Liev Tolstói - Guerra e Paz
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Quem é que no nosso tempo há-de estar sereno, desde que seja pessoa de coração?
Ser entusiasta era a sua função social, e até mesmo quando não era essa a sua disposição natural procurava sê-lo, para que as pessoas suas conhecidas se não sentissem desapontadas.
É a nós, e só a nós, a quem compete resgatar o sangue do justo...
(…) abria muito os olhos, como uma criança diante de uma loja de brinquedos. Só receava perder qualquer sábia observação que lhe fosse dado ouvir.
O visconde era um jovem amável, de traços finos e maneiras suaves, que a si mesmo, visivelmente, se considerava uma figura sensacional, embora, por mera boa educação, se oferecesse, modestamente, à curiosidade da sociedade em que se encontrava. Ana Pavlovna, visivelmente também, dele tirava partido para regalo dos seus convidados. À semelhança do chefe de mesa, que gosta de apresentar, como coisa superlativamente delicada, uma posta de carne em que ninguém ousaria tocar numa cozinha sórdida, assim, na sua reunião.(…) E o jovem foi apresentado à sociedade sob o seu ângulo mais distinto e favorável, como um rosbife, num prato bem quente, todo guarnecido de salsa.
Helena era tão bela que não traía a mais pequena sombra de coquetterie; pelo contrário, parecia ter vergonha da sua incontestável, da sua por de mais poderosa e por de mais triunfante beleza. Dir-se-ia ser seu desejo, sem o conseguir, amortecer-lhe o próprio esplendor.
Napoleão tinha tido, de súbito, um pequeno desmaio, coisa que lhe acontecia frequentes vezes, e ficara à mercê do duque, circunstância de que este não quisera tirar partido. Bonaparte, mais tarde, vingara-se desta magnanimidade do duque mandando matar o adversário.
A influência de que se desfruta na sociedade é um capital que convém salvaguardar para que se não dissipe. O príncipe Vassili sabia-o muitíssimo bem, e, por isso, persuadido de que, se se pusesse a interceder por toda a gente, nada mais poderia pedir para si próprio, raramente lançava mão do crédito de que dispunha (…)
(…) E aí está porque, em nome do bem-estar de todos, ele não podia deter-se perante a vida de um homem.
Napoleão é grande porque soube elevar-se acima da Revolução, porque sufocou os abusos a que ela tinha levado, aproveitando o que nela havia de bom, isto é, a igualdade dos cidadãos e a liberdade do pensamento e da imprensa. E não foi por outro motivo que subiu ao Poder.(…) O povo confiara-lhe o Poder exactamente para que ele o livrasse dos Bourbons, e por isso mesmo é que o povo viu nele o estofo de um grande homem. A Revolução foi uma grande coisa(…)Claro que se praticaram excessos, mas não era isso que tinha importância; o que importava eram os direitos do homem, a abolição dos privilégios, a igualdade dos cidadãos. E estas ideias manteve-as Napoleão integralmente…
A liberdade e a igualdade! Quem é que não gosta da liberdade e da igualdade? Já o Salvador pregava a liberdade e a igualdade. Foram os homens mais felizes depois da Revolução? Pelo contrário, nós é que queríamos a liberdade, e Napoleão foi quem acabou com ela.
Nos actos de um homem de Estado é preciso saber distinguir os que ele pratica como simples particular dos que ele pratica como chefe do exército ou como imperador. Parece-me da mais elementar justiça.
Se as pessoas fossem para a guerra só por convicção, não haveria guerra.
Não compreendo, decididamente não compreendo como é que os homens não podem passar sem a guerra.
Não, te cases nunca, nunca, meu amigo; é o conselho que te dou. Não te cases antes de estares convencido de que fizeste tudo de que eras capaz, antes de teres deixado de amar a mulher que escolheste, antes de a teres visto bem; sem isso, enganar-te-ás cruelmente e sem remissão. Casa-te quando fores velho e já não prestares para coisa alguma... Se o não fizeres, perder-se-á tudo quanto houver em ti de bom e de grande. Tudo irá por água abaixo. Sim, sim, sim! Não me olhes com essa cara de espanto. Se estás convencido de que serás capaz de fazer alguma coisa no futuro, verificarás que tudo acabou para ti, que tudo te está vedado, salvo o salão onde virás a encontrar-te ao nível de qualquer lacaio ou de qualquer imbecil... E aqui tens!
Se tu te ligares a uma mulher, como um forçado com uma grilheta aos pés, perderás toda a liberdade. E tudo quanto em ti possa haver de esperança e de energia tornar-se-á um peso morto, que te oprimirá de desgosto.
O egoísmo, a vaidade, a tolice, a nulidade em tudo, aí tens a mulher quando se mostra tal qual é. Quando a gente a vê na sociedade, julga que vale alguma coisa, e não vale nada, nada, nada!
Nas melhores relações, nas mais amistosas e mais simples relações, a adulação ou os louvores são coisas indispensáveis, tal qual como o azeite é indispensável nas rodas dos carros.
Todas estas palavra de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.
Até agora tenho sido sempre a amiga íntima dos meus filhos e eles têm sempre confiado em mim. - E, ao falar assim, caía no erro de muitos pais, persuadidos de que os filhos não têm segredos para eles.
Em geral somos sempre mais rigorosos com os filhos mais velhos; pensamos sempre fazer deles pessoas excepcionais.
- Ana Mikailovna aqui tens, o dinheiro que precisas para o uniforme do teu filho.
Ana Mikailovna abraçou-se então à condessa a chorar. A condessa também chorou. Ambas choravam, porque eram pessoas de bom coração e excelentes amigas de infância e se viam obrigadas a preocupar-se com essa coisa desprezível que é o dinheiro e ainda também porque já não eram novas... Mas as suas lágrimas não eram amargas...
Podemos morrer tranquilamente na nossa cama e nada nos acontecer no campo de batalha.
Neste triste mundo ninguém pode esperar recompensa, neste triste mundo não há honra nem equidade. Neste mundo só a maldade e a mentira triunfam.
Era sua opinião não haver senão duas fontes do vício humano: a ociosidade e a superstição, e senão duas virtudes: a actividade e a inteligência.
Que coisa terrível e pavorosa é a ausência! Por mais que eu me diga a mim própria que a metade da minha existência e da minha felicidade está contigo, que, apesar da distância que nos separa, os nossos corações estão unidos por laços indissolúveis, o meu coração revolta-se contra o destino e é-me impossível, não obstante os prazeres e as distracções que me cercam, vencer uma certa tristeza oculta que sinto no fundo do coração, desde que nos separámos (…)
Que feliz és, querida amiga, visto não conheceres alegrias tão grandes e dores tão pungentes! És feliz, porque estas são geralmente mais fortes do que aquelas.
(…) Parece-me apenas que o amor cristão, o amor do próximo, o amor pelos nossos inimigos é mais meritório, mais suave e mais belo que os sentimentos inspirados pelos lindos olhos de um jovem a uma rapariga poética e amorável como tu.
(…)Tão novo e já esmagado ao peso de tamanha fortuna, que grandes não irão ser para ele as tentações deste Se me perguntassem o que eu desejo mais nesta vida, diria que quereria ser mais pobre que o mais pobre dos indigentes.
Nunca pude compreender a paixão que têm certas pessoas em perturbar o espírito consagrando-se a leitura de livros místicos que apenas servem para levantar dúvidas nas suas almas, exaltando a imaginação e dando-lhes um temperamento exagerado, em tudo contrario à simplicidade cristã. É bom lermos os Apóstolos e o Evangelho. Não procuremos compreender o que neles há de misterioso, pois, como ousaríamos nós, miseráveis pecadores que somos, iniciar-nos nos terríveis segredos da Providência enquanto estivermos ligados a este despojo carnal que levanta entre nós e o Eterno um impenetrável véu? Limitemo-nos, pois, a estudar os princípios sublimes que o nosso Divino Salvador nos confiou para nosso governo na Terra; procuremos conformar-nos com eles e segui-los; persuadamo-nos de que quanto mais asas dermos ao nosso fraco espírito humano mais isso agrada a Deus, que rejeita toda a sabedoria que d’Ele não vem; e que quanto menos procurarmos aprofundar aquilo que Ele houve por bem esconder do nosso entendimento, tanto mais depressa Ele no-lo revelará graças ao Seu divino espírito.
Dir-se-à que a humanidade esqueceu as leis do seu Divino Salvador, que não fez outra coisa senão pregar o amor e o perdão das ofensas, para não pensar senão na arte de nos matarmos uns aos outros.
Como diz Sterne, «nós gostamos das pessoas menos pelo bem que elas nos fizeram que pelo bem que lhe fizemos a elas»
Uma das regras da prudência é prever sempre o pior.
Como vês, meu velho - comentou -, enquanto não gostamos de alguém é como se estivéssemos a dormir. Não somos mais que pó... Mas assim que um homem começa a amar, é como se fosse Deus, sente-se puro, é como nos primeiros dias da Criação...
«Um passo para além daquela linha que lembra a que separa os vivos dos mortos e eis-nos no mundo desconhecido do sofrimento e da morte. E lá adiante que é que está? Lá adiante, para além deste campo e desta árvore e daquele telhado iluminado pelos raios do Sol? Ninguém sabe e ninguém o deseja saber. Toda a gente tem medo de transpor aquela linha e ao mesmo tempo há como que uma tentação de o fazer; e o certo é que todos sabem que mais tarde ou mais cedo haverá que transpô-la e que conhecer o que lá existe, do outro lado da linha, exactamente como é inevitável virmos a saber o que fica do outro lado da morte. E no entanto todos nós nos sentimos fortes, saudáveis, cheios de vida.» Eis o que sente, sem dar por isso, todo o soldado diante do inimigo, e esta sensação, naquele instante, dá um brilho particular, um sentimento de rude alegria ao mais pequeno incidente.
No meu coração e neste sol há tanta felicidade, enquanto que neste lugar.., só há gemidos, dor, terror, e esta confusão, esta pressa... E lá estão a gritar outra ordem e todos começam a recuar, correndo, e eu também corro com eles, e ela aí está, a morte em cima de mim, em volta de mim... Um segundo, e nunca mais verei este sol...
(…) garanto-lhe que se fosse possível uma pessoa saber o que acontece depois da morte, ninguém teria medo de morrer. Temos medo do desconhecido, é o que é. Por mais que a gente diga que a alma vai para o Céu.., a verdade todos nós sabemos que Céu é coisa que não existe na atmosfera.
É claro que ele não costumava dizer de si para consigo, por exemplo: «Este indivíduo é actualmente uma pessoa poderosa, há toda a vantagem em que eu conquiste a sua confiança e a sua amizade, para poder vir a tirar daí algum proveito.» Apresentava-se o indivíduo importante: instantaneamente o seu instinto lhe segredava que este homem podia ser-lhe útil, e ei-lo que se relacionava com ele e na primeira ocasião, sem que se tivesse preparado para isso, instintivamente por assim dizer, lisonjeava-o, tornava-se-lhe familiar, insinuava-lhe algumas palavras sobre as suas necessidades. (…) Era constantemente atraído para as pessoas mais poderosas e mais ricas do que ele, e possuía a arte pouco vulgar de aproveitar o momento favorável para delas extrair o que lhe era vantajoso.
Tinha-se visto obrigado a receber uma infinidade de pessoas que nunca tinham querido saber sequer da sua existência e que se teriam mostrado agora muito pesarosas e ofendidas caso ele, porventura, as não quisesse ver. Todas estas variadas personalidades: homens de negócios, parentes, conhecimentos, todas se mostravam, unanimemente, de uma grande amabilidade para com o moço herdeiro, todas estavam incontestável e evidentemente convencidas das suas altas qualidades. A cada passo ouvia estas palavras: «com a sua extraordinária bondade», ou então: «uma pessoa de coração tão excelente», ou: «o senhor, que tem uma tão bela alma, conde...», e outras coisas do mesmo género. E de tal maneira que, no fim de contas, principiou a acreditar sinceramente na sua extraordinária bondade, na sua extraordinária inteligência, tanto mais que no fundo do seu coração sempre se julgara muito bom e muito inteligente. Até mesmo as pessoas que anteriormente se tinham mostrado para com ele malévolas ou hostis agora eram todas ternura e amabilidade.(…) Agora tudo quanto ele dissesse, fosse o que fosse, imediatamente era considerado encantador.
As duas mulheres deram-se sinceramente ao trabalho de a embelezar. Tão pouco bonita era que nenhuma delas se lembraria de a considerar como rival; e foi francamente por isso, com essa convicção sólida e ingénua das mulheres no poder que tem a toilette para as fazer belas, que se puseram a vesti-la.
(…) Que importância poderiam ter todas essas misérias ao pé dos desígnios de Deus, d’Aquele sem a vontade do qual nem um só cabelo pode cair da cabeça do homem?
Anatole nem era inventivo nem de compreensão rápida, nem sequer eloquente a conversar, mas tinha, no entanto, uma qualidade preciosa em sociedade: serenidade e segurança, uma segurança que nada seria capaz de abalar. Quando um homem pouco seguro de si se cala a primeira vez que vê alguém, com plena consciência do que há de indecoroso no seu silêncio e dando tratos à imaginação para encontrar um tema de conversa, o efeito não é bom.(…)«Se o meu silêncio os incomoda, porque não falam? Cá por mim, não me interessa» Dir-se-ia proclamar: «Ah, sim, eu conheço-vos muitíssimo bem, muitíssimo bem, mas para que me hei-de eu incomodar com isso? Grande prazer lhes dava, está claro!»….
Por uma tendência característica da juventude, que detesta os caminhos trilhados, não quer imitar o que está feito, antes, pelo contrário, gosta de exprimir os seus sentimentos de maneira nova, a seu modo, desde que, pelo menos, não seja como o costumam fazer as pessoas de idade, muitas vezes, aliás, pouco sinceramente.
Entre a infantaria e a cavalaria vinha a artilharia, com longas colunas de canhões bem polidos e reluzentes, que estremeciam sobre as rodas, num trepidar metálico, de mechas acesas, dirigindo-se para os locais designados. Os generais, de grande uniforme, corpulentos e muito cingidos, para darem a impressão de mais magros, a nuca apertada nas golas, com as bandas e todas as condecorações; os oficiais, rebrilhantes e janotas; os soldados, de cara barbeada e lavada, com o seu correame a brilhar; os cavalos, bem arreados e nédios, brilhavam como cetim, as crinas alisadas pêlo a pêlo, tudo, numa palavra, dizia ir passar-se um acontecimento importante e solene, que nada tinha de brincadeira. Generais e soldados sentiam não serem nada, não passarem de grãos de areia de um oceano humano, bem conscientes da sua força enquanto elementos daquele todo imenso.
Também ele sentia o que todos os demais soldados sentiam: olvido de si próprio, orgulho de um tal poder, entusiasmo apaixonado por aquele que era o objecto de tamanho triunfo:
«Uma só palavra daquele homem- o Imperador», pensava, «e aquela massa inteira, de que ele não era mais que uma ínfima partícula, lançar-se-ia ao fogo ou à água, precipitar-se- ia no crime ou na morte, praticaria os mais heróicos actos.»
É bom para o Rostov, a quem o pai manda seis mil rublos de uma assentada, isso de se não querer vergar diante de quem quer que seja, de não querer ser lacaio de ninguém. Mas eu, que só comigo posso contar, tenho de tratar da vida e de não perder as boas oportunidades.
E o tagarela do Dolgorukov, dirigindo-se ora a Bóris ora ao príncipe André, contou que Bonaparte, querendo experimentar o embaixador russo Markov, deixara cair de propósito o lenço na sua presença e ficara à espera que Markov o apanhasse. Então este deixara cair também o seu lenço ao lado do de Bonaparte e, apanhando o seu, não tocara no do imperador.
- Encantador - disse o príncipe André.
E Rostov, erguendo-se, pôs-se a deambular pelo meio do acampamento e a sonhar com a felicidade que seria para ele morrer, não para lhe salvar a vida a ele, coisa em que nem sequer ousava pensar, mas simplesmente morrer diante do imperador. Realmente, era um facto: estava apaixonado pelo seu czar e pela glória dos exércitos russos, e todo ele era esperança num triunfo próximo. E o certo é que nem só Rostov experimentava tais sentimentos nos memoráveis dias que precederam a batalha de Austerlitz: noventa mil homens estavam igualmente apaixonados, embora não no mesmo grau, pelo czar e pela glória dos exércitos russos.
O movimento que de manhã se concentrara no quartel-general dos imperadores e que impulsionara tudo o mais fazia lembrar o da roda motriz de qualquer relógio monumental. Lentamente uma das rodas põe-se em movimento, depois outra, e uma terceira começa a girar, e cada vez mais depressa entram em movimento engrenagens, eixos e roldanas; retinem as campainhas, as figurinhas desfilam e os ponteiros principiam a mover-se regularmente: este o resultado final.
Tal qual o mecanismo de um relógio, a máquina militar tem de ir até ao fim desde que se verifique o primeiro movimento e também se conserva imóvel até ao momento em que o impulso inicial atinge as engrenagens até aí insensíveis. As rodas rangem nos eixos, as charneiras encadeiam-se, os carretes, graças à rapidez da rotação, gemem, enquanto a roda vizinha se mostra tão tranquila, tão imóvel como se essa imobilidade fosse para durar centenas de anos. O momento chega, porém: um dente apanhou-a, e, obediente ao resto, range, rodando, fundindo-se na acção geral cujo resultado e cuja finalidade se lhe mantêm desconhecidos.
Da mesma maneira que no relógio o movimento distribuído por inúmeras e diferentes engrenagens e roldanas entra numa lenta deslocação, assim as múltiplas evoluções daqueles cento e sessenta mil russos e franceses, o amálgama de todas aquelas paixões, de todos aqueles desejos, de todos aqueles pesares, de todas aquelas humilhações, de todas aquelas dores, de todos aqueles acessos de orgulho, de medo, de entusiasmo, não vieram a ter por resultado senão o desastre de Austerlitz, aquela batalha que passou à história como a dos três imperadores, quer dizer, uma deslocação insensível da agulha da história universal no quadrante da história da humanidade.
Não, não devemos esquecer Stivorov e os seus princípios: nunca nos colocarmos na posição de atacados, mas de atacantes.
(…) como um moleiro que desperta em sobressalto ao deixar de ouvir o ruído sonolento das rodas do moinho, prestou atenção às palavras (…)
Nunca o direi a ninguém, mas, meu Deus, que hei-de eu fazer se a única coisa a que realmente aspiro é a glória e a idolatria dos homens! A morte, os ferimentos, a perda da minha família, nada me mete medo. Por mais queridas que me sejam todas estas pessoas, meu pai, minha irmã, minha mulher, e outros, outros mais, por mais que os estime, e ainda que isso possa parecer terrível e contra a natureza, a todos estou pronto a sacrificar por um minuto de glória, por um instante de triunfo, pelo amor que inspirarei a pessoas que não conheço e a quem nunca conhecerei, pelo amor, precisamente, dessas mesmas pessoas. (…) E apesar de tudo só uma coisa me interessa, só uma coisa me absorve: o desejo de triunfar sobre todos; só me interessa esta força misteriosa, esta glória que eu sinto pairar aqui por cima de mim, no meio desta neblina!
Como é que eu nunca tinha visto isto, este céu sem limites? E que feliz me sinto de o ver finalmente. Sim, tudo é vaidade, tudo é mentira, à excepção deste céu sem fim. Não há nada, absolutamente nada, além dele. E até mesmo isto não existe, nada existe senão a calma e o repouso. E Deus louvado seja por isso mesmo!...
(…) André compreendeu que era dele que estavam a falar e que era Napoleão quem falava. Tinha ouvido chamar sire à personagem de quem se tratava. Mas as palavras afloravam-lhe os ouvidos como se fossem zumbidos de moscas. Não só lhe não interessavam como lhes não prestava a mais pequena atenção, e breve lhe abandonaram o espírito. A testa escaldava-lhe, sentia que o sangue se lhe ia esvaziando das veias, e continuava sempre a ver o céu longínquo, profundo e eterno. Sabia Napoleão ali. Napoleão, o seu herói, e naquele instante Napoleão, em comparação com o drama que se desenrolava entre a sua alma e aquele céu profundo, sem limites, em comparação com aquelas nuvens que fugiam, parecia-lhe perfeitamente insignificante. Naquele instante era absolutamente indiferente aquele que se, debruçava sobre ele, aquele que falava dele; mas estava contente com o facto de aqueles homens se haverem detido, e apenas desejaria que eles o socorressem e o fizessem regressar àquela vida que tão bela lhe parecia desde que a compreendia de outra maneira. Chamou a si todas as suas forças para conseguir fazer um movimento e articular alguns sons. Agitou debilmente a perna e despediu uma queixa fraca e dolorosa, que acordou em si próprio um sentimento de piedade.(…)
(…)- Como é que se sente, meu valente?(…) André calava-se com os olhos fixos em Napoleão. Afiguravam-se-lhe tão medíocres naquele momento os interesses que preocupavam o imperador, o próprio herói que lhe parecia tão insignificante, com a sua vaidade mesquinha e a alegria da vitória, quando comparava tudo isto ao espectáculo daquele céu imenso, pleno de justiça e, de bondade, cuja grandeza compreendera, que lhe era impossível responder. E, com efeito, tudo lhe parecia inútil, miserável, ao pé dos pensamentos severos e sublimes que o esgotamento das forças lhe provocara após a efusão de sangue, as dores e a, expectativa de uma morte próxima. Ao mergulhar o seu olhar no de Napoleão, pensava na vaidade da grandeza, na insignificância da vida, cujo sentido ninguém podia compreender, e ainda mais na da morte, cujo significado se conservava ininteligível e impenetrável a todos os vivos.
O imperador deu meia volta sem esperar resposta(…)
«Que felicidade», dizia ele de si para consigo, fitando a imagem que a irmã lhe confiara com tanta emoção e piedade, «que felicidade, se tudo fosse tão claro e simples como a Maria imagina! Que felizes seríamos sabendo a quem pedir auxílio nesta vida e o que nos espera depois, para além do túmulo! Como eu seria, feliz e que tranquilo eu me sentiria se neste momento pudesse dizer: Senhor, tende piedade de mim!... Mas a quem hei-de eu dirigir esta oração? Será esta força indefinível, incompreensível, a que não só me não posso dirigir, mas que nem mesmo posso exprimir por palavras, o grande todo ou o nada, ou então esse Deus representado nesta medalha que me deu Maria? Não há nada, nada certo, além do pouco valor de tudo quanto eu posso compreender e da sublimidade desse incompreensível que ultrapassa toda a grandeza!»
O elogio de um grande capitão é a melhor recompensa de um soldado.
(…) Mas assim como um jovem enamorado, trémulo e comovido, não ousa exprimir os sentimentos que lhe povoaram as noites, e lança em volta de si olhares assustados como que à procura de auxílio ou da maneira de adiar ou de fugir quando chega o almejado instante em que finalmente se encontra a sós com ela (…)
Ela era muito bonita, muito gentil, e, claro, amava-o apaixonadamente; mas ele atravessava então aquele período da juventude em que o homem parece ter tanta coisa a fazer que lhe falta tempo para se ocupar de ninharias, com que receia prender-se, e estima antes de mais nada a liberdade, que lhe é indispensável para tudo o mais.
Na expressão destes jovens, especialmente dos militares, havia um matiz de deferência assaz desdenhosa para com os velhos. Pareciam dizer-lhes: «Não nos recusamos a manifestar-vos respeito e consideração, mas ficai sabendo que o futuro é nosso.»
Ali, como de resto em toda a parte, cercava-o uma multidão que dobrava a cerviz diante da sua riqueza, enquanto ele, habituado a reinar, a todos tratava com uma menosprezadora indiferença.
Pela idade devia estar junto dos jovens, mas pela fortuna fazia parte da roda dos velhos, das pessoas respeitáveis.
Os trezentos convivas tomaram lugar à mesa consoante a sua classe e as suas prerrogativas, os mais nobres mais perto do conviva homenageado: coisa facilmente compreensível, aliás, pois a água corre sempre para onde o solo é mais baixo.
«É um facto. Sentiria um prazer muito especial em desonrar o meu nome e em troçar de mim, precisamente por eu ter dado alguns passos em seu favor e de lhe ter testemunhado a minha protecção e o meu auxílio. Eu sei, eu compreendo o sabor que isso lhe acrescentaria à traição, se fosse verdade o que se diz.
Devemos ser amáveis para com os maridos das bonitas mulheres.
Olha, em duas palavras vou revelar-te o segredo do duelo. Se na véspera de um duelo escreveres o teu testamento e redigires cartas emocionantes aos teus parentes, se pensares na hipótese de poderes ser morto, é que és um imbecil e estás perdido. Se, pelo contrário, fores para esse duelo com firme intenção de matar o teu adversário, e o mais cedo e o melhor que puderes, tudo correrá às mil maravilhas. Era o que me dizia o nosso matador de ursos de Kostroma. «Quem é que não há-de ter medo de um urso?», dizia ele. «Mas quando a gente põe os olhos no bicho, adeus medo, e aí estamos nós prontos a fazer tudo para que a fera se nos não escape.» Pois bem, eu, nestes casos, é o que costumo fazer.
É muito mais nobre reconhecermos os nossos erros do que praticarmos um acto irreparável.
«Mas em que é que procedeste mal?», perguntava ele a si próprio. «Nisto apenas: em seres casado sem amor; em que a enganaste enganando-te a ti próprio.»
Valerá a pena atormentar-se uma pessoa quando a vida não é mais que um segundo relativamente à eternidade?
Ninguém gosta da virtude, que ofusca toda a gente.
Quem é que no nosso tempo não é vítima de intrigas?
Consideram-me má pessoa - dizia. - Está bem, suponhamos que sou assim. Não quero conhecer senão as pessoas a quem estime e por essas sou capaz de dar a própria vida. Quanto aos demais a esses era capaz de os esmagar a todos se os viesse a encontrar no meu caminho. Tenho uma mãe a quem idolatro, de quem não sou digno, dois ou três amigos, no número dos quais conto, e, quanto aos outros, esses apenas os considero na medida em que me podem ser úteis ou nefastos. E quase todos eles são prejudiciais, especialmente as mulheres. Sim, meu velho - prosseguia ele -, tenho encontrado homens dignos, de sentidos nobres e elevados. Mas entre as mulheres, até hoje, só encontrei criaturas que se vendem, e, quer sejam condessas ou cozinheiras, é o mesmo. Ainda não encontrei essa pureza celeste, essa dedicação que procuro na mulher. Se um dia encontrasse uma mulher assim, era capaz de dar a vida por ela. Quanto às que eu conheço... - Teve um gesto de desprezo. - E, acredita, se me interessa viver, é apenas na esperança de ainda vir a encontrar essa criatura celeste, que me regenerará, me purificará, me resgatará.
(…) «Aproveita estes momentos de felicidade, ama e sê amado! Esta é a única coisa real no mundo; o resto é tolice. Só isso deve interessar», eis o que parecia aconselhar aquela atmosfera poética e sentimental.
Devemos experimentar a sorte ou jogar para ganhar?
(…) Oh!, como aquela nota tinha vibrado, e que comovido se sentiu no mais íntimo da sua alma. E era como se estivesse separado do mundo inteiro, como se estivesse mais alto que o mundo todo. «O que vale ao pé disto o que se perde ao jogo e todos esses…. e todas as palavras empenhadas?... Tudo isso não passa de fatuidade! Uma pessoa pode assassinar, roubar, e no entanto sentir-se feliz...»
«O que é o mal? O que é o bem? Que devemos nós amar? Que devemos odiar? O que é a vida? O que é a morte? Que forças dirigem tudo isto?» E não havia resposta a qualquer destas perguntas, salvo uma resposta ilógica, que não explicava coisa alguma. Esta resposta era: «Um dia hás-de morrer e tudo acabará. Tu morrerás e saberás tudo ou deixarás de formular estas perguntas.» Mas morrer era uma coisa horrível.
Nada foi inventado. Apenas podemos saber que não sabemos nada. E este é o mais alto grau da sabedoria humana.
Nunca me atreveria a afirmar que estou na posse da verdade - voltou o Mação, que cada vez impressionava mais o interlocutor com a nitidez e a firmeza das suas palavras - Ninguém só por si pode atingir a verdade. Só pedra a pedra, com o concurso de todos, graças a milhões de gerações, desde o nosso primeiro pai. Adão, até hoje, se vai erguendo o templo digno de ser habitado pelo Grande Deus - acrescentou, cerrando os olhos.
Existe, mas é difícil compreendê-l’O - recomeçou, sem olhar de frente o interlocutor. Se se tratasse de um homem de cuja existência tu duvidasses, eu trazer-te-ia esse homem, pegar-lhe-ia pela mão e mostrar-to-ia. Mas como é que eu, miserável mortal, saberia mostrar a Sua força todo poderosa, a Sua eternidade, a Sua misericórdia infinita àquele que é cego, ou àquele que tapa os ouvidos, ou àquele que fecha os olhos para O não ver, para O não compreender e para não ver e para não compreender a sua própria miséria, a sua própria corrupção? - Ficou um momento calado. - Quem és tu? Que és tu? Julgas-te um (…)- prosseguiu ele, com um sorriso amargo e desdenhoso - e ainda és mais tolo o mais insensato do que o garoto que se entretém com o movimento artisticamente combinado de um relógio e que seria capaz de dizer que pelo facto de não compreender a finalidade de todas aquelas engrenagens também não acredita no artista que o fez. Conhecê-lo é difícil... Durante séculos, desde o nosso primeiro pai. Adão, até aos nossos dias, trabalhámos nessa ciência e ainda estamos muito longe do fim a alcançar: mas é nesta impossibilidade que se revelam a nossa fraqueza e a Sua grandeza.
Não se chega lá pela inteligência, mas pela experiência da vida.
A suprema sabedoria e a verdade são como um orvalho muito puro de que nós gostaríamos de nos sentir repassados. Poderei eu recolher este puro orvalho num vaso impuro e pensar que ele é a própria pureza? Só graças a uma redenção interior poderei fazer que este orvalho que eu venha a recolher em mim tinja um certo grau de pureza.
A sabedoria suprema não se baseia apenas na razão, nas ciências profanas como a física,na história, na química e noutras em que o conhecimento intelectual está dividido. A sabedoria suprema é una. A sabedoria suprema só conhece uma ciência - a ciência do todo, a ciência que explica toda a criação e o lugar que o homem ocupa. Para instilar esta ciência em nós próprios temos de purificar e de renovar o nosso eu interior, e assim, antes de conhecermos, devemos crer e tornarmo-nos perfeitos. E para atingirmos esta finalidade há no interior da nossa alma luz divina, que é a consciência.
Contempla com os olhos da alma o teu ser interior e pergunta a ti mesmo se estás contente contigo. Onde é que chegaste guiado apenas pela inteligência? Quem és tu? É novo, rico, inteligente, cultivado, meu caro senhor. Que fez de todos estes bens que lhe foram concedidos? Está contente consigo e com a sua existência?
Odeia-la? Então transforma-a, purifica-te, e, à medida, que te fores purificando, conhecerás a sabedoria. Lance um olhar à sua existência, meu caro senhor. Como é que a passou? Em orgias e no deboche. Tendo recebido tudo da sociedade e sem nada lhe restituir, adquiriu a riqueza. Que uso fez dela? Que fez pelo próximo? Já pensou nas dezenas de milhares dos seus escravos? Ajudou-os, porventura, física e moralmente? Não. Tirou benefício do seu trabalho para levar uma vida desregrada. Eis o que o senhor fez. Escolheu porventura uma profissão em que fosse útil ao próximo? Não. Tem passado a vida inteira ocioso. Em seguida, veio o casamento, meu caro senhor, e o senhor assumiu a responsabilidade da conduta de uma mulher. E que fez? Não a ajudou a procurar o caminho da verdade e arrastou-a para o abismo da mentira e da infelicidade. Um homem ultrajou-o e o senhor procurou matá-lo, e é o senhor quem diz agora que não acredita em Deus e que odeia a, sua própria existência. Não há nada de estranho em tudo isso, meu caro senhor!
O reitor comunicou ao recipiendário as sete virtudes, correspondentes aos sete degraus do templo de Salomão, que cada mação deve cultivar em si próprio. Estas virtudes eram as seguintes: 1ª A modéstia, que guarda os segredos da ordem; 2ª A obediência aos seus superiores; 3ª Os bons costumes; 4ª O amor da humanidade: 5ª A coragem; 6ª A generosidade, e 7ª O amor da morte.
- Em sétimo lugar - disse-lhe o reitor - esforçai-vos, pensando muitas vezes na morte, por chegar a encará-la não como uma inimiga terrível, mas como uma amiga.., que liberta desta vida de misérias a alma atormentada pelos trabalhos da virtude para a introduzir na mansão da recompensa e do repouso.
(…)«Nos nossos templos», dizia o grão-mestre, «não conhecemos outros graus além daqueles que separam a virtude do vício. Evita oposições que possam destruir a igualdade. Corre em auxílio do teu irmão, seja ele quem for, ajuda aquele que se extraviar, levanta aquele que cair e jamais nutras cólera ou ódio contra o teu irmão. Sê amável e afável. Alimenta em todos os corações a chama da virtude. Partilha a felicidade que tiveres com o teu próximo e que a inveja não perturbe nunca esta bem-aventurança. Perdoa ao teu inimigo, e vinga-te dele fazendo-lhe bem. Desde que cumpras assim a lei suprema voltarás a encontrar os trilhos da tua antiga grandeza perdida.»
A fonte da felicidade não está fora de nós, mas em nós mesmos...
Como sempre acontece depois de uma longa separação, não foi fácil encetarem desde logo uma boa conversa. As perguntas e as respostas eram breves, posto abordassem assuntos de que tanto um como outro estavam certos de ser dignos de mais larga explanação. Mas, por fim, voltaram a tratar dos assuntos a que apenas se haviam referido abreviadamente: o passado, os seus planos de futuro, a viagem de Pedro, as suas ocupações, a guerra, etc.
Ao homem não compete decidir do que é justo ou do que o não é. O homem sempre errou e sempre há-de errar, e principalmente naquilo que ele considera justo ou injusto.
Tu viveste para ti e entendes que vivendo assim ias malogrando a tua vida e que não soubeste o que era felicidade senão no dia em que começaste a viver para os outros. Eu, por mim, fiz a experiência contrária. Vivi para a glória. E o que é a glória? É também o amor do próximo, o anseio de fazer alguma coisa por ele, o desejo de merecer os seus louvores. Quer dizer que eu vivi para os outros e que não só estive em risco de comprometer a minha existência, como a malogrei, de facto, completamente. Eis porque, de então para cá, desde que não vivo senão para mim, passei a ter uma vida mais serena.
- Mas como é possível viver-se só para si? - interrogou Pedro, cada vez mais exaltado.
- E seu filho, sua irmã, seu pai?
- Continuam a ser eu, não são os outros - replicou André. - Os outros, o próximo, como dizem, são a causa principal do erro e do mal. O próximo são esses camponeses de Kiev a quem tu queres fazer bem.
- Onde é que pode haver erro e mal no desejo que há em mim de praticar o bem? E se eu não fizer quase nada, e mal, a minha boa intenção lá está sempre, e, seja como for, sempre fiz qualquer coisa. Que mal é que pode haver em ensinar aos desgraçados dos nossos camponeses, homens como nós, que vivem e morrem sem outra noção de Deus e da verdade que não sejam ritos vãos e orações sem qualquer significado para eles, que mal é que pode haver em ensinar-lhes a consoladora crença numa vida futura, numa recompensa proporcional aos seus actos, num alívio das suas dores? Que mal, que erro é que haverá em impedir que os homens morram de doença sem qualquer socorro, quando é tão fácil auxiliá-los materialmente, arranjando para eles remédios, hospitais e asilos onde acabem os seus tristes dias? E não será um bem palpável e incontestável que eu procure descanso e alívio no trabalho para o camponês e para a mulher que amamenta o seu filho, pobres deles que não sabem o que seja repouso nem de noite nem de dia?... - E não só ninguém me dissuadirá de que não foi um bem o que eu pratiquei, como ninguém me convencerá de que o André não pensa da mesma maneira. E o mais importante - concluiu - e é isso que eu sei, e disso estou convencido, é que a única verdadeira felicidade da vida é a satisfação que se tira do bem que se faz.
- Sim, se se puser assim o problema, é outra coisa - disse o príncipe André. - Eu construo uma casa, planto um parque, tu fundas hospitais. Tanto o meu acto como o teu podem ser considerados mero passatempo. Mas, quanto ao que é justo, ao que é o bem, deixa Aquele que tudo sabe, e não a nós, o cuidado de o decidir. Tu dizes: escolas, instrução e tudo o mais - continuou, contando pelos dedos -, isso quer dizer que tu queres tirar aquele - apontou para um camponês que ia passando e os saudou - do seu estado animal e dar-lhe o sentido das necessiddes morais. Pois eu penso que a sua única felicidade possível é a felicidade animal, e tu queres privá-lo disso. Invejo-o, e tu, tu queres torná-lo eu, sem lhe dares, aliás, todos os meus recursos. Em segundo lugar, tu dizes: aliviemo-lo do seu trabalho. Mas, na minha opinião, o trabalho físico, para ele, é uma necessidade, uma condição da sua existência, tal qual como para ti o trabalho intelectual. Tu, tu não podes deixar de pensar. Eu deito-me às três horas da manhã e tanta coisa me vem à cabeça que não posso conciliar o sono. Revolvo-me na cama, fico sem dormir até alta madrugada, apenas porque penso, e não posso deixar de pensar; da mesma maneira que ele não pode deixar de lavrar ou de ceifar. Sem isso iria para a taberna e ficaria doente. Assim como eu não poderia suportar o seu tremendo trabalho físico - bastavam oito horas para me matar -, ele não suportaria a minha ociosidade física, tanto engordaria que acabaria por morrer. Em terceiro lugar, os hospitais, os medicamentos. Suponhamos que ele tem uma apoplexia. Tu sangra-lo e ele cura-se. Ficará dez anos entrevado, um tropeço para toda a gente. Seria muito melhor e muito mais simples morrer. Outros virão a este mundo e há sempre gente de sobra. Se ao menos tu lamentasses perder um trabalhador encarando o problema como eu, mas tu queres tratá-lo por amor dele próprio. Ele não precisa disso. E, de resto, que ilusão a tua ao pensares que a medicina já curou alguém! Que tem morto muita gente é um facto!
