Compreendeis agora a minha concepção da mulher?
Nesta vida, tudo é questão de moda: o temor de Deus, o amor, as crinolinas, os brincos nas orelhas e no nariz. Quero, pois, com todas as minhas forças, correr em auxílio do nobre génio cujo intento é o de rir do mais ridículo de todos os animais. Se a mulher tudo reduziu e referiu à moda, quero eu prostituí-Ia graças à moda, como ela merece; não tenho tréguas, eu, alfaiate; a minha alma ferve só de pensar na minha tarefa; quero que a mulher acabe por se mostrar de brincos na ponta do nariz. Não procureis, pois, objecto digno da vossa paixão; renunciai ao amor como quem foge da vizinhança mais perigosa; a vossa amante acabaria por querer passear convosco, para estrear os brincos novos no nariz.»
(…)Quando um amante infeliz paga por preço exagerado um simples beijo, isso prova, a meus olhos, somente que ele não sabe pegar nem largar. Eu nunca pago caro de mais um beijo; deixo esse prejuízo às beldades femininas. Que significa um beijo?
Quem, aos vinte anos, não sabe que há um imperativo categórico: Goza!, é uma pessoa ridícula. Quem não cumpre esse dever, é um puritano ou um doente.
Eu, porém, pratico o galanteio. Porque não? A galantaria não custa nada, com ela não se perde e muito se pode ganhar; a galantaria é a condição indispensável do prazer erótico. É o código secreto, entre o homem e a mulher, da volúpia sensual. É em suma, tal e qual como o amor: uma linguagem, porque é feita de sons, -uma linguagem natural de desejos encobertos que incessantemente se alternam nas reciprocas funções.
Compreendo perfeitamente que um amante infeliz esteja tão falhado de galantaria que queira converter o seu débito em papel de crédito para a eternidade. Compreendo e não admito, porque, para mim, a mulher tem um valor inexcedível. É o que eu digo a cada uma delas, e digo a verdade, uma verdade da qual só eu é que não sou vítima. Não vejo que, na minha tabela de preços, a mulher perdida tenha menos valor do que o homem. Não que eu me dedique a colher flores murchas, porque deixo esse cuidado aos homens casados que enganam as esposas nos dias de Carnaval.
O que eu pensava da mulher era exactamente o que lhe dizia no momento oportuno; e foi ela, na verdade, quem me convenceu, sim, que me convenceu, de que a minha galantaria era sincera e adequada.
O sal da vida é a decisão, a decisão a servir o desejo.
Quem tiver bastante fantasia para idealizar, bastante gosto para alcançar o solene concerto do prazer, bastante razão para romper, e romper absolutamente como na morte, bastante frenesi para querer gozar ainda; esse será o favorito das mulheres e dos deuses.
Gosto do vinho e da abundância dos festins; são coisas óptimas, sem dúvida; mas éao lado de uma rapariga bonita que eu me sinto bem.
(…) e para que esta nossa festa não acabe mal, vou falar em louvor da mulher.
Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar.
Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera ideia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão prot et contra. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi a mulher que o ensinou; por isso quem mais sabe da mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. À primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as voltar contra o seguinte. Apesar destas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume numa proposição matemática, sempre idêntica, através das variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher.
A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrário, o mais perfeito.
No princípio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o mesmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças na criação de uma obra: tiveram inveja do homem.
O pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legítima defesa. Os deuses pensavam que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue a sua obra. O homem já não podia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam resolvido facilmente o problema; e era isso precisamente o que lhes causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de o subjugar. Que poder espantoso e que poder contraditório não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderem os limites do engenho. Pensaram, meditaram, encontraram. A nova potência foi a mulher, maravilha da criação, que aos próprios olhos dos deuses era superior ao homem; e os deuses, ingénuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida por capaz de fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher para conseguir os seus fins! Tal foi a astúcia dos deuses. A encantadora foi formada e dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardar um império, do que este processo para seduzir o homem?
Tal é a realidade; a mulher é a sedução mais poderosa do céu e da terra. Comparado com ela, o homem é um ente muito imperfeito.
A astúcia dos deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os tempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados; outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram de perto a armadilha. A estes chamo eu eróticos, e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não lhes dão classificação especial, porque, para elas, representam o inefável. Os eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses, porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a ambrosia, e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que é divino, porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que os queriam seduzir; gozam o delicioso sabor da isca, e entre prazeres inigualáveis vão levando uma vida de felicidade, sem que passem além da isca, sem que nunca mordam no anzol. Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se firma um entendimento secreto. Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o segredo, se não quiser sofrer, mais cedo ou mais tarde, a vingança terrível dos deuses.