- Ah!, é terrível!, é terrível! - disse Pedro. - Não posso compreender que se viva com semelhantes ideias. Sim, confesso que tenha passado por fases semelhantes ainda não há muito tempo, em Moscovo e em viagem. Mas nessas alturas sinto-me de tal modo arrasado que é como se deixasse de viver; tudo me é odioso.., a começar por mim próprio. Então deixo de comer, deixo de me lavar... E a si. André, que lhe acontece?
- Porque hei-de eu desleixar-me? Isso não é próprio. Pelo contrário, acho que devemos procurar tornar a nossa existência o mais agradável possível. Estou vivo, e a culpa não é minha, por isso é bom que continue a viver o melhor que puder, sem incomodar ninguém, até à hora da morte.
- Mas que o leva a ter semelhantes ideias? Está disposto, então, a ficar assim, sem se mexer, sem qualquer iniciativa...
- A vida se encarrega de nunca nos deixar em repouso. Ficaria encantado se nada tivesse que fazer, mas deu-se o caso de a nobreza da região me ter dado a honra de me escolher para seu marechal: só eu sei quanto me custou ver-me livre dessa gente. Não havia meio de perceberem que eu era completamente destituído dos predicados necessários para o desempenho de tal cargo, que me faltava essa espécie de vulgaridade parrana e buliçosa, a qualidade mais apreciada nas pessoas nessa situação. E, ainda por cima, tenho esta casa, que foi preciso construir para ter umas telhas minhas que me cubram e onde eu possa viver em paz. E agora a milícia.
- E porque é que não voltou para a tropa? - Depois de Austerlitz?
- Não, graças a Deus! Jurei a mim mesmo não voltar a servir no activo. E estou disposto a não o fazer. Ainda mesmo que Bonaparte aqui aparecesse, eu não voltaria a pegar em armas. Sim, como te dizia - prosseguiu ele, serenando,- agora estão a mobilizar a milícia, meu pai é o comandante - chefe da 3ª região e a única maneira que eu tenho de evitar o regresso ao meu posto é estar ao seu serviço.
- Quer dizer, portanto, que continua a prestar serviço.
- Sim, continuo. Calou-se por alguns instantes.
- E quais são, em rigor, as suas funções?
- É simples. Meu pai é um dos homens mais notáveis da sua época. Mas está velho e, embora não possamos dizer que é uma pessoa dura, é facto que tem um carácter muito impetuoso. O hábito em que está de dispor de um poder sem limites torna-o terrível, principalmente agora, que depende, como chefe da milícia, directamente do imperador. Há uns quinze dias, se eu tenho chegado duas horas mais tarde, tinha mandado enforcar um escriba em Iuknov - acrescentou André com um ligeiro sorriso. - E então presto serviço porque ninguém a não ser eu tem influência sobre meu pai, e será esta a única maneira de evitar que ele cometa qualquer acto de que mais tarde viria a sentir remorsos.
- Então, como vê...
- Sim, mas não é como o senhor pensa! - prosseguiu André. - Não tinha nem tenho qualquer sentido de benemerência para com esse canalha desse escriba, que roubara uns pares de botas aos milicianos. Teria sentido mesmo um grande prazer em vê-lo enforcado, mas tive pena de meu pai, isto é, de mim próprio. - Com que então, queres dar carta de alforria aos teus camponeses! óptimo! Mas não vejo que isso seja um bem, quer para ti, pois estou convencido de que nunca açoitaste fosse quem fosse nem nunca mandaste ninguém para a Sibéria, quer muito menos para os teus camponeses. De resto, quando acontece baterem-lhes, açoitarem-nos, deportarem-nos para a Sibéria, não creio que venham a sentir-se pior por isso. Na Sibéria continuam a mesma vida animal. E, quanto aos açoites, acabam por se curar das feridas e não ficam por isso mais infelizes do que anteriormente. Mas aqueles para quem eu julgo necessária a liberdade são os que moralmente estão perdidos, os carregados de remorsos, os que fazem tudo para calar a voz da consciência, os que se endurecem no abuso que cometem do seu direito de punir, justa ou injustamente. Eis os que lamento e no interesse de quem gostaria de ver libertar os servos. Tu, naturalmente, nunca conheceste qualquer, mas eu tenho tratado com criaturas muito dignas, educadas na tradição do poder sem limites, que, com o correr dos anos, se tornaram irritáveis, se fizeram duras e cruéis; conscientes disso, mas sem se poderem dominar, acumulam assim sobre si próprias desgraças sobre desgraças. Sim, isto é que me inspira piedade: a dignidade do homem, a tranquilidade da consciência, a pureza da alma comprometida, e não as costas e as cabeças dos outros, pois, quer as açoitem, quer as tosquiem, nem por isso deixam de ser costas e cabeças (Tosquiar alguém é fazê-lo assentar praça. (N, dos T.)
(…)- Acha que lhe é impossível ver o reino do bem e da verdade sobre a terra. Também eu não acreditava em tal coisa e não é possível admiti-lo se se considerar a nossa vida como o fim de tudo. Sobre a terra, principalmente sobre a terra - dizia ele, apontando para os campos -, não há verdade: tudo é mentira e maldade. Mas no universo, no conjunto do universo é a verdade que reina. Nós somos por um momento filhos da terra, mas eternamente somos filhos do universo. Não sentirei eu, no fundo da minha alma, que sou uma parte deste todo, enorme e harmonioso? Não sentirei eu que nesta imensa e infinita quantidade de seres, através da qual se manifesta a divindade ou a suprema força, o que vem a dar no mesmo, eu sou um fuzil, um degrau da escada dos seres que vai do mais ínfimo ao mais elevado? Se eu vejo, se vejo claramente esta escada que vai da planta até ao homem, porque é que eu hei-de partir do princípio de que ela se detém precisamente em mim em vez de alcançar sempre mais longe, cada vez mais longe? Eu sinto em mim que, pela mesma razão de que nada se perde no universo, também eu não posso desaparecer e que continuarei a ser para todo o sempre como sempre tenho sido. Sinto que além de mim e para além de mim há espíritos vivos e que é nesse universo que reside a verdade.
- Sim, é a doutrina de Herder - interveio André. - Mas, meu caro, não é essa doutrina que me convence: a vida e a morte, sim. O que me convence é ver uma criatura a quem queremos muito, a quem muito estamos presos, para com quem nos sentimos culpados e de que esperamos remir o mal que lhe fizemos - e ao dizer estas palavras a sua voz tremia e desviava a vista - e que de um momento para o outro começa a sofrer, a padecer tremendas dores e deixa de existir... Porquê? É impossível que não haja uma resposta para isto! E eu estou convencido de que há... Eis o que me convence, eis o que me convenceu - concluiu ele.
- Claro, claro - repetiu Pedro. - Mas não é isso precisamente que eu estive a dizer?
- Não. O que eu quero dizer é que não são os raciocínios que me convencem da necessidade duma vida futura, mas este facto apenas: o de irmos pela vida fora de mão dada com um ser humano, e este ser, de repente, desaparecer além, no nada, e então determo-nos diante desse abismo e ficarmos a olhar. E eu, eu olhei...
- E então? Sabe que há um além, que há alguém. Além é a vida futura. Esse alguém é Deus. Se Deus existe, se há uma vida futura, a verdade existe, existe a virtude, e a suprema felicidade do homem consiste no esforço para as alcançar. É preciso viver, é preciso amar, é preciso crer, pois não vivemos apenas nesta hora, sobre este pedaço de terra, mas sempre vivemos e eternamente havemos de viver, além, no Todo.- E apontava para o céu.
(…)- Sim, se ao menos assim fosse! - exclamou. - Vamos, o carro espera-nos. - E, pondo os pés em terra, soergueu os olhos para o céu que Pedro lhe apontara e, pela primeira vez depois de Austerlitz, tomou a ver aquele céu profundo e eterno, o céu que havia contemplado estendido no campo de batalha, e sentimentos há muito nele adormecidos, melhores sentimentos, despertaram subitamente na sua alma, como numa ressurreição de alegria e juventude. Entregues aos hábitos quotidianos da vida, todas as suas tendência íntimas se haviam desvanecido pouco a pouco, mas, embora não tivesse sabido nutri-las, o certo é que continuava a senti-las vivas dentro de si. Desta sua conversa com Pedro passou a datar uma vida que, se exteriormente parecia a mesma, no seu foro íntimo passara a ser completamente nova.
A única maneira, de acabarem as guerras é sangrar os homens e porem-lhe água no lugar do sangue.
Rostov ficara mal disposto desde que à entrada vira a expressão contrariada que aflorara ao rosto de Bóris e, como sempre acontece às pessoas em tal estado de espírito, desde logo se lhe afigurou que toda a gente lhe era hostil e que estava ali a servir de estorvo.
A reflexão faz dos homens criaturas secas.
Fazer leis é fácil, mas governar é bem mais difícil.
Como é vulgar nas pessoas habituadas a julgar severamente o próximo, quando se tratava de alguém de reputação, tendia sempre a encontrar nesse alguém uma súmula de todas as perfeições humanas.
A honra não pode ser mantida por privilégios prejudiciais ao bom andamento dos negócios públicos, de que a honra ou é a noção puramente negativa da abstenção de actos censuráveis ou um certo estimulante capaz de nos levar a conquistar a aprovação ou as recompensas em que esta se traduz.
Speranski, na presença do príncipe, exibia um juízo sereno, isento de parcialismo, e mostrava-lhe essa lisonja subtil, à mistura com uma certa presunção, que consiste em um homem reconhecer tacitamente que o seu interlocutor e ele próprio são as únicas pessoas capazes de compreender quão néscios são os demais e sensatas e profundas as suas próprias ideias, as ideias só deles os dois.
Ao entrar para a franco-maçonaria tivera a impressão de pousar o pé confiante na superfície lisa de um pântano. E, mal o pousara, logo se sentira afundar. Para melhor experimentar a solidez do terreno, avançara o outro pé e enterrara-se ainda mais, atolara-se, e agora patinhava, mergulhado até aos joelhos na lama do pântano.
Todos os membros das lojas eram indivíduos com quem Pedro privava na sociedade e era-lhe difícil ver neles só irmãos maçónicos, esquecendo serem também o príncipe B, ou Ivan Vassilievitch D., criaturas que ele geralmente conhecia por fracos caracteres e pessoas sem valor moral. Por debaixo dos aventais e das insígnias maçónicas via aparecer os uniformes e as condecorações, a maior aspiração de tais criaturas. Muitas vezes, ao recolher as esmolas e ao completá-las com os vinte ou trinta rublos solicitados - era frequente uma dezena de membros, metade dos quais tão ricos como ele próprio, deixarem a colecta em débito -. Pedro lembrava-se do juramento maçónico em que cada irmão se compromete a dar todos os seus bens ao próximo, e na sua alma nasciam dúvidas, que procurava desvanecer.
Os irmãos seus conhecidos dividiam-se, para ele, em quatro categorias. Da primeira faziam parte os que não participavam activamente quer nos assuntos das lojas, quer nos problemas da humanidade, exclusivamente ocupados no estudo dos mistérios da ordem, nos problemas relativos à Trindade Divina ou ao tríplice princípio de todas as coisas - o enxofre, o mercúrio e o sal - ou ainda ao significado do quadrado e das figuras simbólicas do templo de Salomão. Pedro venerava esta categoria de irmãos, a que pertenciam os mais antigos, embora não partilhasse das suas preocupações. O lado místico da franco-maçonaria não lhe cativava as preferências.
Na segunda categoria considerava, consigo próprio, aqueles que se lhe assemelhavam, os que procuravam, que hesitavam, e que, sem terem achado na franco-maçonaria um caminho direito e límpido, persistiam na esperança de o vir a encontrar.
No terceiro grupo incluía aqueles - e eram os mais numerosos - que não viam na ordem mais que as suas manifestações exteriores e as cerimónias e que se consagravam ao cumprimento desses ritos sem se preocuparem com o seu conteúdo e o seu sentido oculto.
O quarto, por fim, abrangia igualmente grande número de irmãos, neófitos sobretudo. Nele figuravam, consoante lhe fora dado observar, os que em nada acreditavam, nada desejavam, e que apenas se haviam filiado para conhecer os irmãos ricos e poderosos, graças às suas relações e à sua fidalguia, espécie muito abundante.
Pedro começava a sentir-se pouco contente com a actividade que desenvolvia. A maçonaria, pelo menos a maçonaria que tinha diante dos olhos, na maior parte dos casos afigurava-se-lhe não passar de um puro formalismo. Claro está que não pensava em atacar os fundamentos da própria instituição, mas estava persuadido de que a maçonaria russa ia por caminho errado e se afastava dos seus objectivos. Eis porque no fim do ano abalou para o estrangeiro na intenção de se iniciar nos altos mistérios da ordem.
Após o regresso do estrangeiro convocou-se a reunião solene de uma loja do segundo grau, onde Pedro prometera comunicar a mensagem, de que era portador, destinada aos irmãos de Petersburgo, da parte dos altos dignitários da ordem. A sessão era plenária. Após as cerimónias habituais. Pedro levantou-se e principiou:
«Queridos irmãos, não basta cumprir os nossos mistérios no segredo da loja, é preciso agir.., sim, agir. Estamos neste momento adormecidos e precisamos de agir.» Pegou nas folhas e pôs-se a ler: «A fim de espalhar a verdade pura e de conseguir o triunfo da virtude, devemos libertar os nossos semelhantes dos preconceitos, difundir regras de acordo com o espírito do nosso tempo, darmo-nos à tarefa de instruir a mocidade, unirmo-nos por laços indissolúveis aos espíritos mais esclarecidos, vencer, ao mesmo tempo corajosos e prudentes, a superstição, a incredulidade e a estultícia, formando, entre aqueles que nos são dedicados, pessoas ligadas entre si pela unidade do objectivo e dispondo do poder e da força. Para alcançar esta finalidade é preciso que a virtude prevaleça sobre o vício e que o homem de bem receba já neste mundo recompensa eterna das suas virtudes. Mas a verdade é que a estes altos desígnios se opõe um grande número de instituições políticas externas. Que fazer em tal estado de coisas? Favorecer as revoluções, arrasar tudo, usar da força contra a força?... Não, isso não está nos nossos desígnios. Todas as reformas impostas pela violência são censuráveis, pois nunca corrigirão o mal enquanto os homens continuarem a ser o que são e visto que a prudência dispensa perfeitamente a violência. A nossa ordem deve procurar formar homens decididos, virtuosos e unidos pela identidade de convicção, a qual consiste em querer, por toda a parte e com todas as suas forças, castigar o vício e a estultícia e proteger o talento e a virtude, numa palavra, arrancar da lama os que disso são dignos, para os associarmos à nossa ordem. Só então a nossa instituição terá o poder de amarrar insensivelmente as mãos dos fautores da desordem e de os dirigir sem que eles próprios dêem por isso.
Em resumo, seria preciso estabelecer uma forma de governo universal e dirigente capaz de se propagar pelo mundo inteiro, sem no entanto romper os laços civis dos vários Estados, e sob cuja égide todos os demais governos continuariam a existir de acordo com a sua lei habitual, em tudo livres na sua acção, excepto em oporem-se ao fim supremo da nossa ordem, o qual é o de procurar que a virtude triunfe do vício. Esse o objectivo do próprio cristianismo. Foi ele que ensinou os homens a ser prudentes e bons e a seguirem, para seu bem, o exemplo e as lições dos melhores e dos mais prudentes. No tempo em que tudo estava mergulhado nas trevas bastava exortação só por si. O ineditismo da verdade proclamada dava-lhe uma força especial; mas hoje precisamos de meios muito mais poderosos. Actualmente é necessário que o homem, guiado pela sua própria sensibilidade, encontre na virtude como que um encanto sensual. Não é possível extirpar as paixões. Temos de limitar-nos a dirigi-las para uma finalidade nobre e é por isso que cada um de nós deve poder dar-lhes satisfação nos limites da virtude e a nossa ordem estar pronta a proporcionar-nos os meios.
Logo que haja em cada Estado um certo número de homens dignos de nós, cada um deles se encarregará de formar outros iguais a si: todos acabarão por estar estreitamente unidos e então tudo será possível na nossa ordem, a qual, em segredo, já tanto conseguiu para bem da humanidade.
(…) Havia muito que se não assistia a uma sessão tão tempestuosa. Formaram-se partidos: uns atacavam Pedro, acusando-o de iluminismo; outros defendiam-no. Foi a primeira vez que este se deu conta da diversidade infinita dos espíritos, razão pela qual nenhuma verdade é vista do mesmo aspecto por duas pessoas. Até mesmo aqueles que pareciam seus partidários o compreendiam à sua maneira, sugerindo-lhe restrições, modificações com que ele não podia estar de acordo, uma vez que o seu objectivo principal era precisamente o de transmitir as suas ideias tal qual ele próprio as concebera. No fim da sessão o grão-mestre deu-lhe a entender, com alguma malevolência e num tom irónico, que ele se exaltara de mais e que fora antes o entusiasmo da discussão que o amor da virtude que o determinara. Pedro não respondeu e em poucas palavras perguntou se a sua proposta era aceite. Como lhe respondessem negativamente, saiu sem aguardar as formalidades ordinárias e voltou para casa.
(…)Fiquei surpreendido ao perguntar-me se eu me lembrava do tríplice objectivo da ordem: 1º a conservação e o estudo dos mistérios; 2º a purificação e a regeneração de nós próprios com vista a podermos participar desses mistérios, e 3º o aperfeiçoamento do género humano graças aos esforços feitos em vista desta purificação. Qual destes objectivos é o mais importante e o primeiro deles? Claro está que a emenda e a purificação de nós próprios. É este o único que nós sempre nos podemos esforçar por conseguir, independentemente de todas as circunstâncias. Ao mesmo tempo, porém, é ele que exige de nós os maiores esforços: eis porque, desorientados pelo orgulho, deixamos de lado este objectivo essencial e nos consagramos quer ao conhecimento dos mistérios que no nosso estado de impureza não somos dignos de compreender, quer ao aperfeiçoamento do género humano, quando o certo é que nós próprios estamos a ser exemplo de indignidade e de perversão. O iluminismo não é boa doutrina precisamente porque os seus adeptos se deixaram levar pelo desejo de desempenhar um papel social e é o orgulho que os domina.
A respeito da minha vida familiar, eis o que ele me disse: «O principal dever do franco mação, como acabo de lhe dizer, está no aperfeiçoamento de si próprio. Muitas vezes, porém, julgamos poder alcançar mais depressa este objectivo afastando de nós todas as dificuldades da vida. É o contrário, meu caro senhor», afirmou, «é no meio da agitação do mundo que podemos alcançar os nossos três objectivos: 1º o conhecimento de nós mesmos, pois o homem não pode conhecer-se verdadeiramente senão por comparação; 2º o aperfeiçoamento, que se não alcança senão na luta; 3º a virtude suprema, que é o amor da morte. Só as vicissitudes da vida nos podem mostrar toda a vaidade desta, contribuindo para nos inspirar o amor da morte, isto é, o desejo da ressurreição numa nova vida.»
(…)Aconselhou-me a que não renunciasse a todas as relações com os meus irmãos de Petersburgo e, conquanto me limitasse a desempenhar na loja funções de segunda ordem, que me devia esforçar por desviá-los dos caminhos do orgulho, trazendo-os para a verdadeira senda do conhecimento e do aperfeiçoamento de nós próprios. Além disso, a mim, pessoalmente, aconselhou-me a que antes de mais nada me observasse a mim mesmo e nessa intenção ofereceu-me um caderno - este mesmo em que neste momento escrevo -, onde de futuro registarei todos os meus actos.
Napoleão, que a vira no teatro, dissera dela: «É um soberbo animal.»
(…) os pequeninos seios, ainda adolescentes em alvoroço
Helena parecia já poluída pelo fogo dos milhares de olhos que lhe deslizavam pelo corpo, enquanto Natacha era a perfeita imagem da donzela (…)
(…)tinha razão quando dizia ser preciso acreditar na felicidade para sermos realmente felizes, e eu agora também o creio. Que os mortos enterrem os mortos. Enquanto estamos vivos precisamos de viver e de ser felizes.
Berg sorriu com a consciência da sua superioridade sobre uma fraca mulher e calou-se, dizendo de si para consigo que, afinal de contas, aquela encantadora pessoa a quem chamava esposa era fraca como todas as mulheres e não podia aspirar ao que constitui a dignidade do homem, a dignidade de «se ser um homem»
Entretanto. Vera sorria também, consciente da sua superioridade sobre o virtuoso e excelente marido, o qual, no entanto, em sua opinião, compreendia mal a vida, como, aliás, todos os homens. Berg, que julgava as outras mulheres através da sua própria, considerava-as a todas seres fracos e estúpidos. Vera, julgando os homens através do marido e generalizando as suas observações, supunha que todos eles não faziam outra coisa senão considerar-se cheios de razão, embora na realidade nada compreendessem e não passassem de criaturas orgulhosas e egoístas.
A mulher é tanto mais fiel quanto menos atraente.
No nosso tempo... - Vera falava do seu tempo como em geral as pessoas de espírito acanhado, que supõem ter descoberto e julgado as particularidades do seu tempo e estão persuadidas de que os homens se transformam consoante as épocas (…)
O que sinto agora é completamente diferente do que outrora experimentei. Actualmente o universo divide-se para mim em duas partes: uma, em que ela está presente, e onde tudo é felicidade, esperança, luz; a outra, em que ela não figura, e onde tudo são trevas e dores...
Para quê falar quando as palavras não podem exprimir o que uma pessoa sente?
E, de resto, em que consistia realmente a equidade? A princesa não tinha a mais pequena noção dessa palavra grandiloquente. Para ela todas as complicadas leis da humanidade se resumiam numa só, simples e clara, a lei do amor e do sacrifício, a lei ensinada aos homens por Aquele que, sendo Deus, muito padeceu por amor da humanidade. Que lhe importava a ela a justiça ou a injustiça de outrem? A sua condição era sofrer e amar e isso mesmo estava ela fazendo.
Está escrito que a nossa sina seja o sofrimento, minha querida e boa amiga Júlia. Tão cruel é a perda do teu irmão que acabas de sofrer que eu a não posso explicar senão como uma mercê particular de Deus, que assim quer, por muito vos amar, pôr-te à prova a ti e à tua boa mãe. Ah!, minha amiga, só a religião, só ela, pode, não digo consolar-nos, mas salvar-nos de cairmos no desespero. Só a religião nos pode explicar tudo quanto, sem a sua ajuda, o homem é incapaz de compreender, ou seja, porque chama Deus a Si as criaturas de bom coração, de nobres sentimentos, que sabem dar felicidade aos outros na vida, não fazem mal a ninguém e são mesmo precisas para a felicidade alheia, enquanto deixa viver criaturas más, inúteis, prejudiciais, e um fardo para elas próprias e para os outros. A primeira morte a que assisti e que não mais poderei esquecer - a da minha cunhada - obrigou-me a pensar muito. Assim como tu perguntas ao destino porque foi o teu bom irmão chamado para o seio de Deus, também eu lhe perguntei porque Lisa, aquele anjo, tinha de morrer, ela, que não só nunca fizera mal a alguém, mas em cuja alma só houvera bons sentimentos. E que queres que te diga, minha amiga? Cinco anos são passados e só agora na minha fraca inteligência começo a compreender porque é que ela devia morrer e como esta morte não era senão um sinal da misericórdia infinita do Criador, cujas acções, ainda mesmo quando nós as não compreendemos, são sempre a prova do amor sem limites que Ele dedica à criatura humana. Muitas vezes penso que ela era, naturalmente, de uma inocência angélica de mais para dispor de energias que a deixassem cumprir os seus deveres de mãe. Se como rapariga era irrepreensível, talvez o não tivesse sido como mãe. Agora não só nos deixou a todos, e muito especialmente a André, as saudades mais preciosas, como o certo é que a esta hora já deve ter alcançado lá em cima um lugar que eu não ouso esperar para mim própria. Sem falar da recompensa que terá obtido, esta morte prematura e terrível teve sobre meu irmão e sobre mim o efeito mais benéfico, apesar da nossa dor. Quando passámos por este desgosto, se tais pensamentos me tivessem ocorrido, tê-los-ia afastado de mim com horror; agora, porém, tudo isto se tomou tão claro e incontestável! Se te digo estas coisas, minha amiga, é apenas para te convencer da verdade evangélica, que se tomou a regra da minha vida! «Nem um só cabelo nos cai da cabeça sem a Sua vontade.» E a vontade do Senhor só o Seu ilimitado amor por nós a conduz e é por isso que tudo quanto nos sucede só para nosso bem acontece.
Quanto mais vivia, quanto mais experiência adquiria, quanto mais observava a vida tanto mais se surpreendia com a cegueira dos homens que procuram na terra a felicidade e os gozos, que lutam, que sofrem e que mutuamente se querem mal para alcançar essa miragem impossível e vã a que chamam felicidade. (…) E ei-los lutando e sofrendo e atormentando o semelhante e perdendo a sua alma, a sua alma imortal, para alcançarem prazeres que não duram mais do que uma hora. Não só o sabemos por nós próprios, mas também por Cristo, o filho de Deus, que desceu à Terra e nos disse que esta vida não é mais do que um breve espaço de tempo e uma prova. E, no entanto, aí estamos nós, que nos agarramos a ela, pensando encontrar a felicidade cá em baixo. «Como é que ninguém ainda percebeu isto?»
A tradição bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo, mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto, mas também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na inactividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que se sentisse útil e em que tivesse o sentimento de que cumpria um dever, embora inactivo, nesse estado viria a encontrar uma das condições da sua felicidade primitiva. Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal atractivo do serviço militar.
A alma é imortal.., e isso quer dizer que se eu tenho de viver para sempre é que já vivi na eternidade.
(…) gozava deste triste privilégio, frequente em muitos homens, graças ao qual, embora acreditem na verdade e no bem, com tanta clareza vêem o mal e a mentira dos humanos que lhes faltam forças para os combater a fundo. A seus olhos, todos os domínios da actividade humana estavam imbuídos do mal e da mentira. Fizesse o que fizesse, tentasse o que tentasse, sempre se sentia repelido por esta mentira perpétua: todas as vias da actividade humana se lhe fechavam. E no entanto era preciso viver, algo tinha de fazer, apesar de tudo. Deixar-se esmagar sob o peso destes problemas insolúveis, eis o que se lhe afigurava horrível, e por isso mesmo, quanto mais não fosse para esquecê-los, entregava-se ao que quer que houvesse a fazer. Frequentava todas as sociedades, bebia muito, coleccionava quadros, erigia castelos no ar e lia, lia principalmente.(…) Não se sentia bem senão quando, quase inconsciente, depois de despejar uma boa dose de copos de vinho, sentia então por todo o corpo uma agradável sensação de calor, e todo ele era ternura para com o semelhante e tendência para abordar todos os problemas sem ir ao fundo de nenhum.
Às vezes lembrava-se de ter ouvido contar que os soldados na guerra, nas linhas avançadas, sob o fogo do inimigo, quando ociosos, procuravam uma ocupação qualquer para mais facilmente esquecerem o perigo. A seus olhos os homens sempre procediam como esses soldados, na esperança de se esquecerem da vida, e davam-se à ambição, ao jogo, elaboravam leis, entretinham-se com mulheres, divertiam-se, criavam cavalos, dedicavam-se à política, ou à caça, ou ao vinho, ou aos negócios públicos. «Em conclusão, nada há desprezível, nada há importante, tudo é indiferente desde que uma pessoa saiba subtrair-se a essa, realidade da vida, desde que uma pessoa se não veja frente a frente com a vida, esta terrível vida!»
- Há algo tão delicioso no sorriso da melancolia. É um raio de luz no meio das trevas, cambiante entre a dor e o desespero, que aponta a possível consolação.
(…) Bóris, que viera disposto a falar-lhe do seu amor e resolvido a mostrar-se carinhoso, não pôde deixar de lamentar, em tom acerbo, a inconstância das mulheres e a facilidade com que elas trocam a dor pela alegria, acrescentando que o seu estado de espírito só depende afinal daqueles que as cortejam.
Todos os estróinas, tanto os homens como as mulheres, vivem com a secreta e ingénua convicção de serem perfeitamente inocentes, persuadidos de que toda a gente está disposta a perdoar-lhes. «Muito lhe será perdoado pelo muito que amou; muito lhe será perdoado pelo muito que se divertiu.»
É muito fácil julgar um homem quando cai em desgraça e atribuir-lhe então todos os erros alheios.
Em fins de 1811 principiaram os armamentos intensivos e a concentração das forças da Europa ocidental e, em 1812, estas forças, ou seja, milhões de homens, no número das quais se contava transportes e abastecimentos, puseram-se em marcha do ocidente para o oriente, em direcção às fronteiras da Rússia, para onde se encaminhavam, igualmente, a partir de 1811, os exércitos russos. No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa ocidental atravessaram a fronteira e a guerra principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.
Que produziu tão monstruoso acontecimento? Quais as suas causas? Os historiadores, com uma segurança ingénua, foram buscá-las ao insulto de que foi vítima o duque de Oldemburgo, à não observância do bloqueio continental, à ambição de Napoleão, à resistência de Alexandre, aos erros da diplomacia, etc. Por conseguinte, teria bastado que Metternich, Rumiantsov ou Talleyrand, entre uma recepção na corte e uma reunião política, conviessem em redigir com arte uma nota bem cozinhada ou que Napoleão pegasse na pena para escrever a Alexandre: «Senhor meu irmão, consinto em devolver o ducado ao duque de Oldemburgo», para que não tivesse havido guerra.
É natural que fosse este o ponto de vista dos contemporâneos. Concebe-se que Napoleão tivesse atribuído a guerra às intrigas da Inglaterra, como declarou na ilha de Santa Helena. Admite-se que os membros do Parlamento inglês pensassem que deveriam ir buscar-se- lhe as causas à ambição de Napoleão; que o duque de Oldemburgo as tivesse visto na violência de que fora vítima; o comércio no bloqueio que arruinava a Europa; que os velhos militares e os generais tenham dado como pretexto do conflito a necessidade de ocupar os seus homens; os legitimistas da época a urgência em restabelecer os bons princípios, enquanto os diplomatas pensavam que tudo provinha de a aliança da Prússia com a Áustria em 1809 não ter sido habilmente escondida de Napoleão e de o memorando nº 178 haver sido mal redigido. Compreende-se que os contemporâneos tenham invocado estas e ainda outras razões, tantas ou tão poucas que o número delas pode variar consoante os numerosos pontos de vista.
Para nós, a posteridade, que contemplamos em toda a sua amplitude este acontecimento considerável e que penetramos o seu sentido simples e terrível, todas elas são, evidentemente, insuficientes. Não podemos conceber como milhões de cristãos puderam matar-se uns aos outros e torturar-se mutuamente só porque Napoleão era ambicioso, Alexandre firme, a política da Inglaterra tortuosa e o duque de Oldemburgo se sentia ofendido. Não é possível compreender a ligação que existe entre todas estas circunstâncias e as violências e os morticínios propriamente ditos.
Para nós, a posteridade, nós, que não somos historiadores, nem nos deixamos levar pelo entusiasmo das investigações, e examinamos, por conseguinte, com um bom senso imperturbável os acontecimentos, as causas aparecem-nos em número incalculável. Quanto mais nos enfronhamos na investigação dessas causas mais numerosas elas se nos revelam e cada uma em si ou uma série delas se nos afiguram igualmente justas, embora falsas também, dada a sua insignificância quando comparadas com a imensidade do acontecimento, e igualmente falsas pela sua insuficiência, independentemente de todas as demais causas concordantes poderem ter produzido o resultado encarado.
Uma delas, por exemplo, o facto de Napoleão se ter recusado a retirar as suas tropas para o outro lado do Vístula e restituir o ducado de Oldemburgo, parece-nos valer tanto como a recusa de um primeiro-cabo francês a realistar-se, pois a verdade é que, se este não tivesse querido voltar à actividade e o seu exemplo houvesse sido seguido por milhares de soldados, teria havido muito menos homens no exército de Napoleão e este ver-se-ia impossibilitado de declarar a guerra.
Se Bonaparte se não houvesse sentido ofendido ao receber a comunicação em que se lhe pedia que se retirasse para a outra margem do Vístula e não tivesse dado às suas tropas ordem de marcha, não teria havido guerra. Mas se todos os seus sargentos se houvessem recusado a realistar-se também a agressão não se daria. Fosse como fosse, não se teria dado se não tivesse havido intrigas da Inglaterra, se não existisse o príncipe de Oldemburgo, se Alexandre não fosse tão susceptível, se a Rússia não tivesse um governo autocrático, se não tivesse havido a Revolução Francesa e assim por diante. Sem qualquer destas causas nada teria acontecido. É muito possível que para que o acontecimento se produzisse tivesse sido preciso o encontro de todas estas causas, de milhares de causas, o que só quer dizer não haver causas exclusivas e que as coisas acontecem porque têm de acontecer. Milhões de homens, repudiando todo o sentimento humano e toda a espécie de razões, tinham de marchar do Ocidente para o Oriente dispostos a matar os seus semelhantes, tal qual, séculos antes, massas de homens tinham marchado do Oriente para o Ocidente matando igualmente o seu semelhante.
Os actos de Napoleão e de Alexandre, cuja palavra, na aparência, só por si podia impedir ou desencadear os acontecimentos, eram tão pouco livres e arbitrários como os do simples soldado destinado pela sorte ou o recrutamento a tomar parte na campanha. As coisas não podiam passar-se de outra maneira, pois, para que fosse cumprida a vontade de Napoleão ou de Alexandre, na aparência senhores omnipotentes, era absolutamente necessária a concordância de numerosas circunstâncias, e bastava faltar uma só que fosse para nada vir a produzir-se. Era necessário que milhões de homens entre cujas mãos se encontrava a força actuante - soldados para disparar e transportar abastecimento,, e canhões- estivessem de acordo para cumprir a vontade daqueles dois fracos indivíduos, se isolados, e que a tal fossem conduzidos por um número infinito de razões, tão complicadas quão diversas.
A intervenção do fatalismo na história é inevitável para explicar estas manifestações desprovidas de sentido, ou, antes, cujo sentido nos não é dado compreender. Quanto mais procuramos explicá-las logicamente tanto mais desarrazoadas e incompreensíveis se nos apresentam.
O homem vive para si mesmo, goza de liberdade para alcançar os seus objectivos particulares; todo o seu ser lhe diz que pode realizar ou não imediatamente este ou aquele acto; mas assim que age, realizado que seja o seu acto em tal ou qual momento da continuidade temporal, ei-lo que passa a ser irrevogável e a pertencer daí para o futuro à história, perdendo o seu carácter de acto livre para ocupar um lugar que lhe é previamente designado.
A vida do homem tem duas faces. Há, em primeiro lugar, a vida individual, tanto mais livre quanto mais gerais os seus interesses, quanto mais abstractos; e depois a vida como um elemento social, a vida do cortiço humano, em que o homem tem inevitavelmente de se submeter às leis que lhe são prescritas.
O homem vive conscientemente a sua vida individual, servindo de instrumento inconsciente à realização dos fins históricos da humanidade inteira. O acto realizado torna-se irrevogável, e, graças à sua concordância com os milhões de outros actos realizados ao mesmo tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto o homem está colocado na escala da humanidade, quanto mais importantes as personagens com quem entra em contacto, tanto maior, igualmente, o seu poder sobre os outros homens e mais evidente o carácter de predestinação e de fatalidade de cada um dos seus actos.
«O coração dos reis está na mão de Deus.» «O rei é escravo da história.» A história, quer dizer, a vida inconsciente, geral, elementar, da humanidade serve-se de todos os minutos da vida dos reis para alcançar os seus objectivos. Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse mais do que nunca convencido de que não dependia senão dele «fazer ou não verter o sangue dos povos», como dizia Alexandre na última carta que lhe escreveu, a verdade era mais do que nunca encontrar-se sujeito a essas leis fatais que, enquanto lhe davam a ilusão de agir por si, segundo o seu próprio capricho, o compeliam, a colaborar na obra comum, a história, realizando o que necessariamente tinha de realizar-se.
Os homens do Ocidente puseram-se a caminho do Oriente para se chacinarem uns aos outros. E, segundo a coincidência das causas, colaboraram neste acontecimento e encontraram-se em correlação com ele milhares de pequenas causas desse movimento e dessa guerra, entre as quais a violação do bloqueio continental, a ofensa ao duque de Oldemburgo, os deslocamentos de tropas na Prússia, realizados, segundo pensava Napoleão, com o único fim de se conseguir uma paz armada; o amor da guerra do imperador dos Franceses e o hábito em que estava de a fazer, de acordo com as disposições particulares do seu povo; o entusiasmo a que levavam os preparativos grandiosos; as despesas que estes preparativos determinaram; a necessidade de conseguir vantagens que compensassem tais despesas; as honrarias inebriantes que recebera em Dresde; as conversações diplomáticas que, de acordo com a opinião dos contemporâneos, haviam sido realizadas com o sincero desejo de alcançar a paz e que no fim de contas só serviram para irritar o amor-próprio de parte a parte; milhões de milhões de outras causas, enfim, que concorreram para a realização do acontecimento ou que coincidiram com ele.
Uma maçã cai quando está madura. Porquê? É o peso que a faz cair? Ou porque se lhe seca o pé, porque o sol a queima, porque se tornou pesada de mais, porque o vento a sacudiu ou, muito simplesmente, porque um garoto junto da árvore morria por comê-la?
Nenhuma destas causas é a válida. Não há mais que uma concordância de condições favoráveis na realização de qualquer dos acontecimentos elementares da vida orgânica. O botânico que descobre que a maçã cai como consequência da decomposição do tecido celular ou qualquer coisa semelhante, não tem mais razão que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a desejava comer e nesse intuito rezou a Deus.
Igual razão ou sem-razão terá aquele que vier dizer que Napoleão entrou em Moscovo por ser esse o seu desejo e que aí se perdeu por ser essa a decisão de Alexandre.
Igualmente estará em erro e terá razão aquele que disser que uma montanha de milhões de pedras que acabou por se desmoronar minada na base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores.
Nos factos históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no fundo, de etiquetas para designar o acontecimento. Aqueles têm tão pouca relação com tais factos como as próprias etiquetas que lhes põem. Nenhum dos seus actos que a eles se lhes afigurem produto do livre arbítrio podem considerar-se em verdade voluntários no sentido histórico da palavra, pois estão relacionados com a marcha geral da história, onde o seu lugar se encontra assinalado para toda a eternidade.
Não obstante a confiança dos diplomatas na manutenção da paz, para que trabalhavam com afinco, não obstante a carta autógrafa de Napoleão a Alexandre, em que o tratava por Senhor meu irmão e lhe dava a sincera garantia de não querer a guerra e de nunca vir a deixar de lhe consagrar estima e amizade, não obstante tudo isso, pôs-se em marcha, em seguimento do exército, dando as suas ordens, em cada muda, para se activar o movimento das tropas para oriente.
O imperador, com a expressão de um homem pessoalmente ofendido, pronunciava estas palavras:
- Entrar na Rússia sem declaração de guerra! Só assinarei a paz no dia em que não houver sobre o meu território um único inimigo armado.
O imperador russo dirigiu a Napoleão a carta que se segue:
«Senhor meu irmão. Soube ontem que, apesar da lealdade com que mantive os meus compromissos para com Vossa Majestade, as suas tropas atravessaram as fronteiras da Rússia, e acabo de receber de Petersburgo uma nota em que o conde Lauriston, por causa dessa agressão, anuncia que Vossa Majestade se considerou em estado de guerra para comigo desde o momento em que o príncipe Kurakine fez o pedido dos seus passaportes. Os motivos em que o duque de Bassano fundamentava a recusa de lhos passar nunca me fariam supor que essa diligência viria alguma vez a servir de pretexto para a agressão. Com efeito, o embaixador não fora a tal autorizado, como ele próprio o declarou, e logo que fui disso informado comuniquei-lhe quanto desaprovava essa deslocação, dando-lhe a ordem de se manter no seu posto. Se Vossa Majestade não tem a intenção de fazer verter o sangue das nossas gentes por um mal-entendido desta espécie e se consentir em retirar as suas tropas do território russo, encararei o que se passou como se nada fosse, e será possível as coisas comporem-se entre nós. No caso contrário, Vossa Majestade, ver-me-ei forçado a repelir um ataque que nós não provocámos. Depende ainda de Vossa Majestade evitar à humanidade as calamidades de uma nova guerra. Sou, de Vossa Majestade, etc. ALEXANDRE»
O francês Davout era o russo Araktcheiev do imperador Napoleão; em tudo menos na covardia, como ele meticuloso e cruel e incapaz de provar a dedicação que tinha ao amo de outra maneira que não fosse pela crueldade.
Nas engrenagens de um Estado, homens assim são tão necessários como os lobos na natureza. Existem sempre, aparecem sempre e mantêm-se, por mais absurda que a sua presença possa parecer, junto do chefe do Estado ou na sua intimidade. Graças à fatalidade desta lei se pode explicar que este cruel Araktcheiev, habituado a arrancar com as próprias mãos os bigodes aos granadeiros, e de resto incapaz, por fraqueza nervosa, de enfrentar o menor perigo, que este homem sem cultura e sem educação tivesse podido manter uma tal influência sobre a natureza nobre, cavalheiresca e doce de um Alexandre.
Balachov encontrou o marechal Davout na isbá de um aldeão, sentado num barril e ocupado a verificar umas contas. Ter-lhe-ia sido possível arranjar uma instalação mais própria, mas Davout pertencia ao número dos homens que gostam de viver nas mais difíceis condições de vida para terem o direito de se conservar tristes e severos. E é por isso também que tais homens andam sempre apressados e esmagados com trabalho. «Como se há-de pensar nas coisas agradáveis da vida quando, como vocês estão a ver, uma pessoa tem de sentar-se em cima de um barril numa isbá sórdida, sempre que precisa de trabalhar?» Eis o que parecia ler-se-lhe na cara. O maior prazer, a necessidade capital destas pessoas quando em presença de alguém contente de viver é atirar-lhes à cara o seu trabalho obstinado e taciturno.
Um soberano só deveria encontrar-se à frente do exército quando fosse general - concluiu Bonaparte, como se estas palavras fossem uma provocação directa ao czar. Ele bem sabia que Alexandre tinha o sonho de ser um grande capitão.
(…) Estava nesse estado de irritação em que as pessoas têm necessidade de falar, de falar, de falar sempre, apenas para provarem a si próprias terem razão.
(…) Entre outras coisas, veio à fala Moscovo, e Bonaparte interrogou-o acerca da capital, ao mesmo tempo como um viajante, desejoso de se instruir, que colhe informações sobre um país desconhecido que deseja visitar, mas também com a convicção de que Balachov, russo que era, se sentiria muito lisonjeado com esse interesse.
- Quantos habitantes tem Moscovo? Quantas casas? É verdade que lhe chamam Mouscou la sainte? Quantas igrejas tem? - perguntou.
E, ao ouvir que mais de duzentas, observou:
- Para quê tantas igrejas?
- Os Russos são muito tementes a Deus.
Convém notar que grande número de conventos e de igrejas é sempre sinal de atrasada civilização - disse o imperador.
Balachov, respeitosamente, ousou exprimir opinião contrária.
- Cada terra com seus usos - disse.
- Mas nada há na Europa que se pareça com isso - voltou Napoleão.
- Que Vossa Majestade me perdoe - tornou o russo -, mas, além da Rússia, há a Espanha também, onde existem, igualmente, muitos conventos e igrejas.
Esta resposta, alusão à recente derrota dos Franceses em Espanha, foi muito apreciada na corte da Rússia quando Balachov aludiu a ela, mas não produziu o mais pequeno efeito na mesa de Napoleão, onde passou despercebida.
(…) Depois do jantar o homem está sempre numa disposição bem conhecida, a qual, mais persuasiva que qualquer razão lógica, o leva a sentir-se satisfeito consigo mesmo e disposto a não ver senão afeições à sua roda. O imperador estava nessa feliz disposição. Imaginava-se rodeado de amigos que o adoravam. Estava convencido de que o próprio Balachov, depois daquele jantar, também era seu amigo e admirador. Observou-lhe com um sorriso amável e ligeiramente trocista:
- Porque assumiu o imperador Alexandre o comando dos seus exércitos? Que significa isso? A guerra é o meu mister, o dele é reinar, não comandar as tropas. Para que assumiu ele uma tal responsabilidade?
- Meu Deus, meu Deus! Quando uma pessoa pensa que seres desprezíveis podem ser a causa da infelicidade dos outros!
(…) Um dia compreenderás a felicidade de perdoar.
O meu pequeno cresce e sorri à vida, a vida, onde, como todos os outros, virá a enganar ou ser enganado.
A sua experiência da guerra ensinara-lhe que os planos mais cuidadosamente elaborados pouco valor têm, coisa que pudera verificar por si próprio em Austerlitz, e que tudo depende da maneira como se riposta aos ataques inesperados e imprevisíveis do inimigo e da forma como são conduzidas as operações, bem como da capacidade daqueles que as dirigem.
(…) Muita desta gente não pensava noutra coisa senão em caçar dinheiro, cruzes, categorias, e nessa caçada não seguia outra pista que não fosse o penacho da mercê imperial, e assim que verificava que esse penacho se voltava para determinado ponto, todo esse enxame de zangãos batia as asas na mesma direcção, de tal sorte que se tornava por assim dizer impossível ao imperador fazê-lo girar noutro sentido. Em presença da incerteza da situação, da gravidade de um perigo iminente, que dava a todas as intrigas um carácter muito alarmante, no meio daquele remoinho de intrigas, de ambições e conflitos entre pontos de vista e tendências diferentes, na confusão daquela gente de nacionalidades várias, exclusivamente preocupado com os seus interesses pessoais, contribuía de maneira singular para tornar a marcha geral mais difícil e complicada. Fosse qual fosse a questão que se levantasse, este enxame de zangãos, sem ter ainda resolvido um problema, tratava de voar para outro, ensurdecendo com os seus zumbidos e abafando cada vez mais as vozes sinceras que tomavam parte na discussão.
O partido das pessoas idosas, sensatas, com experiência de assuntos políticos(…) dizia e pensava que o mal provinha antes de mais nada da presença do imperador e da sua corte militar junto do exército, que se haviam transplantado para o campo de batalha os hábitos de versatilidade, de hesitação e de indiferentismo, talvez próprios da corte mas fatais no exército, e que o papel de um soberano era o de reinar e não o de comandar tropas, e que a, única saída para a situação consistia na partida do imperador e da sua corte. Bastava a sua presença para paralisar cinquenta mil soldados, indispensáveis para assegurar a sua guarda pessoal, e que o mais medíocre dos generais- chefes, sentindo-se independente, valia mais que o melhor deles enleado pela presença e pela vontade soberana do imperador.
O Francês é um homem seguro de si, persuadido de que, pessoalmente, quer pelo espírito, quer pelo físico, exerce uma irresistível sedução tanto nos homens como nas mulheres. O Inglês também, goza da mesma segurança por estar persuadido de que é cidadão do Estado mais bem organizado do mundo, e daí saber sempre, na sua qualidade de inglês, que o que deve fazer e faz é indiscutivelmente perfeito. Pelo seu lado, o Italiano tem confiança em si próprio porque facilmente se emociona, esquecendo-se ainda mais depressa de si e dos outros. Ao Russo também não falta confiança, visto que tudo ignora e nada quer saber e estar convencido de que ninguém pode saber seja o que for. No que diz respeito ao Alemão, porém, esse é o pior de todos, mais obstinado que ninguém e mais desagradável para todo o mundo, convencido de que conhece a verdade, ou seja a ciência que ele próprio fabrica, para ele, a verdade absoluta.
(…) pertencia à família desses teóricos que de tanto amarem as teorias em si acabam por esquecer-lhes os fins, ou seja a sua aplicação prática. Por amor da própria teoria odiava tudo quanto fosse prático, recusando sistematicamente prestar atenção a esse aspecto. Até o próprio fracasso lhe dava satisfação, uma vez que o insucesso provocado pela violação da teoria na sua aplicação prática só servia para lhe provar a ele a justeza da teoria que professava.
André deixar de se mostrar surpreendido que fosse possível falar-se tanto. Enquanto estivera no exército várias vezes fora levado a pensar que não havia nem podia haver uma ciência da guerra e que por isso mesmo se não devia falar num suposto génio militar. E eis esta ideia confirmada agora com a plena evidência da verdade. ,Como falar-se em teoria e ciência numa matéria em que as condições e as circunstâncias são desconhecidas, não podendo ser definidas de antemão, e em que as forças actuantes mais dificilmente ainda podem ser determinadas? Nunca ninguém soube nem nunca ninguém poderá saber qual a posição do nosso exército e a do inimigo dentro de vinte e quatro horas e qual a acção deste ou daquele destacamento. Partindo do princípio de que na primeira fileira, em vez de um poltrão que debande a gritar: ’Estamos cortados!’ se ouve, em seu lugar, um moço, valente e decidido, gritando ’Hurra!, aí temos como um destacamento de cinco mil homens vale mais de que um corpo de exército de trinta mil. Esse o caso de Schöngraben. O que não impede que, noutra altura, cinquenta mil homens debandem diante de oito mil. Assim acontecera em Austerlitz. Como falar em ciência numa matéria em que, como sucede com todas as coisas da vida prática, nada pode ser previsto antecipadamente e tudo depende de circunstâncias imponderáveis cuja importância surge de um momento para o outro, sem que ninguém saiba quando chegará a sua hora?
(…)«Todos estes planos são igualmente bons e igualmente maus e as vantagens de cada um deles não podem tornar-se evidentes senão no próprio momento em que os acontecimentos vierem a cumprir-se. Porque fala então toda a gente em génio militar? Será génio aquele que saiba abastecer a tempo de biscoitos o exército e envie Fulano para a direita e Sicrano para a esquerda? A verdade é esta: os génios militares são brilhantes e poderosos e há uma multidão de cobardes sempre pronta a lisonjear o poder, chamando a tais homens génios e atribuindo-lhes qualidades extraordinárias. Em vez de génios, os melhores generais que eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. Um bom militar nem precisa de ser génio nem de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência. Deve ser limitado, estar persuadido de que é de alta importância tudo quanto faz. De outro modo faltar-lhe-á a persistência; só assim será um valoroso capitão. Que Deus o defenda de amar alguém, de se afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de pensar no que é justo e no que o não é. Compreende-se que desde tempos imemoriais se tenha inventado para galardão seu a teoria do génio, pois, em verdade, representa o poder. O êxito ou o desaire de uma acção militar não podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado que nas fileiras grita: ’Estamos perdidos!’ ou então exclama ’Hurra!’ Somente nas fileiras um homem pode servir convencido de que é útil!» Assim pensava o príncipe André…
(…) sabia, por experiência própria, que quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade, como com ele próprio acontecera então. Além disso, já era bastante experimentado na guerra para saber que nada se passa no campo de batalha como as pessoas o imaginam ou como é costume virem a contá-lo mais tarde.(…) Sabia que todas aquelas histórias tinham por fim a glorificação dos exércitos…
Outrora, Rostov, antes de um combate, tinha medo; agora não sentia o mais pequeno receio. Não porque se tivesse acostumado à metralha (ninguém pode habituar-se ao perigo), mas aprendera a dominar a alma. Acostumara-se, quando ia para o combate, a pensar em tudo menos no que mais importava, a proximidade do perigo. Apesar de todos os seus esforços, não obstante chamar-se a si próprio cobarde, nos primeiros tempos fora-lhe muito difícil chegar àquele resultado, mas com os anos as coisas vieram naturalmente.
Os médicos eram de grande utilidade para todos os habitantes da casa Rostov. Não por fazerem com que a doente ingerisse drogas geralmente prejudiciais, cujo nefasto efeito era, de resto, atenuado por serem tomadas em pequeninas doses. Eram úteis, indispensáveis, inevitáveis pelo facto de darem satisfação às necessidades morais da doente e daqueles que lhe queriam, e é essa a razão por que há e sempre haverá curandeiros, charlatães, homeopatas e alopatas. Davam satisfação aos desejos, perenes no homem, de consolação, à avidez de simpatia que há nele, à necessidade de que se ocupem dele sempre que sofre. Davam satisfação a essa perene necessidade que nas crianças se observa sob a sua forma elementar esfregando o sítio em que se magoam. A criança que se magoa vai logo lançar-se nos braços da mãe ou da ama, na esperança de que elas a beijem e lhe esfreguem o lugar ofendido, e o certo é que se sente consolada assim que obtém estes carinhos. Não lhe passa pela cabeça que as pessoas mais fortes e mais crescidas do que ela sejam capazes de a não socorrer. E com efeito a esperança de um lenitivo, a simpatia que lhe testemunham enquanto a mãe lhe passa a mão pelo sítio lesado, eis quanto basta para a consolarem. Os médicos desempenhavam junto de Natacha o papel da mãe que beija o filho e lhe passa a mão pelo dói-dói. Diziam-lhe que o mal de que padecia se curaria desde que o cocheiro fosse comprar ao farmacêutico da Praça de Arbate, por um rublo e sete grivens, certos pós ou certas pílulas, numa caixinha muito bonita, e ela tomasse esses pós, sem falta, de duas em duas horas, nem mais nem menos, em água fervida.
Que seria de Sónia, do conde, da condessa, se todos tivessem de cruzar os braços em vez de cuidarem em dar-lhe essas pílulas de hora a hora, essas poções mornas, em vez de lhe prepararem esses caldos de galinha e tantas outras coisas prescritas pelos médicos, coisas para eles uma ocupação e uma consolação apreciáveis? Teria o conde podido suportar a doença da sua filha querida se não pudesse dizer consigo mesmo que esta já lhe custara mil rublos e que de bom grado despenderia outros mil para lhe dar alívio, se não pudesse pensar que para a restabelecer não se importaria de gastar outros mil rublos, levando-a a consultar médicos no estrangeiro sem olhar a despesas; se lhe não tivesse sido dado contar a toda a gente que Métivier e Feller nada tinham percebido do estado dela e que Friese acertara com o mal, mas que Mudrov ainda fora mais feliz no seu diagnóstico? Que teria sido da condessa se lhe não fosse dado zangar-se de quando em quando com a doente por esta não seguir à risca as prescrições médicas?
- Assim nunca mais te curas - dizia-lhe ela numa irritação que a fazia esquecer o desgosto -, se não ouves o que diz o médico e não tomas o teu remédio a tempo e a horas! Não é ocasião para brincadeiras, quando tudo isso pode degenerar numa pneumonia - acrescentava, consolada por poder empregar aquele termo científico nem só para ela ininteligível.
E Sónia, que teria feito Sónia pela sua parte se não lhe fosse dada a satisfação de dizer a si mesma que passara, de princípio, três noites sem se despir, sempre pronta a executar pontualmente as prescrições do médico e que ainda então mal fechava os olhos para não esquecer a hora de lhe administrar as pílulas assaz inofensivas da linda caixa dourada? E a própria Natacha, conquanto estivesse sempre a dizer que nenhum medicamento a poderia curar e que todas aquelas drogas eram tolice, ela própria sentia uma certa satisfação ao ver que as pessoas faziam por ela tantos sacrifícios, e tomava as suas poções a horas fixas. E até alegre se sentia descuidando-se do cumprimento das prescrições, por poder mostrar que não acreditava na cura e que não apreciava a vida.
Sabia que a bondade nada custava a Pedro. Tão natural lhe parecia a ele dever ser bom para toda a gente que lhe não advinha daí qualquer mérito.
(…) a sua imagem transportava-o num instante a uma região luminosa da alma onde não podia haver nem justos nem culpados, à região da beleza e do amor, as únicas razões pelas quais vale a pena viver.
(…) E eis como agiam, consoante as suas disposições pessoais, os seus hábitos, a sua condição ou as suas intenções, as numerosas personagens que tomavam parte na guerra. Os seus receios, as suas vaidades, as suas alegrias, os seus descontentamentos, as suas críticas vinham de suporem saber o que faziam e de julgarem agir por si próprios, quando afinal não passavam de instrumentos inconscientes da história, realizando um trabalho oculto para eles, mas inteligível para nós. Tal é o destino imutável de todos os comparsas, tanto menos livres quanto mais alto na hierarquia social.
Os actores dos acontecimentos de 1812 já não pertencem ao número dos vivos, os interesses que os impeliam não deixaram o mais pequeno vestígio, e só restam os resultados históricos da sua época.
Mas, se admitirmos que os habitantes da Europa conduzidos por Napoleão deviam penetrar no coração da Rússia e ali ficar, toda a conduta contraditória, insensata e cruel dos actores dessa guerra se nos torna inteligível.
A Providência obrigava todos esses homens na peugada de fins pessoais a colaborar num único e enorme resultado, resultado que ninguém conhecia, nem Napoleão nem Alexandre, e ainda muito menos qualquer dos que participavam na guerra.
No momento actual vemos claramente o que provocou a perda do exército francês. Ninguém contestará que a causa desse desastre foi, por um lado, a sua penetração tardia e sem preparação suficiente no coração da Rússia, sujeito a arrostar com uma campanha de Inverno, e, por outro, o carácter que a guerra assumiu em virtude do incêndio das povoações e o ódio que germinou no coração do povo russo.
Mas então ninguém podia prever o que actualmente é a própria evidência, isto é, que bastavam estas causas para aniquilar um exército de oitocentos mil homens, o melhor que ainda houvera no mundo, conduzido pelo melhor dos capitães, diante do exército russo, duas vezes mais fraco, sem experiência, e dirigido por generais igualmente inexperientes.
E não só ninguém podia prever semelhante desfecho como todos os esforços da parte dos Russos tendiam constantemente a impedir a única coisa susceptível de salvar a Rússia e os da parte dos Franceses, apesar da experiência e do suposto génio militar de Napoleão, igualmente tendiam a levar as suas vitórias até Moscovo antes do fim do Estio, ou seja, a fazer exactamente o que deveria perdê-los.
Nas obras históricas respeitantes a 1812 os autores franceses insistem no facto de Napoleão sentir o perigo que para ele havia em estender demasiado as suas linhas, e dizem que procurava dar batalha, que os seus generais o tinham aconselhado a deter-se em Smolensk e em quejandos argumentos da mesma sorte que provam não se ignorar então o perigo que ameaçava o exército francês.
Por outro lado, os autores russos insistem, com mais peso ainda, no plano estabelecido, segundo eles, desde o princípio da campanha, de guerra cita, o qual consistia em atrair Napoleão ao coração da Rússia.
Mas a verdade é que todas estas alusões a uma previsão do que veio a acontecer, tanto do lado francês como do russo, se agora são postas em relevo é precisamente porque os acontecimentos as justificam. Se tivesse acontecido o contrário, teriam sido completamente esquecidas, como sucede a milhares de alusões e de hipóteses espalhadas então e que se verificaram ser inexactas.
O resultado de cada acontecimento dá sempre lugar a tantas suposições que, sejam elas quais forem, há sempre pessoas prontas a afirmar: «Eu bem dizia que as coisas se passariam assim.» Esquecem que entre todas estas numerosas suposições algumas há absolutamente contraditórias.
É evidente que a esta categoria de suposições sem fundamento pertence a do perigo entrevisto por Napoleão na extensão da sua linha de comunicações e a relativa à guerra cita, e os historiadores só com muitas reservas devem atribuir tais vistas a Bonaparte e tal plano aos chefes militares russos. Todos os factos estão em contradição absoluta com essas hipóteses.
Não só no decurso de toda a guerra se não observou qualquer desejo da parte dos Russos de atraírem os Franceses ao interior do seu país, mas, pelo contrário, tudo quanto se fez foi no sentido de os deter, uma vez verificado o seu primeiro avanço. Por outro lado, não só Napoleão não receava o alongamento da sua linha, mas até se regozijava, como se se tratasse de uma vitória, de cada passo em frente, indo com maior entusiasmo para a luta do que no decurso das suas campanhas anteriores.
Desde o princípio que os exércitos russos se encontraram cortados, e o único objectivo dos seus chefes foi reuni-los de novo, quando é certo que para bater em retirada e atrair o inimigo ao coração do seu país tal junção não representava qualquer vantagem. O imperador esteve junto das suas tropas para encorajá-las na defesa de cada palmo da terra russa, e não para ordenar a retirada.
Construiu-se o enorme campo entrincheirado de Drissa, de acordo com os planos de Pfuhl, na intenção bem clara de não se recuar mais. Cada passo à retaguarda custou aos comandantes-chefes repreensões do imperador. Não só este não podia imaginar que os Russos deitariam fogo a Moscovo, como nem sequer previa que deixariam avançar o inimigo até Smolensk, e, quando os exércitos operaram a sua junção, exasperou-se pelo facto de aquela cidade ser tomada e incendiada e de se não ter travado uma batalha geral à volta das suas muralhas. Assim pensava o imperador, mas assim pensavam também os chefes russos, e o povo inteiro indignou-se com a ideia de que o seu exército recuava até ao interior do país.
Napoleão, depois de cortar em dois o exército de Alexandre, penetra cada vez mais a fundo em território russo, deixando escapar várias oportunidades para dar combate. Em Agosto está em Smolensk e não pensa noutra coisa senão em avançar mais ainda, embora, como hoje se vê perfeitamente, esse movimento fosse perigoso para ele. Os factos mostram com toda a evidência que Napoleão não previa o perigo de um movimento em direcção a Moscovo e que Alexandre e os chefes russos não pensavam em atrair Napoleão, mas sim exactamente no contrário.
O facto deu-se não em resultado de um plano qualquer - e o certo é que ninguém teria acreditado na possibilidade de o pôr em prática -, mas como consequência de um complicadíssimo jogo de intrigas, de ambições, de desejos da parte dos comparsas da guerra, os quais não adivinhavam o que iria acontecer e seria a única salvação da Rússia.
É inopinadamente que as coisas sucedem. Os exércitos são cortados em dois no princípio da campanha. Os Russos tentam reuni-los na intenção evidente de travar uma batalha e de deter o inimigo, mas no decurso desta tentativa, quando as tropas russas evitavam um recontro com forças muito superiores, eis que os exércitos de Alexandre batem involuntariamente em retirada, formando um ângulo agudo, e os Franceses se vêem deste modo atraídos até Smolensk.
Ainda não é tudo dizer-se que os Russos retrocedem em ângulo agudo, pois os Franceses avançam entre os dois exércitos. O ângulo torna-se ainda mais agudo e os Russos recuam ainda mais, porque Barclay de Tolly, esse estrangeiro impopular é odiado por Bagration, que lhe deve ser subordinado, e o qual, à frente do 2º exército, procura realizar a sua junção com ele, quanto mais tarde melhor, para não vir a encontrar-se sob as suas ordens.
Durante muito tempo Bagration não opera a junção, embora seja esse o objectivo de todos os comandantes do exército, porque se lhe afigura que se realizar esse movimento porá em perigo as suas tropas e por lhe parecer melhor recuar mais à esquerda e para o sul, inquietando o flanco e a retaguarda do inimigo, o que lhe permitirá completar o seu exército na Ucrânia. Ao mesmo tempo parece ter imaginado semelhante táctica para não querer ver-se subordinado ao estrangeiro Barclay, a quem detesta e é mais novo na promoção.
O imperador está com o exército para o animar com a sua presença, mas o certo é que a sua estada junto das tropas, a ignorância das decisões que devem tomar-se e o número incrível de conselheiros e de planos propostos anulam a força ofensiva do 1º exército e as tropas batem em retirada. As coisas dispõem-se para as tropas irem deter-se no campo de Drissa, mas inesperadamente Paulucci, que aspira ao posto de comandante-chefe, influi, graças à sua energia, no espírito de Alexandre, e todo o plano de Pfhul é abandonado, passando tudo para as mãos de Barclay. Como este porém não inspira confiança, o seu poder é limitado. E aí temos os exércitos fraccionados. Já não há unidade de comando, e Barclay não goza de popularidade. Desta confusão, deste fraccionamento, desta impopularidade do general-chefe, resultam, por um lado, a indecisão e a recusa de travar batalha, a qual se não teria podido evitar se os exércitos estivessem reunidos e se Barclay não tivesse o comando, por outro, um descontentamento cada vez maior em relação aos estrangeiros e um despertar do sentimento patriótico.
Finalmente o imperador retira-se de junto do exército e o único e mais plausível pretexto da sua retirada é que a ele compete incitar o entusiasmo nas capitais com vista a criar o espírito de uma guerra nacional. E esta viagem a Moscovo triplica as forças do exército russo.
O imperador abandona o exército para não prejudicar a unidade do comando e espera-se que, após a sua partida, se tomem decisões mais enérgicas.
Mas não. Pelo contrário, a situação do chefe do exército complica-se e enfraquece cada vez mais. Bennigsen, o grãoduque, todo um enxame de generais ajudantes-de-campo, permanecem no exército para vigiar os actos do comandante-chefe e despertar, em caso de necessidade, a sua energia, e Barclay, que de dia para dia se sente menos livre sob a vigilância de todos estes «olhos do imperador», torna-se ainda mais hesitante nas suas decisões e evita a batalha. Barclay é, pela prudência.
O grão-duque herdeiro chega a pronunciar a palavra «traição», e pede que se trave a batalha geral. Liubomirski, Bronnitski, Blotski e outros ainda dão tanta repercussão a este boato que Barclay, a pretexto de entregar uns documentos ao imperador, faz com que partam para, Petersburgo todos os ajudantes-de-campo polacos e entra em luta aberta com Bennigsen e o grão-duque.
Finalmente, apesar da oposição de Bagration, em Smolensk opera-se a junção dos dois exércitos. Bagration chega, de carruagem, à residência ocupada por Barclay. Este afivela o cinturão, vai ao seu encontro e faz-lhe o seu relatório como se fosse de patente inferior a ele. Bagration, num rasgo de magnanimidade, embora mais antigo, submete-se a Barclay. Feito o que, no entanto, cada vez se mostra em maior desacordo com ele.
Por ordem do imperador, dirige-lhe pessoalmente o seu relatório. Escreve a Araktcheiev: «Apesar de ser esse o desejo do imperador, não posso de maneira nenhuma permanecer com o ‘ministro’ (assim designava Barclay). Por amor de Deus, enviai-me para qualquer parte, ainda que não seja senão para comandar um regimento. Aqui é que eu não me posso ver. O quartel-general está cheio de alemães, e de tal modo que um russo não pode viver no meio deles. É de perder a cabeça. Julguei servir realmente o imperador e a pátria e afinal a quem eu sirvo é Barclay. Confesso que me recuso a isso. A praga dos Bronnitski, dos Wintzengerode e quejandos continua a envenenar cada vez mais os relatórios dos comandantes-chefes e de dia para dia é menor a unidade de vistas. Preparam-se para atacar os Franceses diante de Smolensk.
É enviado um general para examinar as posições. Este general, que detesta Barclay, dirige-se a casa de um dos seus amigos comandante de corpo de exército, passa com ele o dia, regressa ao quartel-general e faz crítica cerrada, ponto por ponto, do campo de batalha que não viu nem de longe.
Enquanto os Russos discutem e intrigam e se disputam sobre o futuro campo de batalha, enquanto procuram os Franceses e se enganam sobre as suas posições, estes caem sobre a divisão Nevierovski e aproximam-se dos muros de Smolensk.
É preciso aceitar, quer queiram quer não, a batalha às portas de Smolensk a fim de salvar as linhas de comunicação dos Russos. A batalha dá-se. Caem milhares de homens de um lado e do outro.
Smolensk é abandonada contra a vontade do imperador e de todo o povo. Os habitantes porém, enganados pelos seus governantes, queimam a cidade. Completamente arruinados, chegam a Moscovo, só pensando nos prejuízos que sofreram, para darem o exemplo aos outros russos e comunicar-lhes o seu ódio ao inimigo. Napoleão prossegue a sua rota. Os Russos recuam, e assim se encaminham as coisas para que os Franceses sejam vencidos.
- E que vais tu fazer agora? Continuarás aqui se o inimigo ocupar a quinta? - perguntou o príncipe André.
Alpatitch virou a cara para o príncipe, fitou-o e, de súbito, num gesto solene, ergueu os braços ao céu. - Ele é meu protector, que seja feita a Sua vontade! - exclamou.
- Bom, adeus! - disse este, inclinando-se para Alpatitch - Vai-te embora também. Leva contigo o que puderes e diz aos camponeses que se refugiem ou na propriedade de Riazan ou nas dos arredores de Moscovo. Alpatitch agarrou uma das pernas do amo, soluçando. O príncipe André desprendeu-se suavemente e, esporeando o cavalo, despediu a galope por uma das alamedas.
No terraço da estufa, tão indiferente como uma mosca pousada no rosto de um morto que nos é querido, continuava sentado o ancião, ocupado a pregar num cepo os seus laptis, e duas pequenitas com as saias arregaçadas, cheias de ameixas colhidas nas árvores da estufa, correram dando de caras com o cavaleiro.
Ao ver o patrão novo, a mais idosa, muito assustada, pegou na companheira pela mão e ambas se foram esconder atrás de um álamo, sem terem tempo de apanhar as ameixas verdes que deixaram cair no chão. O príncipe André deu-se pressa em voltar a cabeça para o lado, para que elas não vissem que ele as observara. Fez-lhe pena aquela linda garota, com o seu ar assustado. Não queria olhar, mas não conseguia. Um sentimento novo, doce e apaziguador o invadiu ao ver aquelas crianças. Compreendeu que outros interesses havia na vida completamente alheios aos seus e tão naturais como os que o preocupavam. Aquelas crianças não tinham evidentemente senão um desejo: levar consigo, para comê-las, aquelas ameixas verdes e não se deixarem apanhar, e o certo é que André, lá no fundo, lhes estava desejando que fossem bem sucedidas na sua proeza. E não resistiu a olhar para elas uma vez mais. Julgando passado todo o perigo saíram do seu esconderijo e, tagarelando nas suas vozitas agudas, de saias arregaçadas, puseram-se a correr alegremente pela relva, de pés descalços tostados pelo sol.
(…)Enquanto isto se passava em Petersburgo, os Franceses deixavam para trás Smolensk e aproximavam-se mais e mais de Moscovo. Thiers, o historiador de Napoleão, como todos os outros autores que se ocuparam da sua personalidade, para justificarem o seu herói, sustentam que ele foi atraído, a pesar seu, até junto dos muros de Moscovo. Thiers tem razão na medida em que têm razão todos quantos procuram explicar os acontecimentos históricos pela vontade de um só homem. Tem razão como a têm os historiadores russos que afirmam que Napoleão foi impelido para a frente graças à habilidade dos generais russos. Nisto, além da lei da retrospectividade, que leva a crer que o passado não é mais que a preparação do facto consumado, existe uma certa conexão dos acontecimentos que complica tudo. Um bom jogador de xadrez que perde uma partida fica convencido de ter perdido por virtude de um erro em que incorreu, e vai procurá-lo no princípio do jogo esquecendo-se de que no decurso da partida incorreu em outros erros semelhantes e que nenhuma das suas jogadas foi perfeita, Deu conta do seu erro apenas porque o adversário dele tirou partido.
Quão mais complicado não é o jogo da guerra, que tem lugar em determinadas condições de tempo, em que não é uma vontade única que conduz as máquinas inanimadas, mas onde tudo depende do entrechocar de uma infinidade de vontades individuais e particulares!
Tomar uma fortaleza não é difícil; difícil é ganhar uma campanha. E para isso não é preciso tomar de assalto e, atacar, mas ter «paciência e tempo diante de nós».
Mas acredita no que te digo, meu caro: nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo! Eles farão tudo. Mas os conselheiros não vêem por esse prisma, eis o mal. Uns querem, outros não. E então que se há-de fazer? Pois bem, vou dizer-te o que é preciso fazer. Na dúvida, meu caro, abstém-te - acrescentou, destacando as palavras.
Na hora do perigo duas vozes, igualmente fortes, se ouvem na alma do homem: uma aconselha sempre, prudentemente, que cada um de nós se dê conta exacta do perigo que o ameaça e trate de procurar maneira de o evitar; a outra, ainda com maior prudência, diz-nos ser muito penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto não estar nas possibilidades do homem prever e furtar-se à marcha dos acontecimentos, e o melhor é não nos preocuparmos com as coisas tristes antes do facto consumado e só pensarmos nas coisas agradáveis. O homem isolado obedece, regra geral, à primeira destas vozes; em sociedade, pelo contrário, submete-se à segunda.
Quando se fala do Sol, vêem-se-lhe os raios. - Sorria amavelmente para Pedro com aquela facilidade de mentir tão característica das senhoras da sociedade. - Acabávamos de falar de si.
Se um dos adversários tem dezasseis pedras e outro catorze, este é apenas uma oitava parte mais fraco do que aquele: porém, quando ambos tiverem perdido, cada um à sua parte, treze pedras, o primeiro será três vezes mais forte do que o segundo.
Antes da batlha de Borodino as forças russas, em relação às francesas, encontravam-se aproximadamente na proporção de cinco para seis e, depois da batalha, na de um para dois, o que quer dizer que antes da batalha os Russos eram cem mil contra cento e vinte mil, e depois dela cinquenta contra cem mil. E no entanto o experimentado e inteligente Kutuzov aceitou o combate. E Napoleão, esse génio militar, como então se dizia, aceitou a luta, que lhe custou um quarto do seu exército e ainda mais lhe estendeu as linhas. Ainda que se diga que, tomando Moscovo, pensava dar a campanha por finda, como acontecera depois da tomada de Viena, não faltam provas que demonstrem o contrário, os próprios historiadores de Napoleão referem que depois de Smolensk ele queria deter-se, ele próprio se dava conta do perigo da extensão das linhas, sabendo que a ocupação de Moscovo não seria o fim da campanha, pois desde Smolensk que verificava o estado em que encontravam as cidades que tomava e que nenhuma resposta obtinha às suas reiteradas tentativas de entabular negociações.