Que nada se pode imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. O próprio embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles jogaram tudo quando removeram o céu e a terra para formar a mulher.
Deixemos o mito. A ideia do homem responde à sua realidade. Podemos imaginar um só homem, e por essa imagem, representarmo-nos a humanidade. A ideia de mulher é, pelo contrário, uma noção geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum indivíduo. A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma parte deste, mas é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraído uma parte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda que o dividiram, e que a mulher seja a sua metade; num caso como noutro, foi sempre o homem quem ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de igualdade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da divisão. A mulher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta segunda fase; a mulher é um engano só para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito; mas no primeiro momento da sua existência, é o finito elevado à potência de um infinito enganador, -a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira; mas se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito, portanto o multiplicável, portanto um ente colectivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece capaz de compreender; por isso é ele capaz de amar muitas mulheres sem se deixar iludir; por isso ele não vai além da volúpia com que os deuses astuciosos o queriam enganar. A ideia de mulher não se encerra, pois, numa fórmula qualquer; é um infinito de coisas finitas. Quem quiser pensar essa ideia, fazê-la passar por todas as categorias lógicas, ver-se-á na situação de quem, mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de quem se perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem as sereias para se rirem constantemente do ingénuo.
A ideia da mulher, para o pensador, não é mais do que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria do possível é uma fonte inesgotável de fantasia.
Vou agora dizer-vos como é que os deuses fizeram a mulher: um ser fluido, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão, mas que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso desejo do mundo; na sua levitação vence a gravidade, porque todo o segredo das forças, que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece todavia que acabou de sair da gênese do mundo; de uma pureza celestial como a neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os cuidados, consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como excita.
O homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter sido tomado de inexcedível espanto: - espanto de ver a sua própria imagem, ou uma imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar; espanto por ver a sua própria imagem reflectida no espelho da perfeição; espanto de ver o que nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago pressentimento; espanto de ver um elemento indispensável na sua vida, mas que lhe era, porém, dado como um enigma para a sua vida. É precisamente esta contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico. O espanto incita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se completamente com esta visão, não lhe é dado deixar de desejá-la, nunca poderá conseguir aproximar-se dela quanto quer.
Quando os deuses conseguiram imaginar a essência desta forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de o conseguirem, por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa, que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a formosura, mas deixaram a mulher na ignorância da sua inocência, para que ela não soubesse a que fim a destinavam; para maior precaução, envolveram a figura atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o combate, ficava assim assegurada a vitória. A mulher era por natureza atraente; mais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam, estavam radiantes de alegria. Não há no mundo isca tão atraente como a mulher, nenhuma isca tem maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher tudo ignora; no entanto, já no seu pudor oculta um pressentimento da sua natureza; ela adivinha que está separada do homem, separada pelo pudor, que é uma barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e GuInar. O erótico, porém, procede como Pyrane nas Metamorfoses de Ovídio: admira e contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente que para além da vedação, se configura na distância toda a volúpia do prazer.
Tal é a tentação que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam sacrificar aos deuses, oferendaram-lhes o mais delicioso de todos os manjares; assim a mulher é fruto proibido para que se olha com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com a delícia da mulher. Vemo-Ia perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e no entanto, como está distante, infinitamente distante, separada de nós pelo pudor. É como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que ela nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem ela sabe como se denuncia; a vida encarrega-se de quebrar o segredo. Tal como a criança que joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do esconderijo, a imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando baixa pudicamente os olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto, se há «olhares que são como punhaladas», como poderemos explicá-los, se a linguagem deles nos é incompreensível?
A mulher apresenta-se-nos quase sempre tranquila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme, tranquila como a consciência ingénua, ignorante e inocente; respira tranquilamente sem que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue circula com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do coração; e no entanto o homem erótico, se souber auscultar como lhe convém, há-de perceber os ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento inconsciente do pensamento da mulher. Despreocupada como o vento que passa, serena como a profundidade do mar, não deixa a mulher de ser removida por um desejo languescente, de um desejo inexplicado.
Meus amigos: Tenho a alma deliquescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei, porém, que também a minha vida corresponde a uma ideia, se bem que vós a não compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a servir, algo que é divino, e certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher é um engano dos deuses, pode com verdade dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela não é uma ideia ou uma essência, há só uma conclusão a tirar, que é a seguinte: o homem erótico quer amar o maior número possivel.