Oferecendo e aceitando a batalha, tanto Kutuzov como Napoleão agiram contrariamente ao livre-arbítrio e de forma insensata. No entanto, os historiadores, consumados os factos, extraíram consequências complicadas e especiosas sobre a visão e o génio dos generais, quando a verdade é que estes, no meio dos instrumentos inconscientes dos acontecimentos dessa época, mostraram ser os mais servis e os mais cegos.
Os antigos deixaram-nos modelos de poemas épicos em que os heróis são o principal interesse da história, por isso não nos podemos resignar a que a história do nosso tempo se lhe não assemelhe.
O exército russo, na sua retirada depois de Smolensk, teria procurado a melhor posição para travar uma batalha geral e tê-la-ia encontrado em Borodino.
Os Russos teriam fortificado previamente essa posição à esquerda da estrada de Moscovo a Smolensk e perpendicularmente, pouco mais ou menos, a esta estrada, entre Borodino e Utitsa, exactamente no local onde a batalha se travou. Ante esta posição, ter-se-ia estabelecido, para observar o inimigo, um posto avançado na encosta de Chevardino.
A 24, Napoleão teria assaltado esse posto avançado e tê-lo-ia tomado: a 26 teria atacado o grosso do exército russo, concentrado no campo de Borodino.
Para a pergunta - como se deram as batalhas de Borodino e a de Chevardino, que a precedeu? - existe também uma explicação precisa que toda a gente conhece, embora completamente falsa. Todos os historiadores, com efeito, descrevem essa dupla batalha da seguinte maneira:
Eis o que os historiadores dizem e tudo isto é absolutamente inexacto, coisa de que se convencerá facilmente quem quer que se decida a estudar com cuidado o acontecimento.
Os Russos não escolheram a melhor posição; pelo contrário, no decurso da sua retirada menosprezaram muitas outras melhores do que a de Borodino. Não se detiveram em qualquer delas porque Kutuzov não queria aceitar uma posição que não fosse escolhida por ele, e depois porque a patriótica necessidade de dar batalha ainda não se concretizara com suficiente força e ainda porque Miloradovitch ali não estava com a sua milícia, além de outras razões impossíveis de enumerar.
O facto é que as outras posições eram mais fortes, e que a de Borodino, onde se travou a batalha, não só não era a melhor como nem sequer era uma posição, visto não passar de um lugar como qualquer outro marcado ao acaso com um alfinete no mapa do império moscovita, Os Russos não só não fortificaram a posição de Borodino à esquerda e perpendicularmente à estrada, quer dizer, no local onde a batalha se travou, como antes de 25 de Agosto nunca tinham pensado que se pudesse vir a dar um recontro naquele local.
E a prova está, em primeiro lugar, que não só a 25 não havia ali qualquer fortificação, mas até mesmo as que se iniciaram a 25 não estavam concluídas a 26, e, em segundo lugar, na própria situação do reduto de Chevardino. Este reduto, na vanguarda da posição onde os exércitos se defrontaram, era inteiramente destituído de sentido. Porque foi esse reduto mais fortificado que todos os outros pontos? E porque é que, para defendê-lo, se resistiu no dia 24 até alta noite, envidando tantos esforços e perdendo seis mil homens? Para observar o inimigo, uma patrulha de cossacos chegava perfeitamente. Em terceiro lugar, a prova de que a posição onde se travou a batalha não estava prevista e que o reduto de Chevardino não era o seu posto avançado é que Barclay de Tolly e Bagration estiveram convencidos até 25 de que o reduto de Chevardino constituía o flanco esquerdo da posição, e que o próprio Kutuzov, no seu relatório, redigido quando ainda frescas as impressões da batalha, lhe chama o flanco esquerdo da posição.
Muito mais tarde, ao descrever-se a batalha de Borodino, naturalmente para justificar os erros do general-chefe, infalível custasse o que custasse, emitiu-se a afirmação inexacta e estranha de que o reduto de Chevardino era um posto avançado, quando na verdade não passava de uma posição fortificada qualquer do flanco esquerdo, e afirmando-se também que os Russos tinham aceitado a batalha numa posição fortificada e escolhida previamente, quando a verdade é que essa batalha se travou num local de todo imprevisto e por assim dizer, sem fortificações.
Eis como em verdade se passaram as coisas: escolheu-se um ponto no Kolotcha, que corta a estrada real não em ângulo recto, mas em ângulo agudo, de tal sorte que o flanco esquerdo estava em Chevardino, o direito nas imediações da aldeia de Novoie e o centro em Borodino, na confluência dos rios Kolotcha e Voina. Esta posição, protegida pelo no Kolotcha, era, evidentemente, a de um exército que se propunha deter o inimigo em marcha ao longo da estrada de Smolensk a Moscovo: eis qualquer coisa de evidente para quem quer que examine o campo de batalha esquecendo-se de como os factos se passaram.
Napoleão, ao dirigir-se, no dia 24, para Valuieva, não viu, segundo dizem os historiadores, a posição ocupada pelos Russos entre Utitsa e Borodino (não podia vê-la porque ela não existia). Tão-pouco viu a guarda avançada do exército, e só ao perseguir a retaguarda tropeçou no flanco esquerdo dos Russos, isto é, no reduto de Chevardino, e que, inesperadamente para os Russos, fez passar as suas tropas para a outra margem de Kolotcha. E então os Russos, que não tinham podido travar uma batalha geral, fizeram obliquar a ala esquerda da posição que pensavam ocupar para se estabelecerem numa posição nem prevista nem fortificada. Ao atravessar para a margem esquerda do no Kolotcha, portanto para a esquerda da estrada, Napoleão transportara a futura batalha do flanco direito para o esquerdo dos Russos, para a planície entre Utitsa Semionovskoie e Borodino, planície não mais vantajosa como posição que qualquer outra, e ali se travou a batalha de 26.
A traços largos, o plano da batalha, tal como a descreveram e tal como ela realmente se travou, seria o indicado na página seguinte. Se Napoleão não tivesse atravessado o no Kolotcha no dia 24 à noite e não houvesse dado ordens para não atacar o reduto nessa mesma noite, adiando o ataque para o dia seguinte, seríamos obrigados a reconhecer que o reduto era o flanco esquerdo da posição russa e a batalha ter-se-ia travado como os Russos esperavam. Neste caso os Russos teriam defendido mais encarniçadamente ainda o reduto de Chevardino, seu flanco esquerdo, atacando Napoleão no centro e à direita, e no dia 24 travar-se-ia a batalha geral na posição fortificada e prevista. Mas como o ataque ao flanco esquerdo russo se verificou à noite, em consequência da retirada da retaguarda russa, isto é, imediatamente após a batalha de Gridnievo, e como os generais russos não puderam ou não quiseram desencadear no dia 24 à noite a batalha geral, a primeira e parte principal da batalha de Borodino estava perdida desde aquele mesmo dia, implicando, forçosamente, a derrota do dia 26. Depois da perda do reduto de Chevardino, na manhã de 25, os Russos viram-se privados do ponto de apoio no flanco esquerdo, sendo forçados a restabelecer a ala esquerda e a fortificá-la à pressa, fosse como fosse. Mas o facto de as tropas russas no dia 28 de Agosto se encontrarem em entrincheiramentos insuficientes nada era comparado com o facto de os generais russos não terem atribuído a devida importância à perda da posição do flanco esquerdo, ou seja, a mudança da orientação da batalha da esquerda para a direita, deixando que as suas linhas continuassem a estender-se da aldeia de Novoie a Utitsa, e viram-se obrigados à transferência de tropas da direita para a esquerda durante o combate. E foi assim que os Russos, em plena batalha, só puderam opor à totalidade das tropas francesas a sua ala esquerda, isto é, forças duas vezes mais fracas. Quanto aos ataques de Poniatowski a Utitsa e de Uvarov ao flanco direito dos Franceses, eis incidentes inteiramente alheios à marcha geral das operações.
E foi assim que a batalha de Borodino se travou em circunstâncias completamente diferentes daquelas por que foi descrita na intenção de ocultar os erros dos generais, e isso apenas serviu para diminuir a glória do exército e do povo russos. Essa batalha não se travou numa posição escolhida e fortificada com forças apenas um pouco mais fracas do lado russo; foi aceite, em consequência da perda de Chevardino, numa planície aberta e quase sem fortificações, com forças duplamente mais fracas que as dos Franceses. Isto é, em condições tais teria sido impossível a essas tropas não já baterem-se durante dez horas seguidas e num combate indeciso, mas até mesmo aguentarem-se três horas que fosse sem serem vítimas de um desastre completo e sem virem a ser completamente desbaratadas.
Naturalmente Barclay não queria trair-nos, procurava arranjar as coisas da melhor maneira, calculara tudo Mas exactamente por isso é que nada vale. Nada vale hoje precisamente por tudo ter previsto, prudente e cauteloso como bom alemão que é. Como heide explicar-te?...
Supõe que teu pai tinha um criado alemão, um criado excelente, que adivinhava todos os seus pensamentos melhor do que tu próprio. E, como é natural, deixarias que ele continuasse a servi-lo. Mas supõe que teu pai adoecia gravemente, então tratarias de o pôr de lado e serias tu, com as tuas mãos desajeitadas e inexperientes, que cuidarias dele e muito melhor do que, um estranho, por mais hábil que fosse. Ora foi assim que procederam para com Barclay.
Enquanto a Rússia esteve de perfeita saúde, qualquer estrangeiro podia servi-la, e este era um excelente ministro, mas desde que a sua vida corre perigo, é de um homem do seu sangue que ela precisa.
Lá no teu meio, no teu clube, acharam que ele era um traidor. Caluniando-o dessa maneira é que depois se envergonharão dos juízos temerários que sobre ele ousaram, acabando por fazer dele um herói ou um génio, coisa ainda mais injusta. É um alemão honrado e meticuloso...
- Há quem diga, no entanto - voltou ele - que a guerra é como que uma partida de xadrez. - Talvez - replicou o príncipe André -, mas com esta pequenina diferença: que no xadrez, antes de mexeres uma pedra, te é dado pensares o tempo que quiseres, o tempo não urge: e com esta diferença ainda: que o cavaleiro é sempre mais forte que o peão, que dois peões são sempre mais fortes do que um, enquanto na guerra um batalhão às vezes é mais forte que uma divisão e outras mais fraco que uma companhia. Ninguém é, competente para conhecer a força relativa das tropas. Acredita no que te digo: se o resultado dependesse das medidas tomadas pelos estados- maiores, eu teria ficado no estado-maior e aí daria as minhas ordens, mas é aqui, neste regimento, que eu e estes senhores temos a honra de servir; é de nós, realmente, em minha opinião, que depende o dia de amanhã e não deles... O êxito nunca dependeu, nunca dependerá, nem da posição, nem do armamento, nem mesmo do número de tropas, sobretudo nunca dependeu da posição.
- Então de que depende?
- Do sentimento íntimo que existe em mim, no sentimento íntimo de cada soldado. O príncipe André olhava fixamente para Timokine, que, por sua vez, fitava o seu comandante com olhos assustados e estupefactos. Ganha a batalha quem decide firmemente ganhá-la. Porque perdemos nós a batalha de Austerlitz? As nossas baixas eram quase iguais às dos Franceses, mas tínhamos dito a nós próprios cedo de mais que seríamos vencidos e na verdade fomos. E se o dissemos é porque não tínhamos porque nos bater ali: só queríamos abandonar o campo de batalha quanto mais depressa melhor. «A batalha está perdida, tratemos de fugir!» E demos ás de vila-diogo. Se assim não tivéssemos falado muito antes do fim da jornada, só Deus sabe o que teria acontecido. Amanhã não diremos a mesma coisa. Que nos espera amanhã? Haverá milhões de possibilidades diversas, infinitamente variadas, que num momento dado farão que os deles ou os nossos homens desatem a fugir, que este ou aquele seja morto. Mas a verdade é que tudo quanto neste momento se faça não passa, de uma brincadeira.
Na realidade, esses com quem tu visitaste a posição, em vez de ajudarem a marcha geral das operações, estão a entravá-la. Só uma coisa os preocupa: os seus pequeninos interesses pessoais.
- Num momento destes?! - indignou-se Pedro.
- Sim, num momento destes - continuou o príncipe André. - Este momento, para eles, é apenas o momento em que lhes é possível minar a situação de um adversário e conseguir mais uma cruz ou mais uma palma. Quanto a mim, eis como a situação se apresenta amanhã. Cem mil russos vão defrontar cem mil franceses. É um facto que estes duzentos mil homens se vão bater e que sairão vencedores aqueles que se mostrem mais encarniçados na luta e que menos se compadeçam de si próprios. E dir-te-ei mais: aconteça o que acontecer, sejam quais forem as maquinações dos chefes, seremos nós quem ganhará a batalha de amanhã. Amanhã, apesar de tudo, ganharemos a batalha.
- Excelência, essa é a pura verdade - pronunciou Timokine.- Será a altura de poupar vidas? Pode crer, os soldados do meu batalhão não quiseram beber vodka. «Não é dia para isso», disseram eles.
- Está então convencido de que se ganhará a batalha de amanhã? - volveu Pedro.
- Sim, estou - replicou o príncipe André, distraidamente. - Uma decisão tomaria, se tivesse poderes para tal: não fazer prisioneiros. Prisioneiros? Eis o que é cavalheiresco! Os Franceses saquearam-me a casa e tentaram destruir Moscovo. Ultrajaram-me e outra coisa não fazem senão ultrajar-me. São meus inimigos, e para mim todos são criminosos. É preciso castigá-los. Desde que são meus inimigos não podem ser meus amigos.
- Não fazer prisioneiros - prosseguiu o príncipe André - seria transformar a guerra e torna-la menos cruel. Em vez disso, não fizemos outra coisa senão brincar às guerras. E esse foi o erro: mostrámo-nos magnânimos, etc.
Esta magnanimidade, este sentimentalismo, fazem-me lembrar a senhora que desmaia quando vê matar uma vitela. É tão boazinha que não pode ver correr sangue, embora seja capaz de comer com apetite essa mesma vitela servida com um molho saboroso.
Falam-nos nos direitos da guerra, de cavalheirismo, de parlamentários, de humanidade para com os desgraçados e de outras coisas no mesmo género. Tudo isso são tolices. Eu bem vi em 1805 todas essas lindas coisas, esse cavalheirismo, esse respeito pelos parlamentários.. Enganaram-nos, e nós, pela nossa parte, fizemos o mesmo. Saqueiam casas que lhes não pertencem, espalham dinheiro falso, e, coisa pior ainda, matam-nos filhos, pais, e depois vêm-nos falar das leis da guerra e da generosidade para com o inimigo. Não fazer prisioneiros, mas matá-los a todos e morrermos também! ...Se não existisse esta falsa magnanimidade na guerra, não caminharíamos para a morte senão quando a morte fosse certa, como acontece hoje. Não haveria guerras com o pretexto de que Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em compensação quando houvesse uma guerra como a de hoje então seria uma guerra a valer. E não haveria também grandes massas de tropas em acção, como agora. Todos esses westfalianos e todos esses hessianos que Napoleão traz consigo não o teriam seguido até à Rússia, e nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido bater na Áustria e na Prússia, sem mesmo saber por que razão. A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar com a mentira: a guerra, sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De outro modo a guerra será um entretenimento próprio de ociosos e de espíritos superficiais.
A classe militar é das mais dignas, Mas que é a guerra? Que é preciso para se ter êxito nas operações militares? Quais são os costumes da sociedade militar? A finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra.
Quais os costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina, a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez. E, apesar de tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. Todos os reis, à excepção do imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas reservam-se para aquele que mais gente matou. Reúnem-se os soldados, como vai acontecer amanhã, para se chacinarem uns aos outros. Matar-se-ão e ficarão mutilados dezenas de milhares de homens e depois haverá cerimónias religiosas de acção de graças por se terem morto tantos homens, sem que, no entanto, se deixe de exagerar o número dos que se mataram, proclamando-se a vitória, dizendo que quanto maior o número de mortos mais retumbante esta será. Como é possível que Deus os ouça e os escute lá de cima? - clamou o príncipe André na sua voz colérica. – Oh, querido amigo, durante os últimos tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas de mais. Não é bom conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal...
Ah, compreendia-a perfeitamente. Sim, compreendia-a, e era isso mesmo que eu amava nela, essa alma que trasbordava, essa sinceridade, essa candura, essa alma que parecia não lhe caber no corpo... Sim, era essa alma que eu tão intensamente amava, que tão feliz me fazia...
Findo que foi o almoço. Napoleão, na presença de De Beausset, ditou a ordem do dia ao exército.
- Curta e enérgica! - disse ele quando acabou de ler a proclamação, escrita de um só jacto, sem uma rasura.
A proclamação dizia:
Soldados! Eis aqui a batalha que tanto desejáveis! A vitória depende de vós e é-nos indispensável; com ela teremos abundância, bons aquartelamentos de Inverno e um rápido regresso à pátria! Comportai-vos como vos comportastes em Austerlitz, em Friedland, em Vitebsk e em Smolensk e a posteridade recordara, orgulhosa, as vossas façanhas deste dia. Que se possa dizer de cada um de vós: este esteve na grande batalha de Moscovo.
ORDEM DE BATALHA
Dada no acampamento imperial, na retaguarda de Mojaisk, a 6 de Setembro de 1812
Ao amanhecer, as duas novas baterias, instaladas durante a noite no plaino do príncipe de Eckmühl, romperão fogo contra as duas baterias inimigas dispostas na sua frente.
Na mesma altura, o general Pernety, comandante de artilharia do 1º corpo, com as trinta bocas de jogo da divisão Compans e todos os obuses das divisões Dessaix e Friant, que avançarão, romperá fogo e inundará de granadas a bateria inimiga, a qual, deste modo, terá contra si vinte e quatro peças da Guarda, trinta da divisão Compans e oito das divisões Friant e Dessaix, total, sessenta e duas bocas de fogo.
O general Foucher, comandando a artilharia do 3.` corpo, colocar-se-á, com todas as baterias de obuses dos 3º e 8º corpos, num total de dezasseis, em volta da bateria que bombardeia o reduto da esquerda, o que perfará um conjunto de quarenta bocas de fogo contra esta bateria.
O general Sorbier está preparado para à primeira voz se dirigir com todas as baterias de obuses da Guarda contra uma ou outra das fortificações.
Durante este canhoneio, o príncipe Poniatowski dirigir-se-á, através da floresta, em direcção à aldeia e contornará a posição inimiga.
O general Compans embrenhar-se-á na floresta para tomar o primeiro reduto.
Uma vez a batalha começada desta sorte, as ordens serão dadas consoante os movimentos do inimigo.
O canhoneio da esquerda iniciar-se-á assim que se ouvir o canhoneio da direita.
Os atiradores da divisão Morand e das divisões do vice-rei, assim que virem principiado o ataque da direita, abrirão fogo muito intenso.
O vice-rei ocupará a aldeia, transpondo as três pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e de Friant, que, sob o seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais tropas.
Tudo isto será feito com ordem e método e conservando sempre uma boa reserva de homens.
Este dispositivo, pouco claro e assaz confuso, se assim nos é permitido referirmo-nos, sem blasfémia, ao génio de Napoleão, encerrava quatro pontos, quatro disposições.
Nenhum deles se podia cumprir nem nenhum foi cumprido.
A ordem dizia, em primeiro lugar, que as baterias instaladas no local escolhido pelo imperador, bem como as peças de Pernety e de Foucher, que a elas se deveriam associar, ou seja, na sua totalidade, cento e duas bocas de fogo, romperiam fogo e inundariam de granadas as flechas russas e o reduto. Eis o que era impossível, visto que dos locais designados os projécteis não Podiam alcançar as fortificações russas e estas cento e duas peças disparariam debalde até que um comandante, procedendo contra as ordens dadas, as mandasse avançar.
A sua segunda resolução determinava que Poniatowski se dirigisse à aldeia, através da floresta, para contornar a ala esquerda dos Russos. Eis o que não podia executar-se, e o não foi, pois a Poniatowski deparou-se-lhe, na floresta, Tutchkov, que lhe cortou o passo e o impediu de contornar a posição.
A terceira determinação dizia que o general Compans atravessaria a floresta para se apoderar da primeira fortificação. A divisão Compans não pôde apoderar-se desta fortificação e foi repelida, visto que, ao desembocar da floresta, se viu obrigada a alinhar sob um fogo de metralha que Napoleão não previra.
E a quarta, por fim: «O vice-rei ocupará a aldeia de Borodino transpondo as três pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e Friant, que, sob o seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais tropas.»
Tanto quanto é possível interpretar esta ordem, não quanto sua confusa redacção, mas de acordo com as tentativas feitas pelo vice-rei para a executar, devia ele atravessar Borodino à esquerda do reduto, enquanto as divisões Morand e Friant atacariam a frente ao mesmo tempo. Esta ordem, assim como todos os outros pontos do dispositivo, não foi executada nem o podia ser. Depois de ter ultrapassado Borodino, o vice-rei foi repelido para o no Kolotcha e não pôde avançar mais: quanto às divisões de Morand e Friant, essas não tomaram o reduto, sendo esmagadas, e o reduto apenas foi tomado pela cavalaria no fim da batalha, circunstância que Napoleão naturalmente não previra.
Assim, nenhuma das disposições preconizadas foi executada e não o podia ser. Lê-se ainda nesse documento que, uma vez iniciada a batalha de acordo com o dispositivo assente, ordens ulteriores seriam dadas, consoante os movimentos do inimigo. Era, portanto, de presumir que durante a batalha Napoleão desse todas as ordens necessárias. Ora tal não aconteceu, o que aliás seria impossível, visto que, como depois veio a saber-se, o imperador, durante o combate, se manteve tão afastado que não podia ter conhecimento do desenrolar da batalha e que nenhuma das suas ordens poderia ter sido executada.
Muitos historiadores garantem que a batalha de Borodino não foi ganha pelos Franceses devido a Napoleão, nesse dia, estar constipado, e que, se não fosse isso, as suas ordens anteriores à batalha e durante ela teriam sido ainda mais geniais, a Rússia teria sido derrotada e a face do mundo teria sido outra. Para os historiadores que admitem ser a Rússia obra da vontade de um único homem, de Pedro, o Grande, que a França se metamorfoseou de república em império e que os exércitos franceses penetraram naquele país graças à vontade de um só homem, de Napoleão, aceitar que a Rússia se manteve poderosa apenas porque o imperador estava muito constipado no dia 26 eis o que é raciocinar com toda a lógica:
Se tivesse dependido da vontade de Napoleão travar ou não a batalha de Borodino, se dele dependesse tomar esta ou aquela disposição, é evidente que uma constipação, capaz, necessariamente, de influenciar as manifestações da sua vontade, podia ter sido a causa da salvação da Rússia e o criado de quarto que no dia 24 se esqueceu de dar umas botas impermeáveis ao imperador seria a esta hora, certamente, o nosso salvador. Nesta ordem de ideias, a conclusão é indiscutível, tão indiscutível como o gracejo de Voltaire ao atribuir a matança de S. Bartolomeu a uma indisposição de estômago de Carlos IX. Mas, para os homens que se recusam a admitir que os acontecimentos importantes possam ser a consequência da manifestação da vontade de um só homem, o argumento anterior, além de pura e simplesmente absurdo, é contrário a toda a verdadeira lógica humana. Quando se inquire da causa dos acontecimentos históricos, outra resposta pode dar-se, qual seja a que o caminho das coisas deste mundo está determinado antecipadamente, dependendo do concurso do livre arbítrio de todos os actores dos acontecimentos, não sendo senão externa e aparente a influência que sobre eles possam exercer os Napoleões.
Por estranho que pareça à primeira vista a asserção segundo a qual a ordem dada por Carlos IX para a matança de S. Bartolomeu só aparentemente dependeu da sua vontade, e que a batalha de Borodino, em que oitenta mil homens perderam a vida, não haja sido ordenada por Napoleão, embora tenha sido ele quem deu essa ordem e quem orientou os lances da batalha, pois apenas julgou fazê-lo, por mais ilógico que se suponha, a dignidade humana que nos diz que cada um de nós não é mais nem menos homem do que qualquer Napoleão leva-nos a admitir essa solução como uma hipótese, e as investigações históricas plenamente confirmam tal ponto de vista.
Na batalha de Borodino, Napoleão não disparou um único tiro, não matou quem quer que fosse. Foram os seus soldados quem tudo fez. Por consequência, não foi ele quem matou. Os soldados do exército francês acorreram a matar o seu semelhante não para executarem ordens, mas de livre vontade. Todo o exército - franceses, italianos, alemães, polacos – esfomeado, esfarrapado, morto de fadiga, ao ver-se diante desse outro exército que lhe cortava o passo para Moscovo, teve a impressão de que «o que não tem remédio, remediado está», Se naquele momento Napoleão tivesse proibido os seus soldados de se baterem com os Russos, tê-lo-iam matado a ele, e teriam ido bater-se fosse como fosse, visto isso ser inevitável.
Quando ouviram ler a ordem do dia de Napoleão, na qual lhes prometia, para os recompensar dos ferimentos e da morte, o orgulho, para a posteridade, de terem estado na batalha de Moscovo, gritaram. «Viva o Imperador!» exactamente como tinham gritado: «Viva o Imperador!» ao verem a criança que trespassava o globo terrestre com um taco de emboca-bola ( quadro com o filho de Napoleão), e tal qual como o fariam de cada vez que lhes dissessem uma tolice do mesmo género. Outra coisa, não podiam fazer senão gritar: «Viva o Imperador!» e marchar para a batalha. Eis a única maneira, de virem a encontrar em Moscovo, depois da vitória, pão para a boca e descanso para o corpo.
E eis como não foi por causa das ordens do seu amo que eles mataram o seu semelhante. E também não foi Napoleão quem dirigiu a luta, visto nada se ter cumprido do dispositivo que ele traçara, e que ele próprio nada soube da marcha da batalha. Assim, pois, o facto de estes soldados terem chacinado o seu semelhante não veio a produzir-se por vontade de Napoleão, mas deu-se, sem sua intervenção, graças à vontade dessas centenas de milhares de homens que, intervieram no acontecimento. Bonaparte teve apenas a ilusão de, que tudo era obra de sua vontade. Por isso mesmo, o ter estado, constipado ou não conta mais para a história que a constipação de qualquer dos seus mais modestos soldados. A constipação de Napoleão no dia 26 de Agosto ainda se torna menos importante desde o momento em que são injustificadas as demonstrações dos historiadores ao dizerem ter sido por causa desta indisposição que as suas resoluções durante a batalha foram menos eficazes do que das outras vezes.
O dispositivo atrás citado não era pior do que os anteriores, era mesmo melhor que todos os que tinham servido para ganhar outras batalhas. As supostas ordens dadas por Napoleão durante o combate não eram piores que as precedentes, mas exactamente iguais. No entanto esse dispositivo e essas ordens pareceram piores porque a batalha de Borodino foi a primeira que Napoleão não ganhou. Os mais belos e mais profundos planos parecem sempre maus e os sábios estrategos criticam-nos com um ar proficiente sempre que acontece não terem levado à vitória; pelo contrário, parecem excelentes as mais contestáveis disposições, e os autores mais sérios não se cansam de lhes louvar os méritos, enchendo sobre eles volumes e volumes, desde que levaram à vitória.
O dispositivo de Weirother em Austerlitz era modelar no seu género; no entanto, foi desaprovado e desaprovaram-no precisamente por causa da sua perfeição, da minúcia dos seus pormenores.
Na batalha de Borodino, Napoleão desempenhou o seu papel de representante do poder tão bem ou melhor do que em qualquer das outras batalhas. Nada fez que prejudicasse a marcha dos acontecimentos. Tomou as medidas mais sensatas; não perdeu a cabeça, não caiu em qualquer contradição, manteve o sangue-frio e não fugiu do campo de batalha. Mercê do seu grande tacto e da sua experiência guerreira, soube desempenhar com calma e dignidade o papel de personagem fictícia de chefe supremo.
A fortuna é uma verdadeira cortesã, sempre o disse e começo a senti-lo- disse Napoleão.
- Não tenho nem paladar nem olfacto – disse Napoleão, cheirando o copo. - Esta constipação é insuportável. Estão sempre a falar em medicina. Que medicina é esta que não é sequer capaz de curar uma constipação? Corvisart deu-me estas pastilhas, mas para nada prestam. Poderão curar? É impossível curar. O nosso corpo é uma máquina de viver. Está organizado para isso, é da sua natureza; deixe-se nele a vida exprimir-se livremente, que ela própria se defenda: obrará maiores prodígios do que se a cumularmos de remédios. O nosso corpo é semelhante a um relógio perfeito com corda para um certo tempo; o relojoeiro não tem o poder de o abrir, mas apenas de o manusear às apalpadelas e de olhos vendados... O nosso corpo é uma máquina de viver, eis tudo.
E embalado nas definições, coisa tão do seu agrado, logo ali deu outra. - Sabe o que é a arte da guerra, Rapp? - perguntou. - É a arte de ser mais forte do que o inimigo em determinado momento. Eis tudo.
Napoleão, de pé, no cômoro, estava de óculo assestado, e o limitado campo da objectiva deixava-lhe ver fumo e soldados, ora o fumo e os soldados franceses ora o fumo e os soldados russos. Assim que observava, porém, o terreno à vista desarmada já lhe não era possível situar exactamente o que acabara de ver. Desceu do cabeço e começou a passear de um lado para o outro.
A verdade é que nem do lugar em que estava Napoleão nem do alto da eminência onde tinham ficado vários dos seus generais, nem mesmo das próprias linhas agora ocupadas umas vezes pelos Franceses, outras pelos Russos, soldados mortos, feridos, vivos, aterrorizados ou meio loucos, em parte alguma podia saber-se o que se estava a passar naquele local.
Durante muitas horas, naqueles sítios, no meio do ininterrupto troar das peças de artilharia e da fuzilaria das espingardas, tão depressa apareciam os Russos como os Franceses e ora eram soldados de infantaria ora de cavalaria que caíam, disparavam, tropeçavam uns nos outros, gritando e fugindo sem saber o que deviam fazer.
Dos diversos pontos do campo de batalha estavam sempre a chegar ajudantes-de-campo expedidos ao imperador, oficiais de ordenança dos marechais encarregados de trazer informações sobre a marcha da batalha, mas tudo o que diziam era falso, pois no calor da batalha não se podia dizer o que estava a passar-se num determinado momento e, aliás, muitos destes oficiais não Podiam atingir sequer os pontos designados, limitando-se a repetir oque ouviam. Além disso, enquanto eles percorriam as duas ou três verstas que os separavam de Napoleão, as coisas modificavam-se e as notícias por eles trazidas deixavam de corresponder à situação. Assim, um ajudante-de-campo do vice-rei veio anunciar que Borodino fora tomada e que a ponte do Kolotcha estava nas mãos dos Franceses, perguntando a Napoleão se dava ordem para as tropas atravessarem o rio, ao que lhe foi respondido que se mandassem alinhar as tropas na outra margem e que esperassem aí. No momento, porém, em que era dada esta ordem, melhor ainda, mal o ajudante-de-campo saíra de Borodino, a ponte fora retomada e queimada pelos Russos.
De regresso das flechas, um ajudante-de-campo, muito pálido, o terror pintado no rosto, anunciou ao imperador que o ataque fora repelido, que Compans estava ferido e Davout fora morto. Enquanto, todavia, ele comunicava estas notícias, as fortificações haviam sido de novo ocupadas por outras tropas e Davout continuava vivo, pois apenas fora ligeiramente ferido.
Guiando-se por estas informações, evidentemente falsas, Napoleão dava ordens já cumpridas ou que teriam sido impossíveis de executar.
Os marechais e os generais que se encontravam mais perto dos acontecimentos, mas que, tal como Napoleão, não participavam da batalha e raramente penetravam na zona de fogo, tomavam as suas disposições sem consultar o imperador e transmitiam as suas ordens sobre onde devia incidir o fogo e como a cavalaria e a infantaria deveriam intervir. Mas estas ordens, bem como as do imperador, só em pequena escala eram executadas e muito raramente, a maior parte das vezes ao contrário das circunstâncias.
As tropas que recebiam ordem para avançar, surpreendidas pela metralha, debandavam; aquelas que recebiam ordem para permanecer no seu lugar, ao verem surgir o inimigo inopinadamente, punham-se em fuga ou então atacavam-no, e a cavalaria, sem ter recebido ordem para isso, lançava-se na perseguição dos russos em debandada. Assim, dois regimentos de cavalaria que atravessaram a ravina de Semionovskoie, mal atingiram o cume viraram de rédea, regressando ao mesmo sítio a galope. E outro tanto aconteceu com a infantaria, que muitas vezes se precipitou sobre pontos que não estavam prescritos.
Todas as ordens relativas às deslocações das peças de artilharia, dos batalhões de fuzileiros e das tropas montadas, com o objectivo de carregar sobre a infantaria russa, quem as deu foram os comandantes mais próximos das fileiras, sem pedirem conselho nem a Ney, nem a Davout, nem a Murat, quanto mais a Napoleão.
Não receavam ser castigados por não haverem executado o que estava prescrito ou por terem agido de moto próprio, pois a verdade é que numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso, ou seja, na própria vida, e o que pode acontecer é que umas vezes a salvação esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante.
Estes homens, no calor da refrega, agiam segundo as circunstâncias. Na verdade, todos estes movimentos para a frente ou para trás não aliviavam nem modificavam a posição das tropas. Esses ataques, quer a pé, quer a cavalo, não produziam grande mortandade; o que semeava os ferimentos, as mutilações e a morte eram os projécteis, as balas que voavam por todos os lados na área onde se moviam as tropas. Logo que os homens atingiam a zona a que os projécteis não chegavam, os comandantes, na retaguarda, obrigavam-nos a cerrar fileiras, restabelecendo a disciplina, e, graças a esta disciplina, voltavam a expedi-los para aquele círculo de fogo onde o medo da morte os fazia perder de novo o sangue-frio, entregando-os ao cego instinto das multidões.
- Temos de lhes dar as reservas - decidiu, com gesto enérgico. - Que lhes devemos mandar? Que acha? - perguntou a Berthier, a esse «ganso que transformei em águia», como disse mais tarde Napoleão.
(…)Embora não houvesse qualquer vantagem especial em mandarem a 2ª em vez da 1ª e existisse, pelo contrário, o inconveniente da perda de tempo que resultava do facto de se ter de deter a divisão que se pusera em movimento para a substituir pela Friant, a ordem foi executada fielmente. Napoleão não se dava conta de que estava a proceder para com as suas tropas como o médico cujos remédios resultam mais perniciosos que a doença, maneira de agir aliás que ele muito bem sabia ver e criticar nos outros.
Napoleão estava sentindo essa penosa sensação de jogador venturoso que atirou para a mesa de jogo, num desvario, todo o seu dinheiro, habituado que estava a ganhar sempre, e de súbito, precisamente quando calculou todos os azares da partida, pressente que quanto mais reflectir sobre a jogada tanto mais certa será a perda.
As suas tropas eram as mesmas, os mesmos os seus generais, análogas as medidas tomadas, o plano de batalha era o mesmo, mesmíssima a sua proclamação breve e enérgica. Ele próprio não mudara, tinha a certeza. Pensava, até, dispor de muito mais experiência e habilidade que outrora. O inimigo, por sua vez, também era o mesmo de Austerlitz e de Friedland. E, não obstante a marretada tremenda que lhe dera, resultava impotente. Parecia bruxedo.
Empregou todas as suas medidas outrora invariavelmente coroadas de êxito - concentração do fogo das baterias sobre um mesmo ponto, ataque das reservas para romper as linhas, assalto da cavalaria dos homens de ferro -, todas empregara agora e não só não conseguia a vitória, como eram sempre as mesmas as notícias que continuamente vinham até ele: generais mortos ou feridos, necessidade urgente de reforços, impossibilidade de vencer a resistência dos Russos, desorganização das tropas francesas.(…)
O imperador, por virtude da sua grande experiência, sabia de sobra o que significava uma batalha de oito horas, batalha em que empregara todos os esforços e em que o atacante ainda não levara a melhor. Para ele era quase uma batalha perdida e, no ponto instável em que a luta se encontrava, o mais pequeno incidente podia perdê-los - a ele e ao exército.
Ao rememorar toda aquela estranha campanha da Rússia em que não obtivera qualquer vitória, onde, em dois meses, não tomara nem bandeiras, nem canhões, nem qualquer corpo de exército, ao evocar as expressões que o cercavam, secretamente preocupadas, ouvindo as referências à resistência obstinada do inimigo, sentia-se tomado de uma angústia no género das que se sentem nos pesadelos, e ao espírito acorriam-lhe, de súbito, todas as circunstâncias infelizes que o podiam perder. Os Russos podiam atacar a sua ala esquerda; podiam perfurar-lhe o centro; um projéctil perdido podia matá-lo. Tudo era possível. Em todas as batalhas anteriores apenas pensara nas possibilidades de êxito: agora só esperava e pressentia circunstâncias funestas. Sim, parecia um pesadelo em que um homem, atacado por um malfeitor, por mais esforços que faça para brandir uma arma e atingir o adversário, sente que a mão lhe cai, mole e impotente, como um trapo, enquanto o sentimento horrível de uma morte inevitável se apodera do desventurado indefeso.
(…) O imperador deteve-se e recaiu na meditação ... Não estava nas suas mãos fazer parar o que via desenrolar-se diante dos seus olhos, embora passasse por iniciador e responsável de semelhante obra, e pela primeira vez, perante o seu fracasso, essa obra lhe parecia inútil e horrível.