Só o erótico é capaz de compreender a volúpia de gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a felicidade que consiste em se deixar seduzir. O que digo e sei, aprendi-o com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e sei porque me mantenho ao serviço da ideia por um rompimento tão decisivo como a morte; porque noivo e renúncia estão na mesma relação que masculino e feminino. Só a mulher é que o sabe, e sabe-o na sua relação com o sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de conceber tudo isto. A mulher nunca chega a confessar esta verdade ao marido. Casando aceita resignada o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das coisas, admite que não pode ser seduzida mais do que uma vez. No íntimo, apesar de quanto diga, nunca a mulher volta o seu ódio contra o sedutor. É preciso ver que ele tenha efectivamente realizado acto de sedução, o que implica exprimir a respectiva ideia.
A falsa promessa de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo assim, não há grande infelicidade para a mulher no facto de ser seduzida; pelo contrário, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela, seduzida por arte superior, pode vir a ser uma esposa modelar.
Se eu não tivesse as aptidões necessárias para ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir minha mulher. É que o casamento também exprime uma ideia, e essa ideia tem um significado completamente diferente em relação ao absoluto que a minha ideia exprime. O casamento nunca deveria ser considerado como um ponto de partida, nunca deveria ser confundido com o princípio de uma história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é de que para cada mulher há um sedutor possível, mas feliz só será aquela que o encontrar.
O casamento significa, pelo contrário, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que foi uma vez seduzida vai continuar a sua vida ao lado de um marido; por vezes ela olha para trás, com o coração pleno de desejo; mas resigna-se com a sua sorte, até chegar o termo dos seus dias. Morre, sem que a sua morte se compare com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efémera, como imagem de tempos passados. Que mais é a mulher do que um sonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? É assim que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que está já fora do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher.
Junto do marido, a mulher vive no tempo, pertence ao tempo, e o marido também.
Natureza, maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admirar-te, porque a mulher é venustidade do mundo! Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser esplêndido, mas a tua maior glória está em nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e, portanto, sempre o mesmo; na mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade.
O reinado da mulher dura pouco, mas pouco dura também a dor que cai no esquecimento. Creio que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista pelo seu sedutor.
Antes da despedida, quis Constantino saudar os convivas com mais um brinde, bebeu, e atirou com a taça para detrás das costas que foi quebrar-se contra a parede. Os convivas imitaram o exemplo; executaram o gesto simbólico com a solenidade de uma iniciação. Ficou assim satisfeito o desejo com o prazer de quebrar, prazer imperial que, nem por ser mais breve, deixa de ser mais libertador.
Todo o prazer deve começar por uma libação, mas a libação que é seguida da quebra da taça que fica esquecida, como quem apaixonadamente se liberta de toda a lembrança, como quem se liberta da memória e da morte, essa é a libação que interessa os deuses subterrâneos. Tal acto significa um rompimento, e para tal é indispensável muita força, mais força do que para cortar um nó, cuja dificuldade excita e alimenta a paixão; mas paixão necessária para romper, cada qual tem de a adquirir por si próprio. Exteriormente, o resultado é um só e mesmo; mas do ponto de vista da arte, há uma diferença tão vasta como o céu. Ver uma coisa acabar, terminar ou ver quebrá-la por acto livre, distinguir entre um acidente fortuito e uma decisão apaixonada; verificar que uma coisa chegou ao fim como a lição do mestre escola ou que cessou pela operação cesariana do prazer; reconhecer se se trata de uma vulgaridade ao alcance de toda a gente ou de um segredo completamente insuspeitado; - entre tudo isso há grande diferença.
O gesto do Constantino foi simbólico e ao mesmo tempo decisivo; porque, depois, as portas abriram-se de par em par. Tal como o temerário que bate às portas da morte se vê subitamente na presença do génio da aniquilação assim os convivas tiveram ocasião de ver a brigada dos demolidores prontos a desmontar e esfacelar tudo(…)
Já a brisa matinal começava a refrescar a pele aquecida pela circulação do sangue; todos se entregavam ao prazer da nova sensação; as figuras deles e o grupo que formavam causaram-me uma impressão completamente estranha. É que no espectáculo da aurora a sorrir aos campos, aos prados, e a todas as criaturas que, no repouso nocturno, recuperaram forças que lhes permitem ir ter com alegria de encontro ao sol, vemos a benéfica harmonia de todas as coisas; mas ver aquele grupo de noctívagos entre a saudável alegria da natureza que desperta para a vida era espectáculo que produzia uma impressão assaz penosa. Eles faziam lembrar espectros que a alba surpreende, demónios da terra que não podem encontrar fenda onde desapareçam, porque ela só é visível nas trevas, infelizmente para os quais a distinção entre noite e dia se desvaneceu pelo efeito uniformizador do sofrimento.