Um dos generais que se aproximara de Napoleão permitiu-se propor-lhe que autorizasse a velha Guarda a entrar em acção. (…) Napoleão baixou a cabeça e permaneceu por muito tempo silencioso. - A oitocentas léguas de França não sacrificarei a minha Guarda - disse ele, e, dando meia volta, regressou a Chevardino.
A sua larga experiência da guerra, a sua prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas de milhares de outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se chama «o moral das tropas» e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do possível.
(…) nos assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai vitorioso.
(…) E graças a essa cadeia indefinida e misteriosa que mantinha em todo o exército o mesmo estado de espírito a que se costuma chamar «moral das tropas» e que constitui o nervo vital da guerra, as palavras de Kutuzov e a sua ordem do dia anunciando a batalha para a manhã seguinte imediatamente se transmitiram a todos os pontos do corpo do exército.(…) Ao inteirar-se de que no dia seguinte atacaria o inimigo, ao ouvir nas esferas superiores do exército a confirmação daquilo em que queria crer, toda aquela gente extenuada e hesitante se sentiu consolada e ganhou confiança.
Sim, a piedade, o amor dos nossos irmãos, daqueles que nos amam, o amor dos que nos odeiam, o amor dos nossos inimigos, sim, esse amor que Deus veio pregar sobre a Terra, esse amor de que me falava a princesa Maria e que eu não compreendia, eis o que me faz ter pena da vida, eis a única coisa que me restaria se ainda tivesse vida para viver. Mas agora é tarde, tarde de mais, eu bem sei.
O aspecto aterrador do campo de batalha, coberto de mortos e moribundos, o peso que sentia na cabeça e a nova de que vinte dos, seus generais tinham sido mortos ou postos fora de combate, tudo isto e o reconhecimento, a que se via obrigado, da impotência do seu pulso, outrora todo poderoso, produziu um efeito inesperado em Napoleão, que ordinariamente gostava de ver os mortos e os feridos no intuito de pôr à prova a sua força moral, como costumava dizer. Naquele dia o pavoroso aspecto do campo de batalha vencera a sua força moral, coisa em que estribava o seu mérito e a sua grandeza. Retirou-se precipitadamente e regressou ao reduto de Chevardino.(…) Naquele momento não desejava nem Moscovo, nem a vitória, nem a glória. Para que queria a glória? Nada mais desejava naquele momento além do repouso, da serenidade e da liberdade.(…)De novo se deixou mergulhar nesse mundo fictício, povoado de visões de grandeza, e de novo, como um cavalo que, movendo uma nora, julga realizar uma tarefa útil para si, cumpria, docilmente, o cruel, doloroso, inumano e penoso papel para que estava predestinado.
E não foi só naquela hora e naquele dia que o espírito e a consciência se lhe obscureceram, àquele homem sobre quem pesava mais do que sobre qualquer outro ser humano a responsabilidade do que se estava a passar.
Nunca, até ao último dos seus dias, pôde compreender o que era o bem, o que era a beleza, o que era a verdade, nem jamais compreendeu a significação dos seus próprios actos por de mais opostos à verdade e ao bem para que ele pudesse compreender-lhes o significado. Nunca pôde renegar os seus próprios actos, tão louvados por meio mundo, e assim se viu forçado a renegar a verdade e o bem e tudo o que era verdadeiramente humano.
Não foi só naquele dia que ele, percorrendo o campo de batalha juncado de soldados mortos ou mutilados - por obra e graça da sua vontade, assim pensava -, pôde calcular quantos eram os mortos russos por cada morto francês, e, enganando-se a si próprio, achara razões para rejubilar, pois, segundo ele, por cada um dos seus tinham caído cinco do inimigo. Não foi só naquele dia que ele disse, como escreveu numa carta para Paris: «O campo de batalha estava soberbo», por haver mais de cinquenta mil cadáveres. Também na ilha de Santa Helena, no silêncio da solidão, onde, segundo declarara, pensava consagrar os seus ócios a relatar as obras que levara a cabo, escreveria:
A guerra da Rússia devia ter sido a guerra mais popular dos tempos modernos: era a guerra do bom senso e dos verdadeiros interesses, a guerra do repouso e da segurança geral; era puramente pacífica e conservadora.
Era pela grande causa, pelo fim dos acasos e pelo princípio da segurança. Um horizonte novo, novos trabalhos iam, desenrolar-se, cheios do bem-estar e da prosperidade de todos. Estava fundado o sistema europeu; restava apenas organizá-lo. Satisfeitos que fossem estes grandes objectivos e tranquilo que me visse em toda a parte, teria tido também o meu Congresso e a minha Santa Aliança. Ideias que me roubaram.
Nessa reunião de grandes soberanos teríamos tratado dos nossos interesses em família e contaríamos então, de amo a servidor, com todos os povos. Deste modo teria chegado a ser a Europa verdadeiramente um único povo e toda a gente por onde quer que viajasse encontrar-se-ia sempre na pátria comum. Teria obtido o livre trânsito em todos os rios navegáveis, a comunidade dos mares, e que os grandes exércitos permanentes fossem reduzidos daí para o futuro à escolta dos soberanos.
De regresso a França, no seio da pátria, grande, forte, magnífica, tranquila, gloriosa, teria proclamado os seus limites imutáveis; teria declarado todas as guerras futuras puramente defensivas e qualquer engrandecimento novo antinacional.
Teria associado meu filho ao império, a minha ditadura acabaria, e teria começado um reinado constitucional... Paris teria sido a capital do mundo e os Franceses a inveja das nações!...
Os meus ócios e os dias da minha velhice teriam sido consagrados, na companhia da imperatriz e enquanto durasse o aprendizado real de meu filho, a visitar, vagarosamente, e como um verdadeiro casal de aldeões, com os nossos próprios cavalos, todos os recantos do Império, ouvindo as queixas, fazendo justiça, semeando por toda a parte monumentos e boas obras.
Destinado pela Providência para desempenhar o papel lamentável e servil de carrasco das nações, queria convencer-se de que o seu objectivo era o bem dos povos e que podia orientar o destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade.
Dos 400 mil homens que atravessaram o Vístula - escreveria mais adiante a propósito da campanha da Rússia - metade eram austríacos, prussianos, saxões, polacos, bávaros, wurtem, burgueses, espanhóis, italianos, napolitanos. Um terço do exército imperial propriamente dito era formado por holandeses, belgas, naturais das margens do Rena, piemonteses, suíços, genebrinos, toscanos, romanos, componentes da 32ª divisão militar, habitantes de Brémen, Hamburgo, etc.; nele apenas 140 mil homens falavam francês. A expedição da Rússia custou menos de 50 mil homens à França actual; o exército russo, na retirada de Vilna para Moscovo e nas diversas batalhas que se travaram perdeu quatro vezes mais homens que o exército francês; no incêndio de Moscovo perderam a vida 100 mil russos, mortos de frio e de fome nas florestas; e por último, na sua marcha de Moscovo até ao Óder, o exército russo foi também castigado pelas intempéries da estação; quando chegou a Vilna, apenas contava 50 mil homens e em Kalisch tinha menos de 18 mil!.
Napoleão pensava, pois, que esta guerra contra a Rússia era obra sua, e o horror do que acontecera não lhe causava a mais pequena emoção. Assumia toda a responsabilidade dos acontecimentos e a sua mente ofuscada achava justificação no facto de entre as centenas de milhares de homens sacrificados haver menos franceses do que bávaros ou habitantes do Hesse.
Alguns historiadores foram de parecer de que bastaria, Napoleão ter mandado avançar a sua velha Guarda para a batalha ser ganha. Mas quem assim se exprime parece supor que o Outono pode de súbito transformar-se em Primavera, coisa impossível. Se Napoleão não ofereceu a sua Guarda, não foi porque o não quisesse, mas por lhe ser impossível. Tanto os generais, como os oficiais, como os soldados, sabiam que assim era: o estado de desmoralização do exército não o permitia.
Não foi só Napoleão quem sentiu que o seu braço terrível tombava sem força: todos os generais, todos os soldados do exército francês, quer combatentes, quer não combatentes, depois do que tinham visto nas batalhas precedentes, em que o inimigo costumava debandar após uma resistência de um contra dois, haviam sido tomados de um pavor geral na presença de adversário que, após haver perdido metade dos seus efectivos, ali continuava tão ameaçador no fim como no princípio da batalha. A força moral do exército francês atacante estava exausta. A vitória que os Russos obtiveram em Borodino não foi uma dessas vitórias que se proclamam com trapos hasteados em paus, à maneira de troféus, uma dessas vitórias que se medem pela extensão do território conquistado, mas uma vitória moral, uma dessas vitórias que convencem o adversário da superioridade moral que se lhe opõe e da inutilidade dos seus próprios esforços. A invasão francesa. à semelhança de uma fera enraivada mortalmente ferida na sua carreira, pressentia estar perdida, mas assim como o exército russo, duas vezes mais fraco, não podia ceder, a invasão não podia deter-se. Graças à velocidade adquirida, os Franceses ainda iriam até Moscovo, mas seria aí, sem que as forças russas tivessem de fazer novos sacrifícios, que soçobrariam, perdido que fora todo o seu sangue pela ferida mortal que receberam em Borodino, Uma das consequências directas da batalha foi obrigar Napoleão, sem qualquer motivo definido, a fugir de Moscovo, a bater em retirada pela velha estrada de Smolensk, suportando a perda de um exército invasor de quinhentos mil homens e assistindo à destruição da França napoleónica, sobre a qual, pela primeira vez, em Borodino, se abatera o braço de um adversário com força moral superior.
A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento. As leis de um movimento qualquer só são inteligíveis ao homem quando lhe é dado examinar separadamente as unidades que o compõem.
A verdade porém é que é desta divisão arbitrária do movimento ininterrupto em unidades isoladas que resulta ao mesmo tempo a maior parte dos erros humanos.
Quem há aí que não conheça o sofisma dos antigos segundo o qual Aquiles nunca apanharia a tartaruga ainda que caminhasse dez vezes mais depressa do que ela? Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito. Este problema afigurava-se insolúvel aos antigos, quando o absurdo da conclusão dada resulta apenas do facto de se decompor o movimento arbitrariamente em unidades, quando o certo é que o movimento de Aquiles e o da tartaruga se produzem ininterruptamente.
Ao tomarmos as unidades de um movimento nas suas parcelas cada vez mais pequenas, não fazemos mais do que aproximarmo-nos de uma solução sem nunca a podermos atingir. Só admitindo as grandezas infinitesimais e a sua progressão ascendente até à décima e depois somando esta progressão geométrica podemos obter a solução do problema. O novo ramo das matemáticas, que é a ciência dos infinitesimais, como sucede com os mais complicados problemas do movimento, resolve agora questões outrora consideradas insolúveis. No exame destes problemas, admitindo os números infinitesimais, esta nova ciência restabelece as condições fundamentais do movimento, isto é, a sua continuidade absoluta, e por essa razão corrige o erro que a inteligência humana não pode evitar quando estuda as unidades parcelares do movimento em vez do movimento contínuo.
No que diz respeito ao estudo das leis do movimento histórico, a mesma coisa acontece.
O movimento da Humanidade, consequência de inúmeras vontades humanas parcelares, não sofre interrupções. A finalidade da História é a compreensão das leis deste movimento.
Mas, para compreender as leis do movimento contínuo resultante da soma de todas as vontades humanas, a inteligência tem de admitir unidades parcelares e arbitrárias, O primeiro processo usado pelos historiadores consiste em tornar uma série de acontecimentos que se sucedem e examiná-los separadamente, quando é certo que não há e não pode haver princípio para nenhum acontecimento, pois todos dependem invariavelmente uns dos outros. O outro processo consiste em se considerarem os actos de um homem, rei ou grande general, como a soma das vontades de todos, quando o que acontece é que essas vontades nunca se traduzem na actividade de uma só personagem histórica, seja ela qual for.
A ciência histórica, na sua evolução, admite unidades cada vez menores, procurando deste modo aproximar-se da verdade. Mas, por mais pequenas que elas sejam, chegamos à conclusão de que conceber uma unidade separada das outras, aceitar o começo de um fenómeno qualquer, admitir que a vontade de todos se exprima nos actos de uma só pessoa, é caminho errado.
Toda a conclusão histórica se desfaz em pó, sem deixar rasto atrás de si, sob a pressão de qualquer ínfimo esforço crítico, desde que esta crítica eleja como medida de observação uma unidade maior ou mais pequena, coisa a que tem inteiro direito, visto ser sempre arbitrária a unidade histórica. Só podemos esperar compreender as leis históricas tomando para base das nossas observações a unidade infinitesimal, os diferenciais da História, quer dizer, as tendências uniformes dos homens, e integrando-as, isto é, somando-as umas às outras.
Nos quinze primeiros anos do século XIX milhões de homens se movimentam na Europa. Todos abandonam as suas preocupações habituais, deslocando-se de um lado para o outro do continente, e é vê-los saquear, matar, vencer e desesperarem. Durante estes anos a vida muda, arrastada num movimento de princípio intenso, para depois declinar. Qual a causa de semelhante fenómeno ou quais as leis que o produziram? - pergunta a razão humana.
Os historiadores respondem a esta pergunta expondo-nos os actos e os discursos de uma dezena de homens reunida num edifício da cidade de Paris, e dão a esses actos e a esses discursos o nome de «revolução». Depois oferecem-nos a biografia, em todos os seus pormenores, de Napoleão e de várias outras personalidades simpáticas ou hostis para com essa revolução, referindo-nos as influências que exercem uns sobre os outros, para nos dizerem em seguida: eis aqui a causa desse movimento, e ali as suas leis.
A verdade, porém, é que a nossa razão não só se recusa a admitir esta explicação como declara abertamente ser errónea, uma vez que as causas apresentadas são demasiado débeis para explicar semelhante fenómeno. Foi a soma das vontades humanas que fez a revolução e que tornou possível Napoleão, e só ela os manteve e aniquilou.
«No entanto», dirá o historiador, «sempre que houve conquistas houve conquistadores; sempre que houve uma revolução houve grandes homens.»
De facto, responde a razão, onde houve conquistadores houve guerras, o que não quer dizer que os conquistadores fossem a causa das guerras e que seja possível descobrirem-se as leis a, que essas guerras obedecem nos actos individuais de um único homem. Sempre que olho para o mostrador do meu relógio, quando o ponteiro se aproxima das dez, ouço badalar os sinos da igreja vizinha. Não tenho, porém, o direito de concluir que a posição do ponteiro do meu relógio seja a causa do badalar dos sinos.
Sempre que vejo deslocar-se uma locomotiva, sempre que lhe ouço o apito e vejo mover-se-lhe o êmbolo, não tenho o direito de concluir que o silvo e o movimento das rodas sejam a causa da marcha da locomotiva. Os camponeses estão convencidos de que o vento gelado que sopra no fim da Primavera é provocado pelo rebentar dos renovos do carvalho, e efectivamente, quando na Primavera começam a rebentar os renovos do carvalho, sopra um vento frio. E conquanto eu ignore a razão desse fenómeno, não me é permitido estar de acordo com os camponeses, pois é evidente que o vento não pode depender dos renovos do carvalho. O fenómeno que observo é o resultado da coincidência de dois factos, o que aliás se verifica em numerosas manifestações naturais, e sou levado a concluir que, por mais que eu estude atentamente a marcha dos ponteiros do meu relógio, o movimento do êmbolo e das rodas da locomotiva ou os renovos do carvalho, não me é possível reconhecer nisso a razão do badalar dos sinos, do movimento da máquina ou do vento da Primavera.
Para chegar a uma conclusão aceitável sinto-me na obrigação de modificar inteiramente o meu ponto de vista de observador, estudando as leis do vapor, as leis do som e as do vento. Eis o que o historiador tem de fazer. E o certo é que já se empreenderam ensaios nesse sentido.
No estudo das leis da história é o objecto das nossas observações que precisa de ser modificado. É preciso deixar em paz os reis, os ministros e os generais e procurarem-se os elementos homogéneos e infinitesimais que dirigem as massas. Ninguém pode dizer até que ponto por esse meio se podem chegar a conhecer essas leis, mas não há dúvida de que apenas por esse lado elas se podem apreender e que nesse caminho o espírito humano não fez a milésima parte dos esforços que empregou para descobrir os actos de tantos reis, de tantos chefes militares e de tantos ministros e desenvolver as considerações que esses actos sugerem.
Exércitos de «doze povos diferentes» da Europa se tinham lançado sobre a Rússia. As tropas e as populações russas batem em retirada, evitando o contacto com o inimigo, em direcção a Smolensk e de Smolensk a Borodino.
Os Franceses, animados por uma força propulsora cada vez maior, lançam-se sobre Moscovo, objectivo de todo o seu esforço. Esta força, à medida que, se aproxima do fim, aumenta de volume, de acordo com as leis que regem o movimento de aceleração na queda dos corpos.
Na retaguarda do exército, milhares de verstas de um país devastado e, inimigo; na sua vanguarda, dezenas de verstas separando-o do seu destino. Eis o que cada soldado francês pensa, e a invasão continua por si mesma, graças à força deste impulso.
No exército russo, quanto mais se recua mais se inflama nos corações o ódio contra o inimigo: a retirada concentra e exaspera esse ódio. Em Borodino dá-se o choque. Nenhum dos exércitos cede terreno diante do outro, mas, após o embate, os Russos têm, fatalmente, de continuar a recuar. Como acontece a uma bola, que, jogada contra outra, animada de maior velocidade, tem forçosamente de recuar, assim a bola da invasão, conquanto haja perdido a sua força no embate, tem necessariamente de continuar a rolar por algum tempo.
Os Russos recuam para cento e vinte verstas além de Moscovo, os Franceses avançam até Moscovo e detêm-se aí.
Nas cinco semanas seguintes, todos os combates cessam. Os Franceses não se mexem. À semelhança de uma fera mortalmente ferida que vai perdendo sangue enquanto lambe os seus ferimentos, ei-los ali imóveis durante cinco semanas, sem tentarem seja o que for, até que por fim, de súbito e independentemente de qualquer motivo, retrocedem.
Precipitam-se pela estrada de Kaluga, e embora vitoriosos, pois no combate que se trava em MaloIaroslavetz ficam senhores do campo de batalha, sem travar qualquer combate sério, debandam cada vez mais depressa em direcção a Smolensk e de Smolensk direitos a Vilna, atravessando Beresina e assim por diante.
Na noite de 26 de Agosto, Kutuzov, bem como todo o exército russo, estavam persuadidos de que a batalha podia considerar-se ganha. O Sereníssimo comunicou-o mesmo, por escrito, ao imperador. E ordenou que se preparassem para um novo combate com o propósito de dar o golpe de morte ao adversário, não por ser intenção sua enganar quem quer que fosse, mas apenas por estar persuadido de que o inimigo podia considerar-se vencido, persuasão, aliás, partilhada por todos os actores do drama.
Mas naquela mesma noite e no dia seguinte receberam-se notícias de perdas incríveis: podia considerar-se perdida quase metade do exército, e uma nova batalha era, praticamente, impossível. Impossível pensar noutra batalha enquanto se não reunissem todas as informações necessárias e os feridos não estivessem recolhidos, as munições renovadas, contados os mortos, os novos comandantes nomeados para substituir os desaparecidos e os homens fortalecidos e devidamente refeitos. E, no entanto, imediatamente após a batalha, na manhã seguinte, o exército francês, accionado por uma força propulsora na razão inversa do quadrado da distancia, põe-se por si mesmo em marcha contra o exército russo.
Kutuzov teria querido atacar logo na manhã seguinte e esse era o desejo unânime das suas tropas. Mas para tal se conseguir o desejar não bastava, era preciso o poder também, e essa possibilidade não existia.
Era impossível não retroceder uma etapa, depois outra e outra ainda, e, por fim, no dia 1º de Setembro, quando as tropas chegaram a Moscovo - e apesar do animo que se apoderara dos soldados -, o estado das coisas exigiu que retirassem ainda mais. E o exército recuou mais uma etapa, a, última, e a capital rendeu-se ao inimigo.
Aqueles que estão persuadidos de que os chefes militares traçam os seus planos de guerra e a disposição das batalhas, como qualquer de nós, sentado diante de um mapa, pode decidir das medidas a tomar nesta ou naquela circunstância, esses não deixarão de perguntar porque não procedeu Kutuzov, na sua retirada, desta ou daquela maneira, porque não ocupou posições antes de Fili, porque não recuou de uma vez só pela estrada de Kaluga, ao deixar Moscovo, etc. Esquecem ou ignoram as circunstâncias inevitáveis nas quais qualquer chefe militar tem de agir.
O comandante de um exército é obrigado a proceder em condições absolutamente diferentes daquelas que concebemos no silêncio de um gabinete ao elaborarmos, com o mapa diante de nós, os planos de uma campanha, dispondo aqui e ali de forças determinadas e dando início às nossas operações num momento definido. O general-chefe nunca pode estar no «princípio» de um acontecimento, como acontece connosco, teóricos que somos. Vê-se sempre colocado no meio de uma série móvel de circunstâncias, de tal modo que nunca, em momento algum, é capaz de encarar exactamente o valor dos acontecimentos. O facto realizado toma, insensivelmente, pouco a pouco, o relevo que corresponde à importância que tem, e durante o tempo necessário para assim se desenvolver e colocar-se em evidência encontra-se o chefe mergulhado num jogo complicado de intrigas, de preocupações, de conflitos de poder, de projectos, de conselhos, de ameaças, de fraudes, tendo de responder, a todo o momento, a uma infinita quantidade de perguntas, sempre contraditórias.
Os entendidos em assuntos militares dizem-nos, muito a sério, que Kutuzov teria podido evacuar as suas tropas pela estrada de Kaluga muito antes de Fili e que até mesmo alguém lhe propôs esta solução. Efectivamente, sobretudo nos momentos críticos, o general-chefe tem sempre à sua disposição, em vez de um, dúzias de projectos, E cada um desses projectos, conquanto baseados na estratégia e na técnica, está em contradição com os outros. Dir-se-ia que lhe bastava escolher um deles. Mas até isso lhe é impossível. Tanto os acontecimentos como o tempo não esperam. Propuseram-lhe, suponhamos, no dia 28, seguir pela estrada real de Kaluga, mas eis que ao mesmo tempo chega um ajudante-de-campo de Miloradovitch, que vem perguntarlhe se se devem atacar imediatamente os Franceses ou se é melhor recuarem, É preciso logo, naquele mesmo instante, transmitir ordens. Ordenar a retirada será condenar-se a um desvio para atingir a estrada de Kaluga. Depois do ajudante-de-campo chega o intendente, que pede instruções sobre o local para onde deve encaminhar os abastecimentos, enquanto o comandante das ambulâncias pergunta para onde deve dirigir os feridos. Entretanto chega um correio de Petersburgo com uma carta do imperador, em que se diz não admitir que se possa abandonar Moscovo. Em seguida, um dos rivais de Kutuzov, que move contra ele uma intriga - há sempre pessoas para tal e muitas vezes mais do que uma -, propõe um novo projecto, diametralmente oposto ao da retirada pela estrada de Kaluga. Aliás, o general-chefe tem necessidade de dormir para reparar as suas forças, mas eis que um digno general se lhe vem queixar de ter sido preterido na atribuição das condecorações, que uns civis lhe vêm implorar protecção, que um oficial enviado para examinar o terreno chega com informações absolutamente opostas às do oficial que o precedera. Um espião, um prisioneiro, bem como o general que fez o reconhecimento, descrevem de maneira completamente diferente posição do exército inimigo. As pessoas que fingem não compreender ou que esquecem as condições em que deve trabalhar o general-chefe desenham-nos um quadro, por exemplo, da posição das tropas em Fili e supõem então que Kutuzov teria podido no dia 1º de Setembro resolver livremente o problema do abandono ou da defesa de Moscovo, quando com o exército a cinco verstas da capital semelhante questão não era de formular. E quando foi essa questão resolvida? Em Drissa, em Smolensk e mais claramente do que nunca no dia 24, em Chevardino, e em 26 , em Borodino, e depois, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, na retirada de Borodino para Fili.
(…) A verdade, porém, é que era preciso tomar uma decisão: era mister pôr ponto final às conversas daquela gente, que principiavam a adquirir um tom demasiado livre.
Kutuzov chamou os generais mais antigos. - Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode contar – disse, levantando-se para se dirigir a Fili.
(…)com o peito constelado de medalhas.
(…) Foi por motivos de ordem puramente militar que eu (Kutzov) convoquei estes senhores. Ei-los: «A salvação da Rússia está no exército. Qual será mais vantajoso, arriscarmo-nos a perdê-lo, e com ele Moscovo, aceitando a batalha, ou entregar Moscovo sem combate?» Eis o ponto sobre que eu quero conhecer a vossa opinião.
(…)A discussão recomeçou, entrecortada de frequentes interrupções: sentia-se que, já não havia matéria para mais dissertações.
Durante uma destas interrupções, Kutuzov soltou um grande suspiro: parecia querer falar. Todos voltaram para ele os olhos.
- Bem, meus senhores, já vi que eu é que tenho de pagar os vidros partidos! - disse ele. E, erguendo-se com dificuldade, aproximou-se da mesa. - Meus senhores, ouvi o que cada um pensa. Alguns dos senhores não são, com certeza, da minha opinião. Mas eu - acrescentou, depois de uma ligeira pausa - mercê dos poderes que me foram conferidos pelo imperador e pela Pátria, ordeno a retirada.
Pouco depois os generais separavam-se, com essa circunspecção solene e calada com que se costumam separar as pessoas que assistiram a um funeral.
(…) Depois de se despedir dos generais, Kutuzov deixou-se ficar, por muito tempo, sentado, com os cotovelos em cima da mesa, pensando sempre na mesma tremenda pergunta: «Quando é que se decidiu então que Moscovo seria abandonada? Quando ficou isso resolvido e quem era o responsável?»
- Ah! Não era isto que eu esperava! - disse para o ajudante-de-campo, Schneider, que viera vê-lo já noite adiante. - Não esperava isto! Nunca julguei que se desse uma coisa destas!
- É melhor ir descansar, Excelência - disse-lhe Schneider
- Pois bem, já que assim querem, obrigá-los-ei a comer carne de cavalo, como aos Turcos - exclamou, de súbito, sem responder ao ajudante-de-campo, deixando cair o grosso punho em cima da mesa- Sim, também a hão-de comer, ou então...
Entretanto, e num caso ainda mais grave que o da retirada do exército sem combate, o do abandono e incêndio de Moscovo, Rostoptchine, que aparece como o agente executor desse acontecimento, agia de forma muito diversa de Kutuzov.
Este grave acontecimento - o abandono e o incêndio de Moscovo - era tão inevitável como a retirada das tropas para além de Moscovo depois da batalha de Borodino.
Nenhum russo houve, não por dedução lógica, mas em virtude desse sentimento que lhe enchia o coração, como já acontecera com os seus antepassados, que não previsse o que ia suceder.
Depois da tomada de Smolensk, em todas as cidades e povoações russas, sem ser precisa a intervenção do conde Rostoptchine nem das suas proclamações, aconteceu precisamente o mesmo que em Moscovo. O povo esperou calmamente o inimigo, sem se revoltar, sem se agitar, sem atentar contra a vida de ninguém: esperou tranquilamente a sua hora, certo de que, nas circunstâncias mais trágicas, saberia achar a decisão que convinha. A medida que o inimigo se aproximava, as classes mais abastadas retiravam-se, abandonando os seus haveres; as mais pobres ficaram e incendiaram e destruíram o que restava.
Todos os russos sentiam que tinha de ser assim e que assim seria sempre. Esta convicção, sobretudo o pressentimento de que Moscovo seria tomada, espalhara-se por toda a sociedade moscovita de 1812. Aqueles que, a partir de Julho e do começo de Agosto, largaram da cidade mostraram esperar isso mesmo. Os que abalaram levando consigo o que podiam e abandonando as suas casas e grande parte dos seus haveres agiram desse modo impelidos por um patriotismo latente que se não traduz nem em frases nem no assassínio dos filhos em nome da salvação da Pátria ou quejandos actos antinaturais, mas se exprime sem alarde, simplesmente, de maneira natural, e que por isso mesmo dá sempre os melhores resultados.
«É uma vergonha fugir do perigo, só os cobardes procedem assim», diziam-lhes. Rostoptchine, nas suas proclamações, dava-lhes a entender que esse procedimento era uma desonra. Apesar de mortificados por se verem tratados como poltrões e lhes custar partirem, mesmo assim abalavam, pois sabiam que tinha de ser.
E porque se iam embora? Não, com certeza, por se sentirem alarmados pelo que dissera Rostoptchine sobre as atrocidades que Napoleão praticava nos países conquistados. Abalavam, e os ricos, as pessoas cultas, eis quem partia primeiro, eles, que sabiam perfeitamente que Viena e Berlim estavam intactas e que durante a ocupação os habitantes passavam o seu tempo muito divertidos na companhia desses franceses, gente sedutora, de quem os Russos tanto gostavam, especialmente as mulheres.
Partiam porque, para os Russos, não se punha a pergunta de se seria bom ou mau viver sob a administração francesa, Não era possível ali ficar: para eles, seria o pior que lhes podia acontecer. Partiam mesmo antes de Borodino e ainda mais depressa depois desta batalha, sem quererem saber das proclamações relativas à defesa da cidade, apesar de o governador de Moscovo ter anunciado a «saída» da Virgem Iverskaia e a sua intenção de se alistar, e dos balões que deviam matar todos os franceses, e, de todos os despautérios que Rostoptchine proclamava nos seus editais. Sabiam muitíssimo bem que era o exército que devia bater-se e que se este se mostrava incapaz não era com as filhas dos criados que eles podiam enfrentar Napoleão em Tri Gori, e que o que havia a fazer era partir, por mais que lhes custasse abandonar os seus haveres. E lá iam, sem se deterem a pensar na majestade daquela enorme e rica capital abandonada pelos seus habitantes e destinada, sem dúvida, a ser pasto das chamas, pois não destruir ou reduzir a cinza casas vazias eis coisa extraordinária para a gente russa. Iam por iniciativa individual e, apesar disso, graças ao facto de partirem, cumpria-se esse acto magnífico que ficará para todo o sempre com a maior gloria do povo russo. Até aquela senhora que já no mês de Junho, seguida dos seus negros e dos seus bobos, abandonava Moscovo, para se refugiar nas suas propriedades de Saratov, sentia confusamente que nunca poderia ser criada de Bonaparte. E apesar do receio de ser presa às ordens de Rostoptchine, realizava simples e naturalmente a grande obra que salvaria a Rússia. E o conde Rostoptchine, que tão depressa envergonhava os que fugiam como ordenava que se fechassem as repartições públicas; que umas vezes distribuía entre o povo embriagado armas que para nada serviam, organizando procissões pelas ruas, outras proibia o metropolita Augustin de o fazer: que requisitava agora todos os carros particulares existentes na cidade e logo utilizava cento e trinta e seis carroças para transportar o famigerado balão de Leppich; que tanto declarava ir deitar fogo a Moscovo como que incendiara a sua própria casa enquanto numa proclamação aos Franceses os censurava solenemente por haverem saqueado o asilo de crianças por ele fundado; que ora, se vangloriava do incêndio de Moscovo ora o reprovava; que ora dava instruções ao povo para deitar a mão aos espiões e trazer-lhos ora o condenava por o ter feito: que ora expulsava de Moscovo todos os franceses ora deixava em paz Madame Aubert-Chalmé, sob cujo tecto se reunia toda a colónia daquele país, quando, sem qualquer motivo especial, mandava prender e deportar o velho e venerando director dos correios, Kliutcharev; que ora mandava convocar o povo para se reunir em Tri Gori e marchar contra os Franceses ora, para se ver livre da multidão, lhe entregava um homem para que ela o liquidasse enquanto ele próprio fugia pela porta das traseiras; que ora dizia que não sobreviveria às desgraças de Moscovo ora escrevia num álbum, em francês, uma quadra sobre o papel que então estava a desempenhar (1), esse homem nada percebia dos acontecimentos que estavam a dar-se, apenas queria fazer fosse o que fosse, pôr-se em evidência, realizar um feito patriótico, brincando como uma criança enquanto se cumpria esse acto formidável e fatal que foi a, evacuação e o incêndio de Moscovo.
Com os seus bracinhos de criança, ora tratava de espicaçar ora de deter essa imensa torrente popular que tudo arrastava no seu curso. (1) Je suis ne Tartare Je voutus étre Romain. Les Français m’appelèient barbare, Les Russes. Georges Dardin,
(Nasci tártaro
Quis ser romano.
Os Franceses chamaram-me bárbaro
Os Russos, Georges Dandin.)
A guerra, é a sujeição mais penosa que pode conceber-se da liberdade humana às leis de Deus.
O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo. Se a dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites, não se conheceria a si mesmo. Nada mais difícil.
Assim como o condenado a morte que é conduzido ao local do suplício, mesmo sabendo que vai morrer, olha à sua volta e compõe o boné, Moscovo, conquanto soubesse que a hora da sua perdição era chegada e que as condições de vida a que até então se submetera iam sofrer uma transformação, continuava, maquinalmente a sua vida de todos os dias.
Chegou a derradeira hora de Moscovo. Estava um dia de Outono claro e alegre. E, sendo domingo, como em todos os domingos, os sinos repicavam para a missa em todas as igrejas. Dirse- ia que ninguém compreendia ainda o destino que aguardava a capital.
Só dois barómetros acusavam a situação da cidade: a atitude da populaça, isto é, do grosso da arraia-miúda, e a alta dos preços. Os operários das fábricas, os criados e os camponeses, em magotes, à mistura com funcionários, seminaristas e fidalgos, tinham ido de madrugada para Tri Gori. Chegada que foi aí, toda aquela gente ficou à espera de Rostoptchine; mas, depois de muito esperar e convencida de que Moscovo seria entregue ao inimigo, acabou por regressar à cidade, dispersando-se por ruas e tabernas. Os preços das coisas também diziam muito, As armas, o ouro, os carros, os cavalos, aumentavam constantemente de preço enquanto baixava continuamente o valor do Papel-moeda e dos objectos de luxo, e de tal maneira que por volta do meia-dia os panos, por exemplo, valiam menos de metade do seu preço habitual. Em compensação, um cavalo de aldeão chegava a pagar-se por quinhentos rublos. E os móveis, os espelhos, os bronzes, cediam-se por qualquer preço.
A Rússia não está em Moscovo, está no coração dos seus filhos!
Ante a arquitectura extraordinária de Moscovo, Napoleão sentiu essa curiosidade inquieta e cobiçosa que costuma despertar o contacto com uma existência de que nada sabemos e que nos é completamente estranha.
Via-se bem que aquela cidade tinha vida própria e intensa. Graças a esses sinais indefiníveis que nos permitem distinguir a distância um ser vivo de um cadáver, Napoleão, do alto do monte Poklonaia, apercebia o palpitar da vida daquela capital como se sentisse a respiração desse grande e magnífico corpo.
Ao contemplar Moscovo, todos os russos sentem que ela é como que uma mãe para eles. O estrangeiro, embora desprovido deste sentimento filial, não pode deixar de se sentir impressionado pelo carácter feminino da cidade. Eis a impressão que Napoleão sentia também. - Esta cidade asiática das mil igrejas, Moscovo, a Santa. Aqui está ela, finalmente, a famosa cidade. Já era tempo! - exclamou ele, e, apeando-se do cavalo, mandou abrir diante de si a planta da cidade e chamou o intérprete, Lelorgne d’Ideville.
«Uma cidade ocupada pelo inimigo faz lembrar uma virgem que perdeu a virgindade», pensava, repetindo para si próprio o que dissera em Smolensk a Tutchkov. E animado por estes sentimentos contemplava, estendida a seus pés, a beleza oriental que via pela primeira vez. Ele próprio achava extraordinário que, se realizasse enfim aquele sonho que havia tanto acarinhava e que se lhe afigurara irrealizável.
Aquela clara luz matinal, ora fixava os olhos na cidade ora no mapa que tinha diante, confirmando pormenores, e a certeza daquela posse ao mesmo tempo que o perturbava causava-lhe medo, «Teria porventura podido ser de outra maneira?», interrogava-se a si próprio. «Ei-la aqui, a grande capital, ei-la a meus pés, aguardando o destino. Onde estará agora Alexandre? E que pensará ele? Cidade estranha, soberba, magnífica! Que momento raro e solene! Sob que aspecto me verão eles?», prosseguia pensando nos seus soldados. «Aqui a têm, a recompensa que dou a esses homens de pouca fé.» E percorria com os olhos a comitiva e as tropas que marchavam em perfeita ordem!
«Basta uma palavra minha, um só gesto da minha mão, e esta antiga capital dos czares converter-se-á num monte de ruínas. Mas a minha clemência está sempre pronta a descer até aos vencidos. Devo ser magnânimo e verdadeiramente grande... Não! Será possível que eu esteja em Moscovo?», interrogava-se, de súbito. «Mas a verdade é que ela aqui está, deitada a meus pés, com as suas cúpulas douradas e as suas cruzes cintilando à luz do Sol. Saberei poupá-la. Na fachada destes antigos monumentos, símbolo da barbaria e do despotismo, mandarei escrever grandiosas palavras inspiradoras de justiça e misericórdia - Tenho a certeza de que Alexandre o há-de apreciar acima de todas as coisas...» Afigurava-se-lhe que tudo aquilo era resultado da rivalidade pessoal entre ele e Alexandre. «Do alto do Kremlin - sim, aquilo é o Kremlin- ditar-lhes-ei leis justas, mostrar-lhes-ei a verdadeira civilização; as futuras gerações dos boiardos hão-de pronunciar amorosamente o nome do seu conquistador. Direi à delegação que me enviarem que não quis e não quero a guerra, que a que me v forçado a fazer visava a política mentirosa da sua corte, que amo e respeito Alexandre e que estou pronto a aceitar em Moscovo uma paz digna de mim e dos meus povos.
Não quero aproveitar-me de uma guerra vergonhosa para humilhar o soberano a quem venero. ’Boiardos!’, dir-lhes-ei, ’não quero a guerra, quero a paz e o bem-estar de todos os meus súbditos.’ Aliás, tenho a certeza de que a presença dessa gente me há-de inspirar e que lhes hei-de falar como sempre falo, com clareza, com solenidade e com grandeza. Mas será possível que eu esteja em Moscovo? Estou, Moscovo, ei-la ali.»
- Tragam-me os boiardos! - exclamou, voltando-se para a comitiva.
Um general, seguido de um séquito brilhante, partiu imediatamente a galope em busca dos boiardos.
Duas horas decorreram. Napoleão almoçou e voltou para o mesmo local do monte Poklonaia a aguardar a delegação. O discurso que lhe dirigiria desenhava-se-lhe já claro na imaginação. Era um modelo de dignidade e grandeza de acordo com a concepção napoleónica. A magnanimidade desse discurso, que ele esperava agisse poderosamente sobre Moscovo, enchia-o de entusiasmo. Assentava já na data em que reconvocaria a reunião no palácio dos czares, reunião essa em que as altas personalidades russas deveriam encontrar-se com as da sua corte. E nomearia previamente um governador capaz de conquistar para ele, Bonaparte, a simpatia da população. Sabendo que Moscovo dispunha de grande número de instituições de caridade, estava decidido a cumulá-las de benesses. «Assim como, em África», pensava, «devemos envergar um albornoz para entrar numa mesquita, em Moscovo convém sermos generosos para com os czares.» E para definitivamente conquistar o coração dos Russos, como todo o bom francês, incapaz de conceber seja o que for de sentimental sem falar da minha querida, da minha terna, da minha pobre mãe, ei-lo que decide que na fachada de todas as instituições mandaria inscrever em grandes letras: - Estabelecimento dedicado à minha querida mãe. Ou, não, antes, simplesmente: Casa de minha mãe. «Mas estarei eu, realmente, em Moscovo?», repetia de si para consigo, mentalmente. «Sim, ei-la aqui diante de mim. Então porque leva a delegação tanto tempo a aparecer?»
Entretanto, nas últimas fileiras da sua comitiva, generais e marechais discutiam a meia voz. Os que haviam sido enviados pela delegação tinham voltado e informavam que a cidade estava deserta, todos os seus habitantes a tinham abandonado. A palidez e a consternação estamparam-se em todos os rostos. Não era propriamente a notícia que os atemorizava, embora fosse de vulto, mas a maneira de a comunicarem ao imperador sem colocar Sua Majestade numa situação ridícula, para os Franceses a mais grave de todas, fazendo-lhe saber que debalde aguardaria os boiardos e que em Moscovo apenas se viam bandos de bêbedos. Havia quem fosse de parecer que apesar de tudo devia arranjar-se uma delegação; outros, pelo contrário, sustentavam ser preciso, com todo o cuidado, e prudência, preparar o imperador e dizer-lhe a verdade.
- É preciso dizer-lho, seja como for... - diziam.
- Mas, meus senhores... A situação era tanto mais penosa quanto era certo o imperador, todo entregue aos seus sonhos de generosidade, andar de um lado para outro, pacientemente, diante do mapa da cidade, olhando de tempos a tempos para a estrada de Moscovo e sorrindo triunfante.
- Mas é impossível... - diziam os membros da comitiva, encolhendo os ombros, sem se decidirem a pronunciar a palavra terrível - «ridículo» - Que cada um tinha nos lábios. Entretanto o imperador, cansado de esperar, e sentindo, graças ao seu instinto de actor, que o instante sublime tardava de mais, perdendo, portanto, a sua grandeza, acenou com a mão. Um tiro de peça deu o sinal e as tropas que cercavam a cidade por todos os lados marcharam em direcção a Tverskaia, através da Calçada de Kaluga, e romperam pela barreira de Dorogomilov. Em passo cada vez mais acelerado, adiantando-se uns aos outros, soldados de infantaria e cavalaria avançavam, levantando grandes nuvens de poeira e atroando os ares com os seus gritos ensurdecedores.
Arrebatado pelo entusiasmo dos seus soldados, Napoleão chegou ao mesmo tempo do que eles à barreira de Dorogomilov. Uma vez aí, parou, apeando-se do cavalo, e por muito tempo aí ficou a passear junto da esplanada de Kamer-Koleskovo, sempre à espera da delegação.
Moscovo estava deserta, embora lá se encontrassem alguns habitantes, a quinta parte, pouco mais ou menos, da sua população habitual, nem por isso estava menos deserta. Na colmeia que falte a rainha, não há vida, embora a um olhar superficial continue tão animada como antes.
Sob os ardentes raios de sol do meio-dia, as abelhas dessa colmeia zumbem em torno dela como em torno das demais. Também aí se sente o cheiro a mel, e as abelhas entram e saem. Um pouco de atenção, porém, e compreender-se-á que nessa colmeia já não há vida. As abelhas não lhe zumbem em redor como em redor das colmeias vivas, e não têm nem o mesmo cheiro nem o mesmo zumbido. Quando se bate na parede de uma colmeia doente, em vez da resposta instantânea e unânime de dezenas de milhares de insectos que alçam, ameaçadores, o ferrão, agitando no ar as asas rápidas, apenas se ouvem zumbidos isolados em certos pontos da colmeia quase vazia.
À entrada já se não aspira, como antes, o perfume alcoolizado e forte do mel e do veneno dos seus habitantes; já não sai lá de dentro o calor de um lugar habitado. Ao perfume adocicado de outros tempos junta-se agora um cheiro a podridão e abandono. Já não há guardas prontas a dar sinal de alarme e a morrer em defesa da colmeia. Já se não ouve esse som regular e tranquilo, índice de um trabalho activo, que faz lembrar o cachão da água a ferver, mas zumbidos irregulares e dispersos, indício de desordem. Entram e saem da colmeia, tímidas e astuciosas, salteadoras negras, de corpo alongado e coberto de mel. Desprovidas de ferrão, fogem quando as perseguem. Antigamente as obreiras chegavam com o seu quinhão e partiam sem nada; agora, pelo contrário, cada uma leva a sua parte.
O apicultor abre a parte inferior da colmeia e examina o que se passa aí. Em vez das abelhas negras e gordas, entregues ao seu trabalho, pendendo em cacho até à parte inferior, fincadas umas nas outras pelas patas, e segregando cera num zumbido ininterrupto, abelhas sonolentas erram de um lado para o outro no fundo e nas paredes da colmeia. Em lugar de um pavimento bem fornido de cera vermelha e cuidadosamente varrido pelas asas dos habitantes, juncam o chão migalhas de cera, excrementos e abelhas semimortas, que agitam as patas molemente, ou estão mortas de todo.
O apicultor abre agora a parte superior da colmeia e examina o, que lá vai dentro. Em vez dos intervalos das prateleiras bem calafetados, para que os insectos estejam aconchegados, vê um trabalho artístico, complicado e hábil, mas já não no seu estado virgem de outrora. Tudo está sujo e deserto.
As abelhas salteadoras introduzem-se, rápidas e subtis, pelo meio das obreiras: estas, secas, encolhidas, murchas, como se fossem velhas, deslocam-se lentamente, sem impedir a pilhagem das salteadoras, sem nada quererem, sem gosto pela vida. Zângãos, larvas, borboletas, batem de encontro às paredes da colmeia. Aqui e ali, entre os tabuleiros com abelhas mortas e mel, ouve-se, de quando em quando, um zumbido irritado. Algures, duas abelhas, impelidas Pelo instinto e o antigo hábito, limpam o interior da colmeia e arrastam para o exterior, num esforço que excede o seu poder, cadáveres de abelhas mortas ou de zangãos, sem se darem conta do que estão a fazer. Noutro canto, duas velhas abelhas lutam Preguiçosamente ou lavam-se ou nutrem-se uma à outra, sem consciência de ser hostil ou amistosa a sua atitude. Noutro ponto ainda um grupo de abelhas, esmagando-se mutuamente, ataca uma vítima qualquer, e sufoca-a. E a vítima, impotente ou morta, cai lentamente, leve como uma pena, sobre o monte de cadáveres. O apicultor retira dois tabuleiros do meio para ver o ninho. No centro de milhares de abelhas que formam um círculo negro e apertado, costas com costas, ali colocadas para vigiar os altos mistérios da eclosão, vê agora apenas alguns centos de abelhas esqueléticas, tristíssimas, quase mortas e entorpecidas. Pela maior parte, estão efectivamente semimortas e ignoram, na sentinela que fazem àquele santuário, que já não existe o que elas tinham de guardar. Despedem um fedor a podridão e a morte. Apenas algumas remexem ainda, esvoaçam e preguiçosamente vêm pousar na mão do inimigo, já sem forças para perder a vida picando-o. As outras, mortas, caem no fundo, leves, como escamas de peixe. O apicultor fecha a colmeia, marca-a a giz e na altura precisa quebra-a para queimá-la.
Assim era Moscovo, enquanto Napoleão, inquieto, fatigado, carrancudo, andava de um lado para o outro na esplanada de Karner-Koleskovo, aguardando a chegada da delegação: cerimónia puramente convencional, mas que ele considerava indispensável.
Nos diversos bairros de Moscovo apenas restavam algumas pessoas movendo-se sem saberem o que faziam, por simples hábito. Acabaram, com as precauções devidas, por comunicar a Napoleão que Moscovo estava vazia. O imperador fitou, colérico, aquele que lhe deu a notícia e continuou a andar de cá para lá em silêncio.
- A minha carruagem! - ordenou por fim.
E subindo para o carro, na companhia do ajudante-de-campo de serviço, dirigiu-se para os arrabaldes da cidade. «Moscovo deserta! Que acontecimento inverosímil!»,dizia de si para consigo. Não chegou a entrar na cidade e deteve-se numa estalagem dos arrabaldes, em Dorogomilov.
O golpe de teatro falhara.
Quando nos cortam a cabeça, não vale a pena chorar a perda dos cabelos. Pois que levem o que quiserem…
Contra a vontade de Deus nada pode o braço do homem.
No dia 1º de Setembro, pela noite, depois da sua entrevista com Kutuzov, o conde Rostoptchine regressou a Moscovo magoado e triste; não o tinham ouvido na reunião do conselho de guerra.
Kutuzov não prestara a mais pequena atenção à sua proposta no sentido de se defender a capital. Surpreendera-o muito a nova teoria adoptada pelo estado-maior segundo a qual o sossego da cidade e os sentimentos patrióticos dos seus habitantes eram não só coisas secundárias, mas desprezíveis e sem qualquer alcance.
Depois da ceia estendeu-se, vestido como estava, em cima de um canapé. À uma hora da madrugada foi acordado por um correio que lhe trazia uma carta de Kutuzov. Pedia-lhe este, visto as tropas baterem em retirada pela estrada de Riazan, para além de Moscovo, que enviasse polícias proteger a sua passagem através da cidade.
Não era novidade para Rostoptchine. Pressentira aquilo mesmo muito antes da sua entrevista da véspera com o general-chefe, no monte Polclonaia, no dia seguinte ao da batalha de Borodino, visto ter ouvido os generais chegados a Moscovo declararem unanimemente ser impossível travar uma batalha, e todos os dias, com o seu consentimento, saírem de Moscovo, com destino a lugar seguro, os bens da coroa e metade dos habitantes da capital já terem abalado. Mesmo assim, aquela ordem de Kutuzov, expedida como uma simples nota e recebida durante a noite, quando ele dormia o seu primeiro sono, surpreendeu-o e irritou-o extraordinariamente.
Mais tarde, quando quis explicar o que fizera naquele momento, repetiu, várias vezes, nas suas Memórias, que tivera então como objectivo principal «manter a tranquilidade em Moscovo e evacuar os habitantes!» Se fizermos fé nas suas palavras, tudo quanto fez foi irrepreensível. Porque não tinham levado, então, da cidade os tesouros moscovitas, as armas, os cartuchos, a pólvora, as reservas de trigo? Porque foram enganados milhares de habitantes com a afirmação de que a cidade não capitularia, o que fez que ficassem arruinados? Para que a tranquilidade fosse mantida, explica Restoptchine. Mas porque se evacuaram, então, montes e montes de papéis inúteis das repartições? Porquê o balão de Leppich e tantas outras coisas? Para que a cidade ficasse vazia, replica ele ainda. Basta a tranquilidade pública estar ameaçada para tudo se justificar. Também as chacinas do Terror só tiveram em vista a tranquilidade pública.
Em que se baseava então o conde Rostoptchine para temer que a tranquilidade pública, em 1812, viesse a ser perturbada em Moscovo?
Nem em Moscovo nem em qualquer outra parte da Rússia, aquando da chegada do inimigo, se passou fosse o que fosse parecido com uma rebelião.
A 1 e 2 de Setembro ainda havia na capital mais de dez mil pessoas e além do ajuntamento no pátio da residência do governador, por ele próprio provocado, nenhum outro incidente ocorreu.
Evidentemente que ainda se teria receado menos qualquer efervescência popular se depois de Borodino, quando o abandono de Moscovo se tornou coisa certa ou pelo menos verosímil, em vez de se haver exaltado o povo com a distribuição de armas ou a afixação de proclamações, Rostoptchine houvesse tomado as medidas necessárias para retirar as coisas preciosas, a pólvora, as munições e o dinheiro, e houvesse declarado francamente ao povo que a cidade ia ser abandonada.
Rostoptchine, homem impulsivo e sanguíneo, como vivera sempre nas altas esferas administrativas, apesar de todo o seu patriotismo, não fazia a mínima ideia de como era o povo que julgava governar. Depois da entrada dos Franceses em Smolensk, imaginara desempenhar o papel de guia do sentimento nacional no «coração da Rússia». Julgava ele, como todo o bom administrador, ser obrigação sua não só presidir à vida material dos habitantes de Moscovo, mas também guiar-lhes a disposição moral através de proclamações e de editais redigidos nesse estilo corriqueiro de que a massa popular, no seu próprio meio, não faz o mais pequeno caso, e que deixa de compreender sempre que o ouve na boca de personagens das classes elevadas. Este lindo papel de guia da moral popular agradava-lhe tanto, tão bem se lhe adaptara, que a necessidade de abandonar Moscovo sem realizar qualquer acto heróico o havia apanhado desprevenido.
De súbito notou que o terreno que pisava lhe resvalava debaixo dos pés. E decididamente não soube que fazer. Embora o pressentisse, recusou-se sinceramente até ao último minuto a acreditar no abandono da capital e nada fez na previsão de semelhante eventualidade.
Se os habitantes se retiraram, foi contra a sua vontade. Se mandara transferir as repartições públicas, é que tinham sido os funcionários a pedir-lho, e só com relutância dera autorização para tal. Por si nunca pensara noutra coisa senão em desempenhar o papel que a si próprio atribuíra.
Como é frequente nas pessoas de imaginação viva, de há muito sabia que Moscovo seria abandonada, mas só a razão lho dizia; no fundo do coração não acreditava. A imaginação não o acompanhava nesse novo domínio dos factos.
Todos os seus esforços, realmente eficazes e enérgicos - e não se cura aqui de saber até que ponto foi útil e qual a influência que exerceu no povo -, apenas serviram para excitar nos habitantes sentimentos que ele próprio experimentava: o ódio patriótico contra os Franceses e a confiança em si mesmo. Mas quando os acontecimentos ganharam proporções históricas, quando se tornou insuficiente exprimir apenas por palavras o ódio contra o inimigo, quando não foi possível proclamá-lo mesmo no campo de batalha, quando a autoconfiança se tornou inoperante para salvar Moscovo, quando toda a população, como um só homem, abandonando o que era seu, correu em torrentes para fora da cidade, mostrando, com este acto negativo, o prestígio do sentimento nacional, o papel que Rostoptchine escolhera perdeu subitamente todo o sentido. Viu-se, de chofre, fraco e ridículo, sem terra firme debaixo dos pés.
Ao receber a nota fria e autoritária de Kutuzov sentiu-se tanto mais irritado quanto era certo reconhecer-se culpado. O que lhe fora confiado, os bens do tesouro, que ele devia ter retirado, ficava em Moscovo. E agora era impossível levar dali fosse o que fosse.
«Quem tem a culpa disto?», dizia ele de si para consigo. «Eu não, com certeza. Tinha tudo preparado, mantive Moscovo, e não é pouco. E aqui está onde eles nos levaram! Miseráveis! Traidores!»
Não lhe teria sido fácil determinar que eram esses traidores, esses miseráveis, mas sentia-se impelido, por necessidade, a odiar esses traidores que o haviam colocado na situação falsa ridícula em que se encontrava.
Durante toda a noite emitiu ordens que junto dele vinham receber de todos os pontos de Moscovo. Os da sua roda nunca o tinham visto tão taciturno e furioso. «Excelência, vieram receber ordens da parte do director do Património... da parte do Consistório, do Senado, da Universidade, do asilo das crianças abandonadas. O ecónomo mandou saber... Pede... Que ordens se devem transmitir à corporação dos bombeiros? Estão aí da parte do director da cadeia... Da parte do director do manicómio...» Não lhe largaram a porta durante toda a santa noite. A todos dava respostas rápidas e graves, dizendo que as suas ordens doravante eram inúteis, que a obra que preparara com todo o cuidado fora malograda por terceiros, responsáveis dos acontecimentos que sobreviessem. - Diz a esse imbecil - respondeu ao pedido da Repartição do Património - que fique de sentinela aos seus documentos.
E, tu, que tolice me estás tu a pedir a propósito dos bombeiros? Se têm cavalos, vão para Vladimir. Não os vão deixar aos Franceses.
- Excelência, está ali o director do manicómio. Que devo dizer-lhe?
- Que deves dizer-lhe? Que se vão todos, nada mais simples... E, quanto aos doidos, que os solte na cidade. Já que quem comanda o exército é doido, ficarão no seu devido lugar.
Quando lhe perguntaram qual o destino a dar aos presos da cadeia, gritou, furioso, para o director:
- Que quer que eu faça? Que lhe dê dois batalhões, que não temos, para os escoltar? Solte-os, é bem de ver!
- Excelência, há presos políticos: Miechkov, Verechtchaguine.
- Verechtchaguine! Ainda o não enforcaram?! - exclamou. - Tragam-no.
Em tempo de paz, todo o governante julga sempre que dele depende toda a população confiada ao seu cuidado e, supondo-se indispensável, vê nisso a principal recompensa dos seus trabalhos e dos seus esforços. Enquanto o mar da história está sereno, é lógico que o governante-piloto que na sua ligeira embarcação manobra o leme do navio de grande calado que é o Estado julgue ser ele quem o faz mover. Mas assim que se levanta uma tempestade, logo que o mar se encapela e o navio é levado pela corrente, então a ilusão acaba. O navio prossegue na sua rota, independente e majestoso, e o leme do piloto já para nada serve. Esse homem, momentos antes todo-poderoso, centro de todas as energias, não passa então de um ser fraco, inútil e nulo.
(…)Como costuma suceder muitas vezes com os homens impulsivos, o conde não podia dominar a cólera que o tomava, embora procurasse ainda sobre quem lança-la. «Lá está ela, a populaça, a ralé, a plebe, que eles sublevaram pela sua estupidez. Precisam de uma vítima», pensava ele, olhando para o operário que fazia, grandes gestos. E ao mesmo tempo ocorreu-lhe que também ele precisava de uma vítima, fosse quem fosse, sobre quem descarregar aquela ira.(…)
Oh! Meu Deus! Que animal feroz é o povo! (…) A populaça é terrível, é repulsiva. São como os lobos, que só com carne se saciam.
Embalado suavemente pelas molas da carruagem e não ouvindo já os gritos medonhos da multidão, sentia uma grande tranquilidade física, e como sempre acontece, ao mesmo tempo que sossegava fisicamente, o espírito ia-lhe proporcionando argumentos conducentes à tranquilidade da alma.(…) Os argumentos nada tinham de novo. Desde que o mundo é mundo e os homens se matam uns aos outros, que ninguém cometeu qualquer crime para com o semelhante sem tratar de apaziguar a consciência apelando para aquilo a que se chama o bem público, aquilo que se supõe o bem dos outros.
Embora esfarrapadas, esfomeadas, extenuadas e reduzidas a metade dos seus efectivos, as tropas francesas nem por isso deixaram de entrar em Moscovo devidamente ordenadas. Era um exército esgotado e destroçado, mas ainda combativo e de temer. No entanto apenas se conservou exército até ao momento em que os soldados se dispersaram pelas casas da cidade. Desde que eles se viram instalados em todas essas casas ricas e desertas, o exército desapareceu para sempre, transformando-se num amálgama nem de civis nem de militares, num bando de bandidos. Quando, cinco semanas mais tarde, deixaram Moscovo, as tropas regulares tinham desaparecido por completo. Eram apenas um bando de salteadores levando consigo um nunca acabar de coisas que entendia indispensáveis e preciosas. Não pensavam mais na guerra, só cuidavam em conservar o produto das pilhagens. Tal como o macaco que tendo metido a mão na estreita boca de uma jarra para apanhar um punhado de nozes não a quer abrir para não deixar o que apanhou, e assim se perde, os Franceses, ao abandonarem Moscovo, tinham fatalmente de se perder, pois levavam consigo o produto dos seus roubos, não podendo, como o macaco, abandonar a presa. Dez minutos depois da ocupação por um regimento francês de qualquer bairro da cidade já não era possível distinguir os oficiais dos soldados. Através das janelas viam-se homens de capote e polainas, rindo e girando pelos quartos; nas caves e nos sótãos abasteciam-se de provisões; nos pátios abriam as portas dos armazéns e das cavalariças: nas cozinhas acendiam as lareiras e faziam o rancho, de mangas arregaçadas, assustando e fazendo rir mulheres e crianças. Eram muitos os homens nas lojas e nas casas: exército, porém, era coisa que já não existia.
Naquele mesmo dia circularam ordens sobre ordens, emanadas dos comandantes, para que os soldados fossem impedidos de circular na cidade, para que fossem proibidos os saques e as violênci4s, e determinando que houvesse à noite chamada geral. No entanto, apesar das medidas tomadas, os homens que ainda na véspera formavam o exército espalhavam-se por toda a cidade confortável e vazia, onde abundavam as provisões. Como um rebanho faminto que avança, comprimido, ao longo de um campo de escassa pastagem espalhando-se logo que chega a uma farta pradaria, assim se dispersava o exército francês através daquela opulenta cidade.
Como dos habitantes poucos estavam, os soldados, à semelhança da água num areal, infiltravam-se por toda a parte e irradiavam por todos os lados a partir do Kremlin, o primeiro lugar onde haviam penetrado. Soldados de cavalaria que penetrassem numa casa abandonada com tudo que era preciso e até cavalariças com lugar de sobra para as montadas, nem por isso deixavam de se mudar para a casa vizinha que se lhes afigurasse preferível. Muitos ocupavam várias casas, riscando-as a giz, batendo-se com homens de outros destacamentos para lhes disputarem a propriedade. Antes mesmo de se instalarem em qualquer lado, havia soldados que percorriam as ruas, e ao verificarem que tudo estava abandonado introduziam-se onde pudessem pilhar objectos de valor. Os chefes encarregados de prender os que se dedicavam à pilhagem acabavam por se entregar à prática dos mesmos actos.
No Mercado Karetnii ainda havia estabelecimentos cheios de carruagens de, todo o género: os generais juntavam-se para escolherem aí seges e carros para seu uso. Os habitantes que haviam ficado na cidade convidavam os oficiais superiores a instalar-se em suas casas na esperança de assim impedirem que elas fossem saqueadas. Tantas eram as riquezas que dir-se-ia não terem fim. Por toda a parte, em torno dos locais ocupados pelos Franceses, havia outros, ainda não ocupados, em que eles julgavam vir a encontrar mais riquezas. E Moscovo ia-os absorvendo pouco a pouco. Assim como quando se deita água numa terra seca desaparecem a terra seca e a água, assim aquele exército esfomeado, uma vez naquela cidade opulenta, mas deserta, foi desaparecendo ao mesmo tempo que a própria cidade: resultado, muita lama, incêndios e saques por toda a parte.
Os Franceses atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de Rostoptchine, os Russos, ao fanatismo dos Franceses.
Moscovo ardeu por se encontrar nas mesmas condições de qualquer cidade de madeira, independentemente das suas cento e trinta más bombas de incêndio. Moscovo tinha de arder, porque os seus habitantes a haviam deixado; o que era tão inevitável como arder o monte de aparas em que vão caindo fagulhas dia após dia. Uma cidade de madeira onde, mesmo com a presença dos habitantes e da polícia, quase todos os dias se registam incêndios, não pode deixar de arder se os proprietários das casas estão ausentes e se por toda a parte há soldados de cachimbo aceso e fogueiras em que preparam o rancho duas vezes por dia, em plena Praça do Senado, atiçando o lume com as cadeiras dos palácios circunvizinhos.
Em tempo de paz, basta que as tropas se alojem numa aldeia para que os incêndios aumentem imediatamente. Como não hão-de aumentar as probabilidades de fogo numa cidade abandonada, construída de madeira, em que acampou um exército estrangeiro? Nem o patriotismo feroz de Rostoptchine nem o fanatismo dos Franceses tiveram que ver com o incêndio de Moscovo.
A cidade ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, dos acampamentos e da negligência dos soldados inimigos, instalados nas casas, mas não seus proprietários.
Se realmente houve incendiários, o que parece duvidoso, pois não se percebe qual o motivo de uma coisa dessas, além de que seria expor-se quem o fizesse a um perigo que a todos ameaçava, não vale a pena atribuir-se-lhes essa responsabilidade porque sem a sua intervenção o resultado teria sido praticamente o mesmo.
Por muito que agrade aos Franceses acusar Rostoptchine de ferocidade e aos Russos dizerem que Bonaparte era um malfeitor, ou colocarem nas mãos de seus compatriotas um archote heróico, é impossível admitir uma causa directa da catástrofe já que Moscovo tinha de arder, como arderia igualmente qualquer aldeia, qualquer fábrica, qualquer casa cujos proprietários se ausentassem e em que se consentisse que estranhos se instalassem para comer e dormir.
Moscovo foi incendiada pelos seus habitantes, é um facto, mas não pelos habitantes que lá ficaram, antes por culpa daqueles que partiram. Invadida pelo inimigo, Moscovo não ficou intacta como Berlim, Viena e outras capitais pela simples razão de que os seus habitantes não vieram oferecer pão e sal aos Franceses nem lhes depuseram nas mãos a chave da cidade, preferindo, pelo contrário, abandoná-la.
(…) apossara-se dele uma embriaguez estranha ao compreender, de súbito, que a riqueza, o poderio, a própria vida, tudo que o homem preserva e guarda cautelosamente, não tem o mais pequeno valor além da satisfação que dá àquele que dispõe da coragem de renunciar a isso mesmo. Era um sentimento semelhante àquele que leva o recruta a beber, beber, até se lhe esgotar o dinheiro e o bêbedo a quebrar vidros e espelhos sem razão, sabendo que os terá de pagar, um sentimento igual ao do homem que pratica acções que o senso comum qualifica de loucas, embora em verdade sejam a revelação de uma visão superior e quase sobre-humana das coisas da vida.
O homem de espírito são aplica a sua faculdade de pensar, de sentir, de se recordar, simultaneamente, a um número infinito de coisas, mas dispõe do poder e da força necessários, desde que se detém num objecto determinado, para concentrar nele toda a sua atenção. O homem de espírito não sabe interromper os seus pensamentos mais absorventes para saudar a pessoa que chega e voltar em seguida às suas reflexões.
«Sim, o amor», disse consigo mesmo, de novo, completamente lúcido. «Mas não esse amor que se sente por alguma, coisa e por alguém, mas o amor como eu o senti pela primeira vez quando, no limiar da morte, se me deparou o meu inimigo e o amei. Senti então essa espécie de amor por assim dizer a essência da nossa alma e que dispensa perfeitamente o objecto amado. E ainda agora mesmo continuo a sentir esse bem-aventurado amor. Amar o próximo, amar os nossos inimigos, amar tudo e todos é amar Deus em todas as Suas manifestações. Amar alguém querido é amor de homem; só a um inimigo nos é dado amar com o amor de Deus. E aí está porque senti felicidade tamanha ao compreender que amava aquele homem. Que teria sido feito dele? Estará vivo ainda?... Quando queremos com um amor de homem, é-nos fácil passar do amor ao ódio, mas o amor de Deus, esse, não pode trair. Nada, nem a própria morte, o pode destruir. É a essência da própria alma. Odiei muita gente na minha vida. Mas a ninguém amei e odiei tanto como a ela.»
(…)absorto no presente, o que o atormentava, como acontece a todos os obstinados que se propõem realizar qualquer coisa impossível, não eram as dificuldades que teria, mas o facto de a sua natureza íntima recalcitrar contra um acto daquela espécie: tinha medo de fraquejar no momento decisivo, perdendo, assim, toda a consideração por si próprio.
- Coronel Michaux, não se esqueça do que eu lhe digo aqui; talvez um dia o recordemos com satisfação... - E, falando assim, batia na arca do peito. - Napoleão ou eu. Não pode continuar a reinar ao mesmo tempo. Aprendi a conhecê-lo, não me voltará a enganar.
- Sire! - articulou o coronel. - Vossa Majestade assina neste momento a glória da nação e a salvação da Europa.
E o imperador, com um aceno de cabeça, despediu Michaux.
Todos os relatos daquela época, sem excepção, falam de sacrifícios, de amor à pátria, de desespero e de heroísmo. Mas a realidade não era bem essa. Do passado apenas vemos as grandes linhas históricas, enquanto os interesses puramente humanos e pessoais nos passam despercebidos. No entanto, esses interesses puramente humanos e pessoais são muito mais importantes que os interesses colectivos. Os primeiros não deixam ver nem sentir os últimos. A maior parte dos homens daquela época não prestava a mais pequena atenção à marcha geral dos acontecimentos, inteiramente ocupada com os seus próprios interesses. E esses homens é que gozavam da fama de ser as criaturas mais indispensáveis desse tempo.
Aqueles que, pelo contrário, procuravam apreciar os acontecimentos de um ponto de vista elevado, tentando agir com devoção e heroísmo, esses eram tidos como inúteis na sociedade. As suas ideias divergiam em tudo das dos demais e tudo quanto levavam a cabo, na melhor das intenções, aos olhos da maior parte das pessoas não passava de inutilidades, como, por exemplo, os regimentos organizados por Pedro e Mamonov, que não faziam outra coisa senão saquear as aldeias e roubar as ligaduras preparadas pelas senhoras da sociedade, as quais nunca chegavam às ambulâncias. Até mesmo aqueles que, para exibirem os seus dotes de inteligência e as suas louváveis intenções, se davam a fazer comentários à situação eram acusados de duplicidade e de mentira ou de fazerem juízos temerários e malévolos sobre as pessoas que assim tornavam responsáveis de actos de que ninguém era culpado. Em história, ainda mais do que em qualquer outro assunto, devemos coibir-nos de provar dos frutos da, árvore de ciência. Só os actos inconscientes frutificam deveras e os homens que desempenham papel na história nunca percebem a importância do que fazem. Quando porventura acontece darem por isso, imediatamente os seus actos se tornam estéreis.
O significado dos acontecimentos que naquela altura se estavam a dar na Rússia era tanto mais inapreensível quanto era certo os homens deles participarem muito intimamente. Tanto em Petersburgo como nas províncias distantes de Moscovo, as senhoras e os cavalheiros elegantemente fardados de milicianos deploravam a sorte da Rússia e da sua capital, falando em sacrifícios e noutras coisas semelhantes, enquanto que no exército, ao proceder-se à evacuação de Moscovo, quase nunca se falava desse acontecimento: era coisa em que ninguém pensava. Diante das casas a arder ninguém falava em vingar-se dos Franceses. Só se, pensava no terço do soldo que cada um ia receber, na etapa próxima, em Matrechka, na vivandeira, e em coisas do mesmo género.
(…)Tudo era fácil e divertido para ele naquela sua primeira visita a Vororteje, e o que é facto é que tudo correu como geralmente acontece quando uma pessoa está na melhor disposição deste mundo.
A sua desenvoltura assombrou todo o mundo. Até ele próprio estava surpreendido com a maneira como dançava naquela noite. Nunca dançara assim em Moscovo e teria mesmo considerado pouco decente e ordinária a ligeireza dos seus modos, caso não se tivesse sentido obrigado, naquele meio pequeno, a causar o espanto daqueles provincianos, graças a atitudes e maneiras deveras extraordinárias até na capital, mas que fariam aquela gente pensar serem habituais e ainda desconhecidas na província.
Onde há justiça há injustiça.
Para mim, todos os filhos são iguais. Seja qual for o dedo que mordas, faz-te sempre doer.
O destino é que manda e nós passamos a vida a dar sentenças.
A nossa felicidade, meu amigo, é como a água nas redes do pescador. Se puxamos por elas, as redes incham, mas quando as tiramos de dentro da água já estão vazias.
Sentia que o mundo moral que se desmoronara na sua alma se ia reedificando, pouco a pouco, mais belo, e sobre alicerces novos e inalteráveis.
O amor é o inimigo da morte. O amor é a vida. Tudo, absolutamente tudo que me é dado compreender, graças ao amor eu o compreendo. Tudo que é, tudo que existe, pelo amor existe. O amor é Deus; morrer é regressar, eu, parcela desse amor, à fonte geral e eterna.
A razão humana não pode compreender a correlação das causas e dos acontecimentos, mas a necessidade de em tudo achar uma causa é inerente ao espírito humano. Eis porque a inteligência, incapaz de penetrar as razões infinitas e infinitamente complicadas dos acontecimentos, as quais, cada uma de per si, podem fazer figura de causa, lança mão da primeira que lhe aparece, seja a mais acessível das coincidências, e proclama: Esta é a causa! Nos factos históricos que têm por objecto de estudo as acções humanas a mais vulgar coincidência costuma ser a vontade dos deuses, e depois a dos homens colocados em situação de destaque, os chamados «heróis da história». Basta, no entanto, aprofundar um pouco qualquer facto histórico, isto é, ver agir as massas de homens que tomaram parte nele, para nos persuadirmos de que não é a vontade deste ou daquele herói que conduz as massas, mas, muito pelo contrário, é essa mesma massa que a todo o momento é conduzida. Dir-se-á ser indiferente que os acontecimentos se expliquem desta ou daquela maneira. Mas entre aquele que afirma que os povos do Ocidente se dirigiram para o Oriente porque Napoleão assim o quis, e aquele que sustenta que tal coisa aconteceu porque assim tinha de acontecer, existe a mesma diferença que entre os que proclamam que a Terra está imóvel e que os planetas giram em torno dela e os que confessam ignorar o que mantém a Terra no espaço, embora saibam que há leis que regem o movimento da Terra e dos planetas. Não há nem pode haver outras causas dos factos históricos que não seja a causa de todas as causas, mas há leis que as conduzem, umas vezes desconhecidas, outras acessíveis à nossa razão. A descoberta destas leis não é possível todavia senão na medida em que renunciarmos deliberadamente a atribuir as causas à vontade de um só homem, como acontece com a descoberta das leis do movimento planetário, as quais apenas se tornaram viáveis a partir da altura em que se pôs de parte o princípio da imobilidade da Terra.
Depois da batalha de Borodino, da ocupação e do incêndio de Moscovo, o episódio mais importante da guerra de 1812 teria sido, na opinião dos historiadores, o movimento do exército russo ao deixar a estrada de Riazan para seguir pela de Kaluga, dirigindo-se para o campo de Tarutino, isto é, aquilo a que se chamou «a marcha de flanco» para Krasnaia Pakra. Atribuem eles a glória deste acto genial a diferentes pessoas e discutem a quem pertence realmente. Os estrangeiros, de maneira geral, e os próprios Franceses, prestam jus ao génio militar dos generais russos sempre que falam desta marcha de flanco. Mas difícil de compreender é a razão por que os escritores militares, e de todos os demais na sua esteira, admitem que esta famosa marcha de flanco seja uma invenção profunda de um indivíduo determinado para salvar a Rússia e perder Bonaparte. Aliás é difícil de compreender, de facto, a genialidade deste movimento, pois a verdade é que se não carece de grande rasgo de inteligência para compreender-se que a melhor posição de um exército não atacado é aquela que lhe oferece mais nutrido abastecimento. Qualquer pessoa, até a menos esperta das crianças, sem grande esforço, compreenderia que, em 1812, a estrada de Kaluga era o caminho mais vantajoso para a retirada do exército depois da capitulação de Moscovo. E é impossível compreender-se à custa de que deduções chegam os historiadores a atribuir tamanha profundeza a esta manobra. E ainda mais difícil é admitir como podem eles descobrir que esta manobra salvava os Russos e perdia os Franceses, quando é certo que, muito pelo contrário, em consequência das circunstâncias que a precederam, a acompanharam ou se lhe seguiram, essa manobra poderia ter sido fatal para o exército russo, dando a vitória ao exército francês. Se, com efeito, a partir do momento em que esse movimento se realizou, a situação dos Russos beneficiou, não é razão para se dizer que a causa disso fosse esse mesmo movimento.