«O Dr. Guilherme, o assessor de justiça, com a mulher». Dois entes felizes, por demais entregues às doçuras da vida doméstica, demasiado confiantes para se julgarem objecto de curiosidade que não fosse a do sol, cujos raios ainda jovens iam ter voluptuosamente com eles através da folhagem, enquanto a brisa suave passava por entre os ramos, enquanto todos os seres da vida campestre pareciam vigilantes para assegurarem a paz daquelas paragens. O casal feliz não foi surpreendido, nem se sentiu observado. Eram marido e mulher; via-se logo ao primeiro lance, por mau observador que se fosse. É que os amantes nunca se sentem em segurança quando estão um ao lado do outro, ainda que nada, nada de exterior neste vasto mundo, nada de manifesto, nada de secreto, tenda leal ou traiçoeiramente a perturbar-lhes a felicidade; parece haver sempre uma potência que quer separá-los, quebrar aquela felicidade, por mais fortemente que estejam abraçados; dir-se-ia que hão-de estar perpetuamente em guarda contra um inimigo, e que por isso nunca se podem sentir tranquilos e seguros. Não acontece o mesmo com os casados, como não acontecia com o nosso casal.
(…) «Bebe enquanto o chá está quente. Olha que a manhã está um pouco fria; o menos que posso fazer é interessar-me pela tua saúde.»
«O menos?» perguntou o assessor com intencional laconismo. «Sim, ou o mais, ou tudo». O assessor fixou-a com um olhar perplexo e inquisitivo, e a mulher respondeu quando ele começou -a saborear a bebida:
«Ontem interrompeste-me quando abordei o assunto, voltei a pensar e a repensar nele, mas principalmente agora, e já sabes a propósito de quê. Tenho a certeza de que se não fosses casado, terias chegado a uma posição muito mais elevada na sociedade».
«Acreditas a sério no que disseste, minha filha?»
« Que queres tu dizer com isso?»
«Perdoo a tua tolice de há pouco, já que depressa a esqueceste, porque nem sempre falas com juízo. Que é que eu poderia fazer na alta sociedade, se tivesse ficado solteiro?» O assessor começou a tamborinar com a mão direita na mesa, e a trautear uma canção qualquer de que mal se percebiam as palavras; e tal como o desenho da trama, que aparece e desaparece, no trautear reaparecia o estribilho da canção: «Foi à mata cortar a lenha, o homem mais a mulher». Depois do discurso melodramático, que o assessor sublinhara com as estrofes da canção, depois das múltiplas explicações da esposa ao esposo, este proferiu a réplica.
«Não ignoras que as nossas leis permitem que o marido bata na mulher; é pena que a lei seja omissa, e não esclareça em que casos».
Ela riu da brincadeira, e aproveitou logo a ocasião para dizer: «Mas porque é que tu nunca me queres ouvir a sério quando te falo nestas coisas? Não me compreendes. Falo-te com franqueza, com sinceridade. Esta ideia é-me querida. Se tu não tivesses casado comigo, não pensaria nisso; mas como estamos casados, tenho de falar no que penso. Se verdadeiramente me amas, ouve-me a sério e responde-me com a mesma franqueza».
«Isso é o que não te posso prometer, porque nunca dizes coisa razoável. Se não queres que me ria, nem que te bata, deixa-me esquecer o assunto. Ou deixas de falar nisso, ou tenho de fazer-te calar de qualquer maneira. Bem vês que tudo isto é uma facécia; por isso tem várias maneiras de lhe dar resposta». Levantou--se, beijou a mulher na testa, deu-lhe o braço, e ambos seguiram por entre as sombras de uma alameda, até que desapareceram.
Querem talvez saber quem sou eu? Ninguém mo pergunte. Se até agora ninguém tratou de se informar, já é tarde, porque o pior passo já foi dado. Aliás, não sou digno de que se interessem por mim; porque sou um ente insignificante, a personificação da insignificância, e uma pergunta como essa apenas serve para me envergonhar. Eu sou a pura existência, um pouco menos do que nada. Eu sou a pura existência que passa despercebida no meio de qualquer companhia, porque da mesma maneira que o puro devir em cada instante vou ser e deixo de ser. Sou como o traço que na adição separa as parcelas da soma; quem há que se preocupe comum traço? Não tenho poder algum por mim próprio (…) Ao publicar agora o manuscrito, continuo a ser um insignificante, porque o manuscrito não é meu (…). Como editor, na minha nulidade não sou mais do que uma espécie de Nemésis (…) que se julgava, ele, autorizado a publicar esta obra.
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