Não só podia não ter trazido qualquer vantagem ao exército russo esta marcha de flanco, como podia mesmo ter sido a causa da sua perda. Para isso bastava que outras circunstâncias não tivessem surgido. Que teria acontecido se se não tivesse dado o incêndio de Moscovo, se Murat não houvesse perdido o contacto com os Russos, se Bonaparte não tivesse sido forçado à inacção, se o exército russo houvesse travado batalha em Krasnaia Pakra, como queriam Bennigsen e Barclay? Que teria acontecido se os Franceses tivessem atacado os Russos durante a marcha sobre Pakra ou se, em seguida, Napoleão houvesse atacado os Russos em Tarutino, apenas com a décima parte da energia que empregara em Smolensk? Que teria acontecido se os Franceses tivessem marchado sobre Petersburgo?... Em qualquer destas eventualidades a salvadora marcha de flanco teria redundado num desastre.
Por último, o que é ainda mais inconcebível, as pessoas que estudaram a história de peito feito não querem ver que a marcha de flanco não podia de maneira alguma ser atribuída à vontade de um só homem, que nunca ninguém a previra, que esta manobra, tal como aconteceu com a retirada de Fili, nunca fora em verdade encarada por quem quer que fosse no seu conjunto, mas era apenas o resultado de um número infinito de circunstâncias variadas, só sendo considerada em toda a sua amplitude quando se concluiu e já pertencia ao passado.
No conselho de guerra de Fili o comando russo teve como ideia dominante a retirada, coisa óbvia, em linha recta, isto é, pela estrada de Njjni- Novgorod. A prova está no facto de a maioria das vozes se terem pronunciado nesse sentido e sobretudo na célebre conversa do general-chefe, após o conselho, com Lanskoi, intendente-geral. Lanskoi informou Kutuzov de que os abastecimentos tinham sido principalmente concentrados ao longo do Oka, através do qual seria impossível transportá-los nos princípios do Inverno. Foi esta, portanto, uma das primeiras razões que determinaram o abandono do plano de retirada em linha recta, aparentemente o mais natural. As tropas mantiveram-se, pois, mais ao sul, na estrada de Riazan, mais próximas, por conseguinte, dos seus abastecimentos.
Posteriormente, a inactividade dos Franceses, que chegaram, mesmo a perder o contacto com os Russos, a preocupação de defender as manufacturas de Tula e sobretudo a vantagem de estar mais perto dos abastecimentos obrigaram o exército a obliquar mais para sul ainda, na direcção da estrada de Tula.
Depois de alcançarem, em marchas forçadas, a estrada de Tula, era intenção dos chefes militares não fazerem alto senão em Podolsk, e não se falava sequer, então, das posições de Tarutino, mas o caso é que uma série de circunstancias diversas -a aparição dos Franceses, que tinham voltado a estabelecer contacto com o exército russo, projectos de batalha e sobretudo a abundância de provisões em Kaluga- levou as tropas russas a descerem ainda mais para o sul a fim de se fixarem no centro do campo de abastecimentos, dirigindo-se da estrada de Tula na direcção da de Kaluga, rumo a Tarutino. Só quando as tropas chegaram a Tarutino, mercê de um concurso de circunstâncias, e que os homens principiaram a convencer-se de que tinham desejado aquela manobra e que a haviam planeado havia muito.
A famosa marcha de flanco apenas consistiu, em última análise, no seguinte, os exércitos russos, que até ai haviam retirado no sentido contrario ao da invasão, desviaram-se, uma vez que o movimento invasor cessou, da linha recta, até então seguida, e verificaram que não eram perseguidos, encaminharam-se naturalmente, na direcção das maiores reservas de abastecimentos.
Admitindo que os exércitos russos nenhum chefe militar genial tivessem a comandá-los, que ninguém tivessem, mesmo, a comandá-los, não teriam podido fazer outra coisa, depois da sua retirada sobre Moscovo, senão descrever um arco de círculo na direcção do local onde se encontravam os abastecimentos e em que havia abundância de tudo.
O movimento da estrada, de Nijm para a de Riazan, Tula e Kaluga era tão óbvo que nessa mesma direcção seguiam os bandos de salteadores e de Petersburgo se impunha a Kutuzov o mesmo caminho.
Em Tarutino foi por assim dizer repreendido pelo imperador por ter tomado a estrada de Riazan, e de Petersburgo indicaram-lhe essa mesma posição em frente de Kaluga, onde aliás, ele já se encontrava quando a carta do imperador lhe chegou às mãos.
Depois de rodar na direcção que a batalha de Borodino lhe impusera, a bola que era então o exército russo, após a supressão da força propulsora inicial, e na falta de novos impulsos, tomou o caminho que naturalmente se lhe impunha. O mérito de Kutuzov não está nessa manobra estratégica a que chamaram genial, mas no facto de ter percebido por si o que, significava esse acto. Só ele, a partir desse momento, compreendeu a importância da inactividade do exército francês: só ele teimou em afirmar que a batalha de Borodirio fora uma vitoria; e só ele empregou toda a sua energia em evitar que o exército se entregasse a combates inúteis, embora, na sua qualidade de general-chefe devesse ser partidário da ofensiva.
A fera atingida em Borodino continuava agora no ponto onde a linham deixado ao afastarse, mas ainda não se sabia se estava viva, se se encontrava exausta ou se apenas o fingia. E de súbito a fera soltou um gemido. Esse gemido de fera atingida anunciando o aniquilamento foi o envio de Lauriston ao campo de Kutuzov com uma proposta de paz.
Napoleão, persuadido, como sempre, de que tudo quanto fazia era perfeito, escreveu a Kutuzov nos termos que lhe vieram à cabeça, sem se dar ao cuidado de saber se era sensato o que escrevia:
Senhor Priucipe Kutuzov:
Envio-lhe um dos meus ajudantes-de-campo para lhe falar de alguns assuntos de importância. Peço a Vossa Alteza que faça fé no que ele lhe dirá, sobretudo quando ele lhe exprimir os sentimentos de estima e de particular consideração que eu desde há muito nutro pela pessoa de Vossa Alteza. Como não é outro o fim, desta carta, rogo a Deus, Sr. Príncipe Kutuzov, que vos tenha sob a Sua santa quarda,
Moscovo. 30 de Outubro de 1812,
Assinado: Napoleão
- Seria amaldiçoado pela posteridade se viesse a ser encarado como o primeiro motor de um acordo qualquer. Tal é o espirito presente da minha nação - respondeu Kutuzov, e continuou a fazer tudo ao seu alcance para impedir o exército russo de passar à ofensiva.
Durante o mês em que o exército de Napoleão se entregara ao saque de Moscovo e o russo acampava, tranquilamente, em Tarutino, uma mudança importante se verificara quer nas forcas dos dois adversários, quer no espirito que os animava: o fiel da balança inclinou-se a favor dos Russos. Embora eles não conhecessem a situação exacta do exército francês e as mudanças assaz rápidas que nele se tinham operado, a necessidade de passar à ofensiva traduzia-se agora em infinitos sintomas.
Grande numero de razões os compelia a isso: a missão de Lauriston, abundância de abastecimentos em Tarutino, as notícias provenientes de todos os lados sobre a inactividade das tropas francesas e as desordens que entre elas lavravam, a reconstituição dos regimentos russos pela incorporação de novos recrutas, tempo, o prolongado repouso de que os soldados tinham beneficiado, a impaciência que em geral se manifesta entre as tropas em descanso ansiosas de cumprir a sua missão, a curiosidade de saber o que acontecera ao exército francês que há tanto tinham perdido de vista, a audácia com que os postos avançados russos perseguiam os franceses desgarrados nas imediações de Tarutino, os guerrilheiros e a emulação que daí resultava, o desejo de vingança que exaltava a alma de cada russo desde que os Franceses se encontravam em Moscovo, principalmente o sentimento obscuro, latente em todos, de que se modificara a situação das tropas frente a frente, e que eram os Russos que tinham agora superioridade sobre o inimigo. Se a proporção das tropas era outra, a ofensiva tornava-se indispensável. E o certo é que, tal como acontece ao relógio pronto a dar horas quando os ponteiros percorrem os devidos pontos do mostrador, assim também nas altas esferas principiara um movimento acelerado de acordo com a mudança produzida entre as tropas.
(…) O objectivo das múltiplas intrigas estava sobretudo nas operações militares que cada um queria orientar à sua maneira, quando a verdade é que as operações prosseguiam independentemente de tudo o que se fizesse, consoante era mister que prosseguissem, isto é, sem nunca coincidirem com o que congeminavam os homens, pois a verdade era serem uma consequência das reacções mútuas das massas. Todas aquelas combinações se cruzavam, se enredavam, reflectindo nas altas esferas a imagem exacta do que devia realizar-se.
Numa carta endereçada a Kutuzov no dia 2 de Outubro, a qual ele não viria a receber senão depois da batalha de Tarutino, dizia o imperador:
Principe Mikail Ilarionovitch:
Desde o dia 2 de Setembro que Moscovo está nas mãos dos Franceses. Os seus últimos relatórios são datados de 20 e durante todo este tempo não só nada fez contra o inimigo no sentido de libertar a nossa primeira capital, como, inclusivamente, nesses relatórios participa que continua a recuar.
Serpukov já se encontra ocupada por um destacamento e Tula, com as suas fábricas indispensáveis ao exército, está em perigo.
Por um relatório do general Wintzengerode, verifico que um corpo de exército inimigo de dez mil homens avança pela estrada de Petersburgo. Outro, composto de alguns milhares, encaminha-se para Dmitrov. Um terceiro segue pela estrada de Vladimir. E um quarto, bastante importante, está concentrado entre Ruza e Mojaisk. No dia 25 o próprio Napoleão estava em Moscovo.
De acordo com todas estas indicações, e visto, que o inimigo dispersou as suas forças em destacamentos assaz iniportantes, e o próprio Napoleão ainda está em Moscovo com toda a sua guarda, será possível que as forças que se encontram na sua frente sejam tão poderosas que não possa tentar a ofensiva? É de supor, muito pelo contrário, com toda a verosimilhança, que o inimigo o esteja a perseguir com destacamentos ou, mais rigorosamente, com um corpo de tropas muito mais fraco que o exército que lhe esta confiado a si. É de crer que, tirando partido destas circunstância, e lhe seja possível, com vantagem evidente, atacar o inimigo, em número inferior às forças que comanda, e exterminá-lo ou, pelo menos, obrigá-lo a recuar, permitindo que continuem nas nossas mãos a maior parte dos distritos actualmente ocupados, e deste modo afastando o perigo que pesa sobre Tula e as demais cidades do interior.
Se o inimigo estiver em condições de marchar com um importante corpo de tropas sobre Petersburgo, a fim de ameaçar esta capital, quase inteiramente desguarnecida, a responsabilidade será sua, pois a verdade é que com o exército de que dispõe, agindo com decisão e energia, tem nas suas mãos todos os meios para evitar esta nova desgraça.
Lembre-se de que já tem de prestar contas à Pátria, indignada pela perda de Moscovo. Sabe, por experiência, que estou sempre disposto a recompensá-lo. Esta minha boa disposição não se pode dizer de qualquer modo afectada, mas tanto a Rússia como eu temos o direito de esperar de si todo o zelo, toda a firmeza e os êxitos que a vossa inteligência, os vossos talentos militares e a valentia das tropas que comanda nos autorizam a esperar.
Esta carta prova que em Petersburgo se sabia com exactidão qual o cômputo das tropas em presença, mas ainda ela vinha a caminho e já Kutuzov não podia impedir o exército sob o seu comando de tomar a ofensiva. A batalha já estava travada.
«É sempre assim na Rússia, faz-se tudo ao contrário!», diziam, depois de Tarutino, os oficiais e os generais russos, como ainda hoje o repetem, para darem a perceber que, se houve um imbecil que fez tudo ao contrário, eles, no seu caso, teriam procedido de maneira muito diferente. A verdade, porém, é que aqueles que assim falam ou não conhecem o assunto de que se trata, ou então se enganam redondamente.
As batalhas, seja a de Tarutino, a de Borodino ou de Austerlitz, nunca decorrem segundo as previsões daqueles que as dirigem. Eis um facto essencial.
Número infinito de forças independentes - em nenhuma outra circunstância é o homem mais livre que numa batalha, para ele questão de vida ou de morte - influem na marcha das operações, e esta marcha nunca poderá ser conhecida antecipadamente, nem nunca coincidirá com a direcção que lhe tenha fixado tal ou qual força individual única.
Quando sobre um determinado corpo agem, ao mesmo tempo de vários lados, variadas forças, a direcção do movimento não pode ser a de nenhuma dessas forças, mas como que a média de todas elas, o que em mecânica costuma exprimir-se pela diagonal do paralelogramo das forças.
Quando os historiadores, especialmente os franceses, afirmam que as suas guerras ou as suas batalhas se desenrolam segundo um plano antecipadamente estabelecido, a única conclusão que podemos tirar das suas descrições é que são inexactas.
O combate de Tarutino, evidentemente, não atingiu o resultado que Toll se propunha, isto é, conduzir as tropas em perfeita ordem ao ponto fixado pelo dispositivo, nem tão-pouco aquele que desejava o conde Orlov, isto é, fazer prisioneiro Murat, ou o de Bennigsen e de outros, o de esmagar instantâneamente o corpo inimigo; ou ainda o dos oficiais desejosos de tomarem parte numa acção e de se distinguirem; ou o dos cossacos, que não conseguiram recolher todos os despojos que apanharam, e assim por diante.
Mas se o objectivo real era justamente aquele que se alcançou e o que todos os russos unanimemente desejavam: expulsar os Franceses e destruir o seu exército é evidente que a batalha de Tarutino, graças, precisamente, a isso mesmo, aos erros cometidos, foi a única eficiente naquele momento da campanha. Era difícil e mesmo impossível imaginar resultado de batalha mais favorável.
Com os mais mesquinhos esforços, no meio dos maiores erros, e com perdas quase insignificantes, adquiriram-se os maiores resultados de toda a campanha: passou-se da retirada à ofensiva. Foi demonstrada a fraqueza dos Franceses, e os Russos provocaram o choque que os exércitos de Napoleão esperavam para empreender a fuga.
Napoleão entra em Moscovo depois da brilhante vitória do Moskva; não há dúvida de que a vitória foi dele, pois o campo de batalha ficou nas mãos dos Franceses. Os Russos recuam e abandonam a capital. Moscovo, a abarrotar de provisões, de armas, de munições e de riquezas sem conta, está nas mãos de Napoleão. O exército russo, duas vezes mais fraco que o francês, durante trinta dias não esboça a mais pequena tentativa de ataque.
Não pode ser mais brilhante a posição de Bonaparte. Para cair com forças duas vezes superiores sobre os restos do exército russo e esmagá-lo; para propor uma paz, vantajosa ou, em caso de recusa, esboçar um movimento ameaçador sobre Petersburgo; para, mesmo no caso de desastre, retirar sobre Smolensk ou Vilna, em vez de ficar em Moscovo; numa palavra, para conservar a situação admirável em que os Franceses se encontravam, parece que não era necessário ser-se um génio militar extraordinário.
Bastava fazer a coisa mais simples e mais fácil deste mundo: impedir que as tropas se entregassem ao saque, preparar roupas de Inverno, roupas que Moscovo estava em condições de fornecer para o exército inteiro, e regulamentar a distribuição de alimentos, os quais, na opinião dos historiadores franceses, eram suficientes para seis meses.
Napoleão, esse génio dos génios, senhor de plenos poderes sobre o exército, segundo referem os historiadores, não soube pôr em prática esta coisa simplíssima.
E não só nada disto fez, mas serviu-se de todo o seu poder para escolher, de entre todas as medidas a tomar, a mais absurda e a mais nefasta; de tudo o que podia fazer - hibernar em Moscovo, marchar sobre Petersburgo ou sobre Nijni-Novgorod, ou retroceder, quer pelo norte, quer pelo sul, pela estrada que depois seguiu Kutuzov-, escolheu a mais absurda e mais perigosa: ficar em Moscovo até Outubro, deixando que os seus soldados saqueassem a cidade, e em seguida hesitar entre manter uma guarnição na capital, sair dela ao azar, aproximar-se de Kutuzov, não decidir travar batalha, passar pela direita, alcançar MaloIaroslavets sem correr o risco de um recontro; o não tomar a estrada que seguira Kutuzov, mas regressar a Mojaisk pela estrada escalavrada de Smolensk. Nada se pode imaginar de mais insensato nem de mais nefasto, como ficou amplamente provado pelas consequências. Admitindo que Napoleão tivesse como objectivo perder o seu exército, teria sido difícil aos mais hábeis estrategos imaginar plano de operações mais eficaz para a destruição completa desse exército, e isso independentemente de tudo quanto o próprio exército russo pudesse ter feito nesse sentido!
E no entanto foi isto mesmo que o genial Napoleão acabou por fazer. E, apesar de tudo, afirmar que este perdeu o seu exército porque quis ou porque não passava de um tolo seria tão errado como dizer que ele levara as suas tropas até Moscovo por ter sido esse o seu desejo e porque era uma inteligência e um génio. Quer num quer no outro caso, a sua acção pessoal, não mais influente que a do mais insignificante dos seus soldados, limitou-se a conformar-se com as leis que presidiam ao acontecimento.
Estão em erro os historiadores que nos apresentam Napoleão intelectualmente deprimido em Moscovo, simplesmente porque os resultados não justificam a sua acção. Nesse momento, como antes e depois, em 1813, Napoleão serviu-se de toda a sua força moral para agir o melhor possível no interesse próprio e no interesse do seu próprio exército.
Então a sua actividade não foi menos surpreendente do que a que empregou no Egipto, na Itália, na Áustria e na Prússia. A verdade é que não sabemos com precisão até que ponto se revelou o seu génio no Egipto, onde quarenta séculos contemplaram a sua grandeza, visto os seus feitos nos terem sido relatados por franceses.
É-nos impossível apreciar no seu justo valor o génio por ele demonstrado na Áustria e na Prússia, pois a verdade é que não podemos conhecer os seus actos senão através de fontes francesas e alemãs, e os Alemães não podem explicar a capitulação sem combate do seu corpo de exército e capitulação sem cercos em forma das suas fortalezas desde que não recorram ao reconhecimento do génio que Bonaparte exibiu na guerra da Alemanha.
No que diz respeito aos Russos, esses, graças a Deus, não têm qualquer razão para se inclinarem perante essas qualidades excepcionais no intuito de esconderem a sua vergonha. Os Russos pagaram caro de mais o direito de julgar os seus actos com justeza e sem disfarces e não estão dispostos a abandonar o direito que lhes assiste.
A actividade de Napoleão em Moscovo foi tão espantosa e tão inspirada pelo génio como em qualquer outra parte. Ordens e planos não cessaram de lhe emanar da cabeça desde que entrou em Moscovo até, que partiu da capital russa. Não o impressionam nem a ausência dos habitantes nem das deputações, como o não impressiona o próprio incêndio da cidade. Não perde de vista nem o bem-estar do seu exército nem os movimentos do inimigo, tão-pouco esquece o bem-estar das populações russas, a administração dos negócios públicos de Paris e as considerações diplomáticas relativas às condições de paz.
No ponto de vista militar, Napoleão, assim que entrou em Moscovo, deu ordens severas ao general Sebastiani para que seguisse exactamente os movimentos do exército russo e enviasse corpos de tropas em várias direcções, tendo prescrito a Murar que descobrisse o paradeiro de Kutuzov.
Em seguida toma medidas severas para fortificar o Kremlin e estabelece um plano admirável para a sua futura campanha na Rússia.
No ponto de vista diplomático convoca o capitão Iakovlev, arruinado e andrajoso, que não sabia como sair de Moscovo, para lhe expor detalhadamente a sua política, e a sua magnanimidade, e entrega-lhe uma carta para o imperador Alexandre, onde se, sente no dever de o pôr ao corrente do comportamento censurável de Rostoptchine, ordenando-lhe que a leve a Petersburgo. E expõe igualmente os seus magnânimos projectos a Tutolmina e manda também este ancião a Petersburgo como parlamentário.
No que diz respeito a assuntos judiciais, após os incêndios ordena que se procurem e punam os culpados. E o malfeitor do Rostoptchine é castigado, ordenando-se que lhe deitem fogo às próprias casas.
Em matéria administrativa, oferece a Moscovo uma constituição. Cria-se uma municipalidade e afixa-se a seguinte proclamação:
Habitantes de Moscovo! São grandes as vossas desgraças, mas Sua Majestade o Imperador e Rei quer pôr termo aos vossos sofrimentos. Terríveis exemplos vos mostraram já a maneira como ele castiga a desobediência e o crime. Severas medidas foram tomadas para acabar com as desordens e dar lugar a que se restabeleça a segurança de todos os indivíduos. Uma administração paternal, composta de homens escolhidos de entre vós, formará a vossa municipalidade. O corpo administrativo chamará a si cuidar de vós, das vossas necessidades, dos vossos interesses. Os membros desta municipalidade distinguir-se-ão por uma faixa vermelha a tiracolo.
O governador civil, além da faixa, terá uma cinta branca. Fora das horas de serviço, porém, os membros da municipalidade apenas usarão braçadeira vermelha no braço esquerdo.
A polícia municipal é instituída de acordo com o antigo regulamento, e graças à vigilância por ela exercida a ordem na cidade já é outra. O Governo nomeou dois comissários-gerais, ou police-meister, e vinte comissários, ou tchastni pristavs, para todos os bairros da cidade. Conhecem-se pela braçadeira branca no braço esquerdo.
Várias igrejas afectas a cultos diversos estão abertas e as solenidades religiosas realizam-se sem obstáculos. Os vossos concidadãos estão todos os dias a regressar aos seus lares e deram-se instruções para que lhes seja prestada ajuda e protecção, como é devido a quem sofre.
Eis os meios pelos quais o Governo espera restabelecer a ordem e minorar as vossas privações.
Mas para se chegar a este objectivo é preciso que junteis os vossos esforços aos desta gente, que esqueceis, se for possível, os sofrimentos por que acabais de passar, que tenhais esperanças num futuro menos cruel, que estejais convencidos de que a morte inevitável e infamante pesará sobre todos aqueles que atentem contra a vossa vida ou contra a vossa propriedade, e sobretudo que não tenhais dúvidas de que os vossos bens serão respeitados, que tal é o desejo do maior e do mais justo de todos os monarcas, Soldados e habitantes, seja qual for a vossa nacionalidade!
Restabelecei a confiança pública, essa fonte de felicidade de todos os governos, vivei em paz, ajudai-vos e protegei-vos uns aos outros, uni-vos para combater as tentativas dos criminosos; obedecei às autoridades militares e municipais e não tarda que deixem de correr lágrimas dos vossos olhos.
No que dizia respeito a subsistências, Napoleão ordenou às tropas que viessem à vez a Moscovo, à rapina, para assim arranjarem alimentos para que o exército pudesse fazer face ao futuro.
No que tocava à religião, deu ordens de trazerem os popes e de recomeçarem nas igrejas as cerimónias religiosas.
Mandou afixar por toda a parte a seguinte proclamação, relativa às transacções comerciais e ao fornecimento de subsistências ao exército:
Pacíficos habitantes de Moscovo, homens de artes e ofícios que as desgraças afastaram da cidade, e também vós outros agricultores dispersos, escondidos pelos campos, aterrorizados sem qualquer fundamento, ouvi! A calma restabeleceu-se na capital e a ordem reina por toda a parte. Os vossos compatriotas abandonam sem medo os seus refúgios, pois sabem que serão respeitados. Qualquer acto de violência exercido contra eles ou em prejuízo dos seus bens é punido acto contínuo.
Sua Majestade o Imperador e Rei protege-vos e só considera inimigos aqueles que de entre vós desobedecerem às suas ordens. É seu desejo pôr fim às vossas infelicidades e restituir-vos a vossos lares e a vossas famílias. Correspondei às suas benévolas medidas voltando a casa sem temor algum.
Habitantes! Artesãos e trabalhadores laboriosos! Retomai as vossas actividades: os vossos lares, as vossas tendas, protegidas por patrulhas, esperam-vos, e o vosso trabalho será recompensado.
E vós, camponeses, abandonai as florestas onde vos refugiastes levados pelo medo, regressai às vossas isbás, certos de que vos saberemos proteger. Criaram-se nas cidades grandes armazéns onde os camponeses podem colocar os produtos da lavoura que excedam as suas necessidades.
Para garantir a livre circulação destes produtos, o Governo tomou as seguintes medidas: 1º De hoje em diante os camponeses, lavradores e demais habitantes dos arrabaldes de Moscovo, sem qualquer risco, podem trazer à capital os seus produtos e colocá-los em dois dos armazéns montados para esse fim, um na Rua Mokovaia e outro no Mercado Okotni. 2º Estes produtos serão adquiridos ao preço que se convencione entre o vendedor e o comprador; porém se aquele que vende não encontrar quem lhe pague preço justo tem o direito de tornar a levar a sua mercadoria, sem que ninguém o possa impedir. 3º Em vista disto, semanalmente, aos domingos e quartas-feiras, haverá feiras, e para esse efeito aos sábados e terças-feiras serão destacadas tropas em número suficiente para protegerem os comboios ao longo de todas as estradas, até certa distância da capital. 4º Iguais medidas se adoptaram para proteger o regresso dos camponeses às suas aldeias. 5º Procurar-se-á restabelecer no prazo mais breve possível os mercados ordinários.
Habitantes da cidade e das aldeias, e vós, artesãos, operários, qualquer que seja a vossa nacionalidade! Apelamos para vós, rogando-vos que vos conformeis com as paternais instruções de Sua Majestade o Imperador e Rei e que o ajudeis a contribuir para o bem-estar comum. Depositai a seus pés o respeito e a confiança e não vos demoreis a juntar-vos connosco!
No intuito de elevar o moral das tropas e do povo, havia frequentes paradas e distribuíam-se condecorações.
O imperador percorria as ruas a cavalo, consolando os habitantes, e apesar das muitas preocupações que lhe causavam os negócios públicos aparecia nos espectáculos organizados segundo inspiração sua.
No que diz respeito à beneficência, a melhor virtude dos soberanos, Napoleão fez também tudo que dependia dele. Deu ordem para que se inscrevesse no frontão dos estabelecimentos de beneficência: Casa de minha mãe, maneira de associar, assim, o terno afecto filial à magnanimidade do monarca. Visita o asilo das crianças abandonadas, dá a beijar a sua branca mão aos órfãos que salvou e conversa condescendentemente com Tutolmine.
Enfim, segundo o eloquente relato de Thiers, manda pagar o soldo dos seus soldados com o dinheiro russo por ele falsificado. «Relevando o emprego dos seus recursos por um acto digno de si e do exército francês, mandou distribuir socorros aos sinistrados. Mas como os víveres eram demasiado preciosos para serem dados a estrangeiros, a maior parte dos quais inimigos, Napoleão preferiu distribuir-lhes dinheiro para que eles se abastecessem fora da cidade, e mandou distribuir-lhes rublos-papel.»
Enfim, no, desejo de manter a disciplina do exército, constantemente expede ordens severas para que sejam punidas as infracções ao regulamento e ao saque.
Mas, coisa estranha, todas estas medidas, todas estas ordens e todos estes planos, em nada piores que os tomados em circunstâncias idênticas, não afectavam a essência da questão, como acontece aos ponteiros de um quadrante que, quando desligados do maquinismo, giram arbitrariamente e sem objectivo, alheios às engrenagens que os accionam.
No ponto de vista militar, este genial plano de campanha, a respeito do qual Thiers disse «que o seu génio nunca imaginara nada de mais profundo, de mais hábil e de mais admirável», e a propósito do qual., na sua polémica com M. Fain, se empenha em demonstrar ter sido redigido não a 4, mas a, 15 de Outubro, este plano nunca foi nem nunca poderia ter sido executado, pois a verdade é que em coisa alguma se aplicava às circunstâncias de momento.
A fortificação do KrermIin, que implicava a, demolição da Mesquita, que assim chamava Napoleão à igreja de Basílio, o Bem-Aventurado, provou ser absolutamente inútil. As minas cavadas no subsolo do Kremlin apenas serviram para ajudar o imperador a pôr em prática o seu projecto de o fazer ir pelos ares aquando da sua partida de Moscovo, no mesmo espírito com que uma pessoa fustiga o soalho que fez cair uma criança.
A perseguição do exército russo, que tanto o preocupou, proporcionou aos observadores um espectáculo extraordinário. Os generais franceses perderam a pista de sessenta mil russos, e, segundo Thiers, só graças à habilidade, e talvez mesmo ao génio de Murat, foi possível encontrá-los, como se se tratasse de um simples alfinete perdido.
Na actividade diplomática, os argumentos que Napoleão desenrolou para demonstrar a sua generosidade e o seu espírito de justiça diante de Tutolmina e de IakovIev, o qual, entre parêntesis se diga, se preocupava sobretudo em arranjar um bom capote e uma carruagem, resultaram também inúteis; Alexandre I não recebeu esses embaixadores e não respondeu às cartas de que eram portadores.
E no que diz respeito às suas medidas judiciárias? Apesar de ter sido executado grande número de falsos incendiários, o que restava de Moscovo acabou por arder.
E quanto às suas medidas administrativas? A constituição de uma municipalidade não só não deteve o saque, como só foi útil às pessoas que dela fizeram parte, as quais, a pretexto de manterem a ordem, se entregaram à pilhagem ou apenas se deram ao cuidado de proteger o que era seu contra a pilhagem alheia.
No que toca a matéria religiosa, as medidas postas em prática no Egipto, como as visitas às mesquitas, que aí deram tão bons resultados, em Moscovo não produziram efeito algum. Os dois ou três padres que estavam em Moscovo procuraram pôr em execução a vontade imperial, mas um deles foi esbofeteado por certo soldado francês durante o serviço divino e acerca de outro escreveu um funcionário de Napoleão o que se segue: «O padre que eu descobrira, e a quem convidara a celebrar missa, limpou e fechou a igreja. Nessa noite vieram de novo arrombar as portas, partir os cadeados, rasgar os livros e praticar outras desordens.»
No que se refere a assuntos comerciais, a proclamação aos artesãos e camponeses não encontrou o mais pequeno eco. Já não havia «trabalhadores laboriosos»: e, quanto aos camponeses, esses deitaram a mão aos comissários portadores das proclamações que se aventuraram longe de mais e mataram-nos.
Tão-pouco deram resultado os espectáculos destinados a divertir o público e as tropas. Os teatros organizados no Kremlin e em casa de Posniakov foram imediatamente fechados, pois actores e actrizes viram-se despojados de tudo quanto tinham.
Também a beneficência foi estéril. Moscovo viu-se inundada de papel-moeda, quer falso quer verdadeiro, que logo perdeu todo o seu valor. Os Franceses, só preocupados em encher as algibeiras, apenas queriam ouro. Não só carecia de valor a moeda falsa que Napoleão distribuía tão generosamente pelos desgraçados, como as próprias moedas de prata se trocavam por moedas de ouro muito abaixo do seu valor.
Mas o exemplo mais impressionante da ineficácia das medidas tornadas nas altas esferas revelou-se na inutilidade dos esforços do imperador para deter a pilhagem e restabelecer a disciplina.
Eis aqui informações das autoridades militares: «O saque continua na cidade, apesar das ordens dadas para que cessasse. A ordem, por enquanto, não está restabelecida e ainda não há um único comerciante que pratique comércio legal. Apenas os cantineiros se arriscam a vender, mas objectos provenientes do saque.» «A parte do meu bairro continua a ser saqueada pelos soldados do 3º corpo, os quais, não se contentando em arrancar aos desgraçados refugiados nos subterrâneos o pouco que lhes resta, se mostram tão ferozes que os ferem à sabrada, como eu próprio pude observar.» «Nada de novo, além de que os soldados continuam a roubar e a saquear, 9 de Outubro.»
«O roubo e o saque continuam. Há um bando de ladrões no nosso bairro que é preciso mandar prender por uma força poderosa. 11 de Outubro.»
«O imperador está muito descontente com o facto de, apesar das ordens severas dadas para se acabar com a pilhagem, só ver chegar ao Kremlin destacamentos de merodistas da guarda. Na velha guarda renovaram-se ontem e hoje com mais intensidade do que nunca os actos de pilhagem. O imperador tem o desgosto de verificar que soldados de escol, destinados a defender a sua própria segurança, e que deviam dar exemplo de acatar as ordens, levam tão longe a desobediência que saqueiam os próprios armazéns e as lojas preparadas expressamente para o exército. Alguns tão baixo desceram que já não obedecem às sentinelas, antes as injuriam e as abatem a tiro.»
«O grande marechal do palácio queixa-se», escrevia o governador, «de que, apesar das reiteradas proibições, os soldados continuam a fazer as suas necessidades em todos os pátios e até mesmo debaixo das janelas do imperador.»
O exército francês, como um rebanho que pisasse aos pés o pasto destinado a salvá-lo da fome, dispersava-se e perecia, pouco a pouco, mercê daquela longa permanência em Moscovo. E a verdade é que se não movia. Não se moveu até ao dia em que de súbito o assaltou um medo pânico, e isso veio a dar-se quando os soldados souberam que haviam sido capturados comboios na estrada de Smolensk e que se dera a batalha de Tarutino. A notícia desta batalha, inopinadamente levada ao conhecimento de Napoleão durante uma parada militar, despertou no imperador o desejo de castigar os Russos, como refere Thiers, e foi então que deu a ordem de marcha reclamada pelo exército inteiro.
Ao abalarem de Moscovo, os soldados levavam consigo tudo quanto tinham podido apanhar. O próprio Napoleão fugia com o seu tesouro. Perante os pesados carregamentos que o exército levava, segundo diz Thiers, Napoleão ganhou medo. Mas, com a sua experiência da guerra, não mandou queimar todas as bagagens supérfluas, como fizera com as carroças de um dos seus marechais, ao aproximar-se de Moscovo. Ao ver essas seges e essas carruagens apinhadas de soldados, achou que estavam bem e que esses carros poderiam vir a ser utilizados mais tarde para transportar abastecimentos, doentes e feridos.
A situação do exército francês fazia lembrar a de uma fera atingida que sabe próximo o seu fim e já não atina com o que deve fazer.
Estudar as hábeis manobras e os planos de campanha de Napoleão e do seu exército desde a entrada em Moscovo até à destruição deste é como estudar os pinchos e as convulsões de um animal ferido de morte. Acontece muitas vezes que esse animal, assustado por um ruído qualquer, se atira para debaixo da espingarda do caçador, corre direito a ele, volta para trás, precipitando deste modo o seu próprio fim.
Eis o que fez Napoleão sob a pressão do seu exército. A notícia da batalha de Tarutino encheu de medo o animal, que se atirou para debaixo da espingarda, chegou até junto do caçador, voltou para trás e, por fim, como sempre acontece, se precipitou no caminho mais desvantajoso e mais perigoso, pois os seus trilhos já lhe eram conhecidos. Tal como aos olhos dos selvagens, a figura esculpida à proa do barco se lhes afigura a força que o faz mover, Napoleão, que nos é apresentado como o dirigente de todo este movimento, na realidade, durante todo este período da sua vida, foi apenas a criança que, agarrada às correias do interior de um carro, julga estar a dirigi-lo.
(…) Precisamente naquela altura atingia ele aquela serenidade e aquela satisfação de si próprio a que debalde aspirara outrora. Por muito tempo, no decorrer da sua vida, procurara, de vários modos e em várias direcções, aquela tranquilidade, aquele acordo consigo próprio, que tão profundamente o impressionara nos soldados durante a batalha de Borodino. Procurara-os na filantropia, na franco-maçonaria, nas distracções da vida mundana, no vinho, na heróica abnegação, no romanesco amor ; procurara-os pelas vias do puro pensamento e sempre e em toda a parte só encontrara decepções. Mas agora, espontaneamente, sem pensar nisso, ei-lo que achara essa serenidade nos horrores passados diante da morte, nas privações (…)
O príncipe André pensava e dizia que a felicidade apenas tinha carácter negativo, e isto não sem que o dissesse e pensasse com um misto de amargura e ironia. Pensando assim, parecia querer dizer que todas as aspirações do homem à felicidade positiva lhe não tinham sido dadas senão para o atormentar, insatisfeitas que sempre eram. Sem qualquer pensamento reservado, Pedro adoptara esta maneira de pensar. A ausência da dor, a satisfação de todas as necessidades, e, como consequência, a liberdade da escolha das suas próprias ocupações, isto é, do género de vida que mais lhe quadrava, afiguravam-se-lhe, a Pedro, incontestavelmente, o ideal da felicidade humana. Mas agora compreendera pela primeira vez o prazer de comer quando se tem fome, de beber quando se tem sede, de dormir quando se tem sono, de se aquecer quando se tem frio, de falar quando apetece ouvir uma voz humana. A satisfação das necessidades, uma boa alimentação, o asseio, a liberdade, agora, que estava privado de tudo isso, apareciam-lhe como o supra-sumo da felicidade, e a liberdade da escolha das suas ocupações, isto é, a própria vida, agora, que tão limitada lhe estava essa escolha, parecia-lhe coisa tão fácil que esquecia que o próprio excesso das comodidades da existência destrói toda a felicidade que resulta da satisfação das necessidades e que uma perfeita liberdade de acção, essa liberdade que lhe proporcionara a instrução, a fortuna, a posição na sociedade, torna a escolha das ocupações excessivamente difícil e por isso mesmo destrói a necessidade e o desejo de acção.
Todos os pensamentos de Pedro se reportavam agora ao momento em que o restituíssem à liberdade. E, no entanto, depois, e até ao fim dos seus dias, alegremente recordaria aquele mês de prisão e com entusiasmo falaria das fortes e inapagáveis alegrias que experimentara então e sobretudo da serenidade moral perfeita, da completa liberdade interior que só nessa quadra da sua existência profundamente conhecera.
Já nada o comovia: dir-se-ia que a sua alma, preparando-se para uma luta difícil, repelia de si toda a emoção capaz de a debilitar.
«Ah!, ah!, ah!», gargalhava Pedro. E em voz alta ia dizendo para si mesmo: «O soldado não me deixou passar, apanharam-me, encarceraram- me, fizeram-me prisioneiro. Mas a quem? A mim, à minha alma imortal? «Ah!, ah!, ah…» E de tanto rir enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas.(…) Ergueu os olhos para o céu, para as profundezas onde se perdiam as estrelas cintilando. «E tudo isto me pertence, tudo isto está em mim e tudo isto sou eu!», exclamou. «E a tudo isto deitaram eles a mão e tudo isto encerraram numa barraca de madeira!» Sorriu e foi deitar-se junto dos companheiros.
Nos primeiros dias de Outubro Kutuzov voltara ainda a receber uma carta de Napoleão, com propostas de paz, que lhe fora confiada por um parlamentário, carta falsamente datada de Moscovo, pois o imperador já se encontrava para além do exército russo, na velha estrada de Kaluga. Kutuzov repetiu o que respondera à primeira que lhe fora apresentada por Lauriston: que não queria ouvir falar em paz.
O destacamento de guerrilheiros comandado por Dolokov, que operava à esquerda de Tarutino, comunicou que haviam desaparecido tropas francesas em Fominskoie, e que, essas tropas eram formadas pela divisão Broussier, a qual, isolada do resto do exército, facilmente podia ser dizimada.
Soldados e oficiais exigiam, gritando, que os deixassem combater. Os generais do estado-maior, encorajados pela vitória fácil de Tarutino, insistiam com o generalíssimo para que a proposta de Dolokov fosse aceite. Kutuzov continuava a considerar inoportuna qualquer actividade. Foi então resolvido tomar uma medida intermédia: enviou-se um pequeno destacamento a Fominskoie com o propósito de atacar Broussier.
Por um estranho acaso, esta missão - a mais difícil e a mais importante de todas, como depois se verificou - foi confiada a Dokturov, esse pequeno e modesto Dokturov, que ninguém concebia a gizar planos de batalha, e lançar-se à frente dos seus regimentos, ou a espalhar cruzes às mãos-cheias pelas baterias, esse homem que tinha fama de indeciso, e que, no entanto, em todas as operações contra os Franceses, de Austerlitz até 1813, estivera sempre na posição de comando onde a situação era mais difícil.
Em Austerlitz fora o último a abandonar o dique de Augezd, reunindo os regimentos, salvando o que podia, quando todos debandavam ou tinham sido mortos e mais nenhum general havia na linha de fogo.
Enfermo e cheio de febre, acorreu a Smolensk com vinte mil homens para defender a cidade contra o exército de Napoleão. Em Smolensk, num grande acesso febril, passa pelo sono na Porta de Malakov. O tiroteio desperta-o e a cidade aguenta-se todo o dia.
Em Borodino, depois que Bagration foi morto e os Russos perderam, na sua ala esquerda, um por cada nove soldados, e quando toda a artilharia francesa despejava metralha sobre eles é ainda este indeciso e imprevidente Dokturov quem vai substituir um general mal escolhido numa infeliz decisão de Kutuzov. E apresenta-se este miúdo, este modestíssimo Dokturov, e Borodino transforma-se numa das mais brilhantes glórias russas.
No entanto, embora sejam muitos os heróis celebrados em prosa e verso, de Dokturov ninguém fala.
Foi ainda Dokturov o general enviado a Fominskoie e daí a Malii Iaroslavets, local em que se travou a última verdadeira batalha contra os Franceses, e onde, de facto, verdadeiramente, principiou a derrocada dos exércitos napoleónicos. E, embora sejam muitos os génios e os heróis glorificados desta campanha, de Dokturov ou não se fala ou apenas se lhe dedicam algumas palavras de elogio equívoco. O silêncio à volta deste homem é a mais evidente prova dos seus méritos.
É natural que um homem que não conhece o funcionamento de uma máquina atribua grande importância ao cisco que por acaso se introduziu nas suas engrenagens e a não deixa funcionar. Sem conhecer a sua construção, esse homem não pode compreender que o órgão essencial da máquina é a pequena roda que gira sem ruído.
(…)era uma dessas engrenagens invisíveis que sem fazer qualquer ruído constituem um dos órgãos essenciais de qualquer máquina.
Sabia que quando se deseja muito qualquer coisa, pode uma pessoa acabar por preparar as notícias de sorte a que elas confirmem o que se deseja, tendo o cuidado de guardar silêncio sobre tudo que contradiga o que se pretende.
(…)Kutuzov recua por toda a parte, mas o inimigo, sem esperar que ele recue, foge em direcção oposta.
Os historiadores de Napoleão descrevem todas estas hábeis manobras em direcção a Tarutino e Maloiaroslavets e fazem prognósticos sobre o que teria acontecido se o imperador tivesse podido penetrar nas ricas províncias do Sul.
Mas a verdade é que, além de ninguém o impedir de penetrar nessas províncias, uma vez que o exército russo lhe abria o caminho para elas, esses historiadores esquecem-se de que nada podia já então salvar o exército napoleónico, visto ele transportar consigo inevitáveis germes de morte. Esse exército, que encontrara em Moscovo abundantes abastecimentos, e que, em vez de os conservar, os desperdiçara por completo, esse exército, que ao chegar a Smolensk, em lugar de repartir os mantimentos entre os seus homens, deixara que os pilhassem, estaria esse exército em condições de recuperar forças na província de Kaluga, cujos habitantes sentiam e pensavam como os de Moscovo e tinham, como eles, o fogo à sua disposição? Tal exército não tinha maneira de se refazer fosse onde, fosse.
Depois de Borodino e do saque de Moscovo, havia nele elementos de decomposição por assim dizer químicos. Os soldados deste, por assim dizer, ex-exército fugiam com os seus comandantes sem saber para onde, não desejando - tanto Napoleão como qualquer dos seus soldados - senão uma coisa: sair, pessoalmente, o mais breve possível, daquela situação sem apelo, de que todos se davam conta, embora confusamente.
Eis porque, em Maloiaroslavets, onde os generais franceses, simulando um conselho de guerra, emitiram vários pareceres, o ultimo, o do cândido soldado que era Mouton, exprimindo o que estava no pensamento de todos, que o que havia a fazer era abalarem o mais depressa possível, tapou a boca a toda a gente e ninguém, nem o próprio Napoleão, ousou objectar fosse o que fosse a essa indiscutível verdade.
No entanto, por mais que reconhecessem que era preciso partir, tinham vergonha ainda de confessar a necessidade da fuga. Era preciso um impulso exterior para vencer essa relutância humana. E esse impulso veio a produzir-se no momento necessário. Foi o que os Franceses chamaram o «hurra do imperador».
No dia seguinte, após este conselho de guerra, Napoleão, de madrugada, com o pretexto de inspeccionar as tropas e o campo das batalhas passadas e futuras, aventurou-se com a sua escolta até às primeiras linhas. Alguns cossacos que andavam na pilhagem surpreenderam o imperador e por pouco não lhe deitaram a mão. Se desta vez o não apanharam, salvou-o, precisamente, o que fora a causa da derrota dos Franceses: o saque, que naquele caso, como antes, em Tarutino, levou os cossacos a não pensarem noutra coisa.
Sem repararem em Napoleão, entregaram-se à pilhagem, e assim o imperador pode escapar-se-lhe das mãos. Desde que os rapazes do Dom tinham a possibilidade de o apanhar no meio do seu próprio exército, era evidente não haver outra coisa a fazer senão fugir o mais depressa possível pela estrada mais curta.
Napoleão, com os seus quarenta anos e a sua barriguinha, já se não sentia com a elasticidade e a audácia de outrora, e compreendeu a advertência. O medo que os cossacos lhe provocaram levou-o a aceitar imediatamente o parecer de Mouton.
E deu ordem de retirar, assim o dizem os seus historiadores, pela estrada de Smolensk. O facto de Bonaparte se ter mostrado de acordo com Moutou e a circunstância de o seu exército ter batido em retirada não provam de maneira alguma que a decisão haja partido dele, mas apenas que as forças ocultas, agindo sobre os seus homens, e impelindo-os a tomar a estrada de Mojaisk, também agiam sobre Napoleão.
Quando um homem se move, o seu movimento tem sempre uma finalidade. Para percorrer mil verstas é preciso, necessariamente, que o homem se figure que ao cabo dessas mil verstas há qualquer coisa de muito agradável à sua espera. Para se resolver a marchar tem de apetecer a terra prometida.
A terra prometida, para os Franceses, no momento em que invadiam a Rússia era Moscovo; na altura da retirada a terra prometida era a pátria. Mas a pátria estava muito longe, e o homem com mil verstas a percorrer tem, necessariamente, de principiar por se dizer a si próprio que fará hoje quarenta verstas, ao cabo das quais poderá descansar, dormir e olvidar o termo da jornada. O primeiro descanso fá-lo esquecer a meta a atingir e todos os seus desejos e todas as suas esperanças aí se concentram.
E o que se verifica com o indivíduo isolado em mais alto grau se observa quando se trata da multidão.
Para os Franceses em retirada pela antiga estrada de Smolensk, a pátria estava ainda muito longe e por isso o termo mais próximo a que aspiravam todas as suas energias, mais ardentes ainda por se tratar de um exército inteiro, era Smolensk. Não que eles soubessem existir nessa cidade grandes reservas de mantimentos ou esperassem aí encontrar tropas francesas - ninguém lhes dissera uma coisa dessas, e não só os oficiais superiores como o próprio Napoleão sabiam perfeitamente serem escassos o mantimentos aí existentes. No entanto, essa perspectiva dava-lhes coragem para caminhar e para suportar as privações bem reais. E tanto os que sabiam como os que não sabiam, atraídos pelo engodo, se precipitaram em, direcção a Smolensk como se caminhassem para uma terra da promissão.
Assim que atingiram a estrada real, os Franceses, com uma energia extraordinária, uma rapidez incrível, deram-se pressa de alcançar o fim almejado. Além das razões já apontadas, nova causa os compelia para diante em massa compacta: o seu grande número. Esta enorme massa, graças à própria lei da atracção, dos corpos, chamava a si os átomos individuais. Avançava num bloco de cem mil homens como se fosse um Estado inteiro em marcha.
Cada um de per si apenas desejava uma coisa: cair prisioneiro. Era a maneira de se livrar de todos aqueles horrores e de todo aquele sofrimento. Em primeiro lugar, no entanto, a força que os compelia para Smolensk arrastava-os a todos numa única e mesma direcção. E mais: não podia um corpo de exército inteiro entregar-se a uma simples companhia e conquanto os soldados aproveitassem todas as oportunidades para se separarem uns dos outros e se servissem do mais pequeno pretexto para se entregarem, as ocasiões eram raras.
A circunstância de serem muitos e a rapidez da marcha que levavam tiravam-lhes a possibilidade de o conseguirem e tornava-se difícil, e por assim dizer impossível para os Russos, deter um movimento em que punham toda a sua energia.
O desgarramento interior deste corpo não podia acelerar além de uma certa medida o processo de decomposição que o ameaçava. É impossível derreter instantaneamente uma bola de neve. Tem de decorrer um certo lapso de tempo antes que o calor o consiga, por maior que seja. Pelo contrário, quanto maior é o calor mais a neve endurece. Eis o que nenhum dos chefes russos compreendera, à excepção de Kutuzov.
Desde que se teve a certeza de qual a direcção que tomara o exército francês em fuga pela estrada de Smolensk, principiou a realizar-se o que Konovnitsine previra na noite de 11 de Outubro. Os altos postos não pensaram noutra coisa senão em distinguir-se, cortando a retirada aos Franceses, cercando-os, fazendo-os prisioneiros, aniquilando-os: todos, à compita, exigiam uma ofensiva.
Kutuzov era o único a empregar todas as suas forças - e as forças do comandante-chefe são por vezes escassas em casos destes - para se opor aos desígnios dos altos postos. Não lhe era possível argumentar com eles como agora pode argumentar-se. Para quê uma batalha? Para quê cortar-lhes as estradas, perder homens, chacinar desumanamente tantos desgraçados? Para quê tudo isto, quando é certo que entre Moscovo e Viazma a terça parte deste exército se derreteu sem uma única batalha em forma?
Na sua sageza de velho apenas lhes dizia o que lhes era possível, a eles, compreenderem, falando-lhes na «ponte de ouro» (Kutuzov dissera para o inglês que acompanhava as operações como representante dos Aliados que preferia construir uma «ponte de ouro» para os Franceses passarem que sacrificar os seus homens. (N. dos T.).
E eles zombavam do velho, caluniavam-no, mostrando a sua bravura no lombo da fera morta.
Em Viazma, Ermolov, Miloradovitch e Platov, ao verem-se perto dos Franceses, não puderam refrear os seus ímpetos e aniquilaram dois corpos de exército inimigos. Para informarem Kutuzov da sua intenção enviaram ao Sereníssimo, dentro de um sobrescrito, à guisa de relatório, uma folha de papel em branco.
E, apesar dos esforços do general-chefe para os reter, os soldados russos atacaram no intuito de tolher o passo aos Franceses.
Segundo se disse, regimentos de infantaria marcharam para a linha de fogo com bandas e tambores à frente, perdendo e matando milhares de homens. Mas quanto a tolherem-lhes o passo, não tolheram coisa alguma nem aniquilaram ninguém. E o exército francês, mais coeso graças ao perigo, prosseguiu na sua caminhada fatal em direcção a Smolensk, esgotando-se pouco a pouco.
A batalha de Borodino, a ocupação de Moscovo, que se lhe seguiu, e a retirada dos Franceses sem novos combates constituem acontecimentos históricos instrutivos.
Todos os historiadores estão de acordo em afirmar que a actividade externa dos povos e dos impérios se traduz nas suas colisões mútuas representadas pelas guerras e que a força política dos países aumenta ou diminui na razão directa dos êxitos militares maiores ou menores.
São sem dúvida estranhas as descrições dos historiadores em que se relata que tal ou qual rei ou imperador, em conflito com tal ou qual outro rei ou imperador, convocou o seu exército, se bateu contra o exército inimigo, saiu vitorioso, causou a morte de três, cinco, dez mil homens, em virtude do que conquistou determinado Estado e um povo inteiro composto de muitos milhões de habitantes. Que a derrota de um exército, apenas a centésima parte das forças de um povo inteiro, leve à submissão desse povo, eis o que não pode deixar de ser incompreensível.
No entanto, estes factos, na medida em que chegam ao nosso conhecimento, confirmam a justeza do que se diz acerca das vitórias militares, causa essencial da grandeza dos povos. Ganha um exército uma batalha e imediatamente os direitos do vencedor prosperam em detrimento dos do vencido. É uma derrota que o atinge, e logo o povo perde os seus direitos na proporção do desastre sofrido, e se porventura o seu exército é esmagado não tem mais que submeter-se por completo.
Assim tem sucedido, diz a História, desde os tempos mais recuados até aos nossos dias.
Todas as guerras de Napoleão confirmam afinal esta regra. À medida que os exércitos austríacos são derrotados, a Áustria perde certos dos seus direitos, enquanto os da França aumentam, crescendo o seu poderio proporcionalmente. As vitórias de Jena e de Auerstedt representam o fim da, independência da Prússia.
No entanto, em 1812, os Franceses obtêm a vitória em Moscovo, ocupam a cidade, e o certo é que, sem novas batalhas, não é a Rússia que deixa de existir, mas, em primeiro lugar, esse imenso exército de seiscentos mil homens e depois a própria França de Napoleão.
Tentar pôr de acordo os factos com as leis históricas, afirmar que o campo de batalha de Borodino ficou nas mãos dos Russos, que depois de Moscovo se travaram combates que aniquilaram o exército napoleónico, eis o que é impossível.
Após a vitória dos Franceses em Borodino, não tornou a haver mais nenhuma batalha geral, nem sequer houve qualquer recontro importante, e, no entanto, o exército francês foi destruído. Que significa isto? Se se tratasse de um acontecimento da história da China, ainda poderíamos sustentar que se não tratava de um fenómeno histórico, recurso habitual dos historiadores quando alguma coisa não joga perfeitamente com as suas teorias. E ainda se se não tratasse senão de um conflito bastante episódico, em que apenas tivesse tomado parte número restrito de tropas, isso ainda nos habilitaria a, sustentar que estávamos perante uma excepção. Mas o acontecimento deu-se quando os nossos pais eram vivos e se debatia a questão de vida ou de morte da sua pátria, e essa guerra foi a maior de todas as guerras conhecidas.
O período da campanha de 1812 que vai de Borodino à expulsão dos Franceses não só demonstrou que uma batalha vitoriosa não é só por si razão suficiente da conquista de um país, mas nem sequer disso é mesmo sintoma. Provou, pelo contrário, que a força que decide do destino dos povos nem está nos conquistadores, nem nos seus exércitos, nem mesmo nas batalhas que eles travam. Está em qualquer outra coisa. Os historiadores franceses, ao referirem-se à situação do exército napoleónico antes da sua retirada de Moscovo, afirmam que a ordem reinava em todos os corpos excepto na cavalaria, na artilharia e no trem hipomóvel, acrescentando existir falta de forragens para os cavalos e para o gado, penúria irremediável, uma vez que os camponeses dos arredores preferiam queimar a palha a, entregá-la aos Franceses.
A vitória não trouxe consigo os resultados habituais, porque os camponeses, os Karp e os Vlas, trataram de saquear Moscovo quando os Franceses abandonaram a capital, não dando provas, em geral, de grande heroísmo, e porque muitos outros preferiram queimar a palha a vendê-la ao invasor por elevado preço.
Imaginemos dois homens dispostos a bater-se em duelo à espada de acordo com todas as regras da esgrima. A peleja dura muito tempo. De súbito, um deles, ao sentir-se ferido e ao compreender que se não trata de uma brincadeira, pois é a sua própria vida que está em risco, joga fora, a espada e, deitando a mão ao primeiro cacete que lhe aparece, põe-se a lutar com ele. Suponhamos porém que esse duelista que com tanta oportunidade empregou o melhor meio e o mais simples para conseguir os seus fins, animado pela tradição cavalheiresca, procura ocultar a verdade e insiste em dizer que venceu o seu rival com todas as regras. Poder-se-á fazer uma pequena ideia da confusão que resultaria se ele porventura se pusesse a descrever o seu duelo?
O esgrimista que exige que o combate decorra de acordo com todas as regras do duelo é o francês; o adversário que jogou fora a espada e sacou do cacete é o russo; as pessoas que procuram tudo explicar pelas regras da esgrima são os historiadores que se ocuparam do acontecimento.
A partir do incêndio de Smolensk principiou uma guerra a que se não pode aplicar qualquer das tradições guerreiras conhecidas até então. O incêndio das cidades e das aldeias, a retirada após as batalhas, o golpe de Borodino e a nova retirada, os acontecimentos de Moscovo, a caça aos merodistas, a captura dos transportes, as guerras dos partidários, tudo isto estava à margem das regras ordinárias e das tradições bélicas.
Napoleão deu por isso, e desde o momento em que se deteve em Moscovo na atitude correcta imposta pela esgrima e se deu conta de que o adversário, em vez de brandir uma espada, manejava um cacete, logo se pôs a queixar-se a Kutuzov e a Alexandre, alegando que a guerra estava a ser conduzida de maneira contrária a todas as regras, como se em verdade pudesse haver regras para matar criaturas humanas.
Mas, apesar das queixas dos Franceses e da vergonha que sentiam certas altas personalidades russas por se verem obrigadas a bater-se com cacetes quando desejavam seguir as regras, colocando-se em posição de em quarta, ou em terceira, e atacando em primeira, etc., o certo é que o cacete da guerra civil nacional se levantou com força majestosa e devastadora e sem querer saber dos gostos de cada um o das respectivas regras, simples e brutal, mas confiante nos seus golpes, caiu sobre os Franceses e zurziu-lhes as costas até os invasores ficarem completamente aniquilados.
Ditoso o povo que, ao contrário dos Franceses em 1813, os quais saudaram segundo os princípios da arte de esgrima, entregando a espada cortês, graciosamente, ao magnânimo vencedor, ditoso do povo que, num momento de provação, sem querer saber como se conduziriam os outros em caso semelhante, ergue, fácil e simplesmente, o primeiro cacete que lhe vem às mãos e zurze com ele o inimigo até que na alma lhe desponte, em vez da ofensa e da vergonha, o sentimento do desprezo e da compaixão.
Uma das mais impressionantes e fecundas excepções às pretensas leis da guerra é a acção de indivíduos isolados contra as massas compactas de tropas. Eis um género de operações que vem a produzir-se sempre nas guerras de carácter nacional. Em lugar de se oporem em massa, os homens dividem-se em pequenos destacamentos, atacam isoladamente e fogem desde que enfrentados por grandes forças, atacando outra vez logo que a oportunidade se oferece.
Foi o que fizeram os guerrilheiros em Espanha, assim agiram os montanheses no Cáucaso e os Russos em 1812 não procederam de outra maneira. A esta forma de combater deu-se o nome de «guerra de guerrilhas» e ao designá-la dessa sorte pensou-se explicar a sua significação.
Na verdade, pode considerar-se à margem de todas as regras e até mesmo em oposição aos princípios tácticos mais conhecidos e tidos por infalíveis. Segundo esses princípios, aquele que ataca deve concentrar as suas tropas de maneira a que na altura do combate se encontre mais forte que o adversário.
A guerra de guerrilhas, sempre bem sucedida, como a história o demonstra, desmente categoricamente tal princípio. A contradição deve-se ao facto de que a arte militar supõe que a força de um exército está em relação com o número dos seus homens. Segundo ela, quanto mais numeroso é um exército mais forte resulta. Os batalhões pesados têm sempre razão. Ao sustentar esta afirmação, a ciência militar parece-se com a teoria da mecânica afirmando que as forças estão na relação directa das massas e que as forças são iguais entre si consoante as massas são ou não iguais, também. A força como quantidade de movimento é o produto da massa pela velocidade.
Na guerra, a força das tropas é realmente o produto das massas, mas multiplicado por uma incógnita x. A ciência militar, ao encontrar na história numerosos exemplos em que a massa dos soldados não coincide com a sua força real, pois pequenos destacamentos vencem por vezes grandes concentrações de tropas, admite confusamente a existência desse multiplicador desconhecido e procura descobri-lo, quer na construção geométrica de um plano, quer na superioridade do armamento, quer, mais geralmente, no génio dos chefes.
Mas os resultados obtidos por estes diversos multiplicadores estão longe de poderem explicar os factos históricos. Basta, porém, renunciar a atribuir importância, como em geral acontece, para agrado dos heróis, às disposições tomadas pelo alto comando durante uma guerra, para se descobrir, finalmente, essa famosa incógnita.
Este x é o moral das tropas, isto é, o desejo mais ou menos vivo de os homens de que se compõe o exército se exporem ao perigo, independentemente da questão de saberem se se batem sob as ordens de um génio ou não, em duas ou três linhas, ou com cacetes ou espingardas capazes de disparar trinta tiros por minuto. Os que tiverem o desejo mais vivo de se bater serão os que se encontram nas condições mais favoráveis para a luta. O moral das tropas, eis o multiplicador da massa cujo produto é a força.
Precisar e definir o valor do moral, esse multiplicador desconhecido, eis o que a ciência da guerra tem de fazer. A resolução deste problema apenas se tornará possível no dia em que deixemos de substituir arbitrariamente a incógnita, pelas condições que manifesta a força, quer dizer, as disposições tornadas, o armamento, etc., atribuindo-lhes o valor do multiplicador e reconhecendo essa incógnita, em toda a sua integridade, como um maior ou menor desejo de bater-se e de expor-se ao perigo.
Só então, ao exprimir por equações os factos históricos, e tendo em conta o valor relativo da incógnita, pode esperar-se encontrar esta última. Dez homens, dez batalhões ou dez divisões, combatendo contra quinze homens, quinze batalhões ou quinze divisões, vencem-nos, quer dizer, mataram e fizeram prisioneiros todos os seus inimigos, perdendo os vencedores quatro unidades. Por conseguinte, de um lado caíram quatro e do outro quinze. Logo, 4 é igual a 15, ou seja, 4x = 15y. Assim, pois, x:y = 15:4.
Esta equação não dá o valor da incógnita, mas a relação entre as duas incógnitas. Ao aplicar o sistema das equações aos diferentes acontecimentos históricos considerados separadamente - batalhas, campanhas, períodos de guerra - poder-se-á obter uma série de números em que devem existir leis susceptíveis de se revelar.
A regra táctica que prescreve que se deve agir por massas no ataque e em ordem dispersa na retirada confirma, involuntariamente, a verdade segundo a qual o poderio de um exército depende do espírito que o anima.
Para se levarem os homens para a linha de fogo é preciso muito maior disciplina - e essa disciplina apenas se consegue pelas massas em movimento - do que para escapar aos assaltantes.
Mas toda a regra que não tenha em conta a questão do moral das tropas é infalivelmente falsa e está mesmo em absoluta oposição com os factos, ali onde se manifestar uma violenta exaltação ou uma grande depressão no espírito do exército, principalmente nas guerras civis de carácter nacional.
Os Franceses, durante a sua retirada de 1812, quando, segundo a táctica, deveriam defender-se, isoladamente, concentram-se, pelo contrário, em massa, pois o certo é que, o moral das tropas estava de tal modo quebrantado que a massa era a única forma de manter a unidade.
Os Russos, que, segundo a táctica, deveriam atacar em massa, dispersam-se, pelo contrário, uma vez que o seu moral era de tal ordem que os homens isolados não precisavam de ordem para combater os Franceses nem de disciplina para se exporem ao perigo e à fadiga.
A guerra de guerrilha, principiou no dia em que os Franceses entraram em Smolensk.
Muito antes de esta guerra vir a ser reconhecida oficialmente pelo Governo russo, já muitos milhares de homens do exército inimigo - desertores, merodistas, forrageadores - haviam sido exterminados pelos cossacos e pelos camponeses e com tão poucos escrúpulos como se se tratasse de cães danados.
Denis Davidov foi o primeiro, com o seu faro patriótico, a reconhecer a importância desta terrível guerra de cacete, sem quaisquer preocupações com as regras da arte militar, matava numerosos franceses, e a ele pertence a glória de, ter principiado por regularizar esta nova maneira de combater.
No dia 24 de Agosto estava organizado o primeiro destacamento de guerrilheiros, e a ele logo se seguiram muitos outros. Quanto mais se prolongava a campanha maior era o número destes destacamentos.
Os guerrilheiros iam destruindo, por partes, o grande exército. Varriam as folhas que caíam da árvore seca que era o exército francês e por vezes chegavam a abanar-lhe o tronco.
No mês de Outubro, enquanto os Franceses fugiam em direcção a Smolensk, formavam-se centenas destes destacamentos com efectivos e carácter diferentes. Tinham uns a aparência de tropas regulares, com infantaria, artilharia, estado-maior e fartos abastecimentos: outros apenas eram constituídos por cavalaria e cossacos; havia alguns, pouco importantes, formados por tropas mistas de infantaria e de cavalaria; e outros, enfim, compostos de camponeses e de proprietários rurais, completamente desconhecidos.
Só um sacristão, à frente de um grupo de guerrilheiros, conseguiu num mês fazer centenas de prisioneiros, e a mulher de um estaroste, uma tal Vassilissa, dizimou um centenar de franceses.
Nos últimos dias de Outubro atingia a guerra de guerrilhas seu apogeu. Passara o período inicial durante o qual os guerrilheiros se surpreendiam com a sua própria audácia, receando a cada momento ver-se cercados pelos Franceses. Quase não desmontavam dos seus cavalos e escondiam-se nas florestas, sempre à espera de serem perseguidos.
Agora as guerrilhas estavam organizadas, e todos sabiam claramente o que podiam ou não fazer para atacar o inimigo. Só os comandantes de destacamento, que no séquito do estado-maior, consoante as ordens recebidas, se mantinham afastados dos Franceses, consideravam impossível certos empreendimentos.
Os comandantes dos pequenos grupos de guerrilheiros, já bastante experimentados e que perseguiam o inimigo de perto, consideravam realizáveis coisas em que os demais nem sequer teriam ousado pensar.
Quanto aos cossacos e aos camponeses que se infiltravam nas próprias linhas inimigas, esses pensavam que doravante tudo era possível.
Enquanto estivera preso no abarracamento, adquirira a convicção, não racional, mas graças ao sentimento íntimo de todo o seu ser, de que o homem nascera para a felicidade, de que a felicidade estava nele, homem, na satisfação das suas tendências naturais, e de que todas as desgraças eram antes consequência de excessos que propriamente de privações.
Mas depois daquelas três últimas semanas de marcha, nova e consoladora verdade se lhe revelara, a saber, que neste mundo nada há de verdadeiramente terrível. Assim como o homem nunca consegue ser perfeitamente feliz e livre, também não há situação alguma em que seja completamente infeliz e escravo.
Assim como há limite para o sofrimento, também há limite para a liberdade, e esses limites tocam-se mutuamente.
Agora sabia que o homem que sofre porque, deitado em cama de rosas, o magoa uma ruga das suas pétalas, era tão infeliz como ele próprio, dormindo na terra húmida e nua, com frio por um lado e calor pelo outro.
Lembrava-se de que quando, outrora, enfiava nos pés uns escarpins de baile muito apertados sofria tanto ou mais que actualmente, que caminhava descalço, pois as botas há muito as não podia calçar e tinha os pés cobertos de pústulas. Sabia que na altura do seu casamento, na aparência perfeitamente livre, não era mais livre que neste momento, que passava a noite fechado numa cavalariça.
(…) Na segunda jornada, ao examinar as feridas nos pés ao clarão das fogueiras, dissera de si para consigo que não poderia dar mais um passo; mas quando os companheiros se puseram a caminho lá os foi seguindo, embora coxeando, e assim que os pés lhe aqueceram não mais os sentiu, embora ficasse aterrado quando à noite tornou a olhar para eles. E decidiu não lhes pôr mais a vista em cima e pensar noutra coisa.
Só agora, realmente, sabia até que ponto o homem pode resistir e quanto valia o poder de distracção que lhe foi dado, espécie de válvula de segurança das caldeiras a vapor para quando a pressão ultrapassa a normal.
- A saúde? Chorarmos a nossa saúde não impede que Deus nos dê a morte.
- A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo vai e vem, tudo se move, e esse movimento é Deus. E enquanto há vida, há a satisfação de reconhecermos a divindade. Amar a vida é amar a Deus. O mais difícil e meritório é amar a vida nas suas dores, nos seus sofrimentos imerecidos.
(…) e de súbito viu, como se estivesse vivo, um velho mestre, de que há muito se esquecera, que na Suíça lhe ensinara geografia. «Espera», dizia-lhe o velho, mostrando-lhe o globo terrestre. Esse globo era uma esfera viva, oscilando e sem contornos definidos. Toda a sua superfície era formada por gotas de água muito unidas umas às outras, e essas gotas de água evoluíam, deslocavam-se, ora unindo-se numa gota mais grossa, ora dividindo-se de novo. Cada gota procurava dilatar-se, ocupar o maior espaço possível, mas, como as outras faziam o mesmo, apertavam-na, obrigando-a a desaparecer, por momentos, e misturando-se com ela outras vezes.
«Eis a imagem da vida», dizia-lhe, o velho.
«Como é simples e claro», pensava Pedro. «Com o não compreendi eu há mais tempo?» Deus está no centro e cada uma das gotas tenta alargar-se, na esperança de O reflectir na sua maior extensão. E cresce, alarga-se, comprime-se e desaparece da superfície, mergulha e volta depois a sobrenadar.
A partir de 28 de Outubro, data em que principiaram os frios, a retirada francesa assumiu um aspecto trágico. Alguns homens morriam gelados, outros tentavam aquecer-se junto de fogueiras; outros ainda, embrulhados em quentes peliças, continuavam a fuga, levando nas seges os bens do imperador, dos reis e dos duques. No conjunto, porém, nada mudara no estado de decomposição do exército em retirada.
De Moscovo a Viazma, os seiscentos e treze mil homens de que se compunha o exército francês ficaram reduzidos a pouco mais de trinta e seis mil, sem contar a Guarda, a qual, durante toda a campanha, outra coisa não fizera que pilhar. Dos seus trinta e seis mil homens, no máximo não apareceram no campo de batalha mais de cinco mil. Eis o primeiro termo da proporção que pode determinar exactamente o que veio a ocorrer depois. O exército francês liquefez-se e desapareceu, na mesma proporção, de Moscovo a Viazma, de Smolensk ao Beresina, do Beresina a Vilna, independentemente do frio mais ou menos intenso, em consequência da perseguição que lhe moviam os Russos, dos obstáculos que encontravam no caminho ou de todas as outras circunstâncias isoladamente.
Berthier escrevia ao amo nos termos seguintes, e toda a gente sabe quanto se afastam da verdade os chefes que descrevem a situação do seu exercito:
Creio dever levar ao conhecimento de Vossa Majestade o estado das suas tropas nos vários corpos de exército, o qual pude verificar em diferentes pontos de há dois ou três dias para cá. Estão por assim dizer em debandada. Os soldados que seguem as bandeiras são apenas a quarta parte dos efectivos em todos os regimentos; os demais marcham isoladamente, em diversas direcções, e por conta própria, na esperança de encontrarem que comer e para se verem livres da disciplina. Em geral consideram Smolensk o ponto onde se reorganizarão. Nestes últimos dias, numerosos soldados deitaram fora as armas e os cartuchos. Perante tal estado de coisas, o serviço de Vossa Majestade exige, sejam, quais forem os objectivos ulteriores, que as tropas se reorganizem em Smolensk, principiando por desembaraçá-las dos não combatentes, ou seja, dos homens a pé, das bagagens inúteis e do material de artilharia, em desproporção com as forças actuais. Além de dias de descanso são necessários mantimentos para os soldados extenuados pela fome e pela fadiga; nos últimos dias morreram muitos nas estradas e nos bivaques. Este estado de coisas vai de mal a pior e faz-nos recear, caso se lhe não dê pronto remédio, não termos mão nas tropas para as obrigar a combater.
9 de Novembro, a trinta verstas de Smolensk.
Ao atingirem Smolensk, para os soldados uma espécie de terra de promissão, matam-se uns aos outros pelo pão para a boca, assaltam os seus próprios armazéns e quando tudo se acaba continuam a sua rota. Todos caminhavam sem saber porque avançavam nem onde iam e ainda menos do que ninguém o sabia o próprio Napoleão, esse génio, ele que não recebia ordens de quem quer que fosse.
Mas nem por isso deixavam de seguir os velhos hábitos, ele e os seus generais; lá continuavam, como sempre, a expedir instruções, mensagens, relatórios, ordens do dia, e a dizer uns para os outros: «Sire, meu primo, príncipe de Eckmühl, rei de Nápoles.» No entanto, todas estas ordens, todos estes relatórios, não passavam do papel. Já nada se executava, porque nada podia ser executado, e, apesar de todos os pomposos títulos que se davam uns aos outros, sentiam que não passavam de pobres e miseráveis criaturas, que muito mal haviam feito, e agora tinham de prestar contas.
E, embora se fingissem interessados pelo destino do exército, só numa coisa pensavam, lá no seu íntimo: fugirem o mais depressa que pudessem e salvarem-se, se ainda fossem a tempo.
Os movimentos das tropas russas e francesas durante a retirada de Moscovo ao Niémen fazem lembrar o jogo da cabra-cega. É como se vendassem os olhos dos jogadores, e um deles, de tempos a tempos, tocasse numa sineta a desafiar o outro. De princípio, toca destemido, mas, quando se vê em posição desvantajosa, trata de fugir do parceiro em silêncio; e, no entanto, cai-lhe amiúde nas mãos.
Nos primeiros tempos, os exércitos de Napoleão assinalavam a sua presença: foi isso no início da retirada pela estrada de Kaluga. Mais tarde, quando meteram pela de Smolensk, fugiram, com o badalo da sineta bem seguro, e por mais de uma vez, pensando que escapavam, foram cair no papo dos Russos.
Graças à rapidez da fuga dos Franceses perseguidos pelos Russos, e à fadiga dos cavalos que daí resultava, a melhor maneira de conhecerem, aproximadamente, a posição do inimigo, isto é, os reconhecimentos de cavalaria, era coisa que não existia. Além disso, resultado das mudanças rápidas na situação recíproca dos dois exércitos, as informações, quaisquer que fossem, não chegavam a tempo. Se no dia 2 do mês vinham a saber que e exército inimigo se encontrava no dia 1 em tal sítio, no dia 3, data em que era possível empreender qualquer acção, o dito exército já fizera duas jornadas de marcha e ocupava outra posição, Um dos exércitos fugia, o outro perseguia-o.
A partir de Smolensk, várias eram as estradas que se ofereciam aos Franceses. Era de supor que após quatro dias de permanência ali lhes fosse possível saber com exactidão onde estava o inimigo, permitindo-lhes traçar um plano favorável e tentar nova campanha. Mas, passados esses quatro dias, os bandos escaparam-se pela direita e pela esquerda, sem um movimento definitivo ou um percurso previsto, tomando a antiga estrada, a mais perigosa, a estrada por Krasnoie e Orcha, via já por eles percorrida. Supondo terem o inimigo na retaguarda, e não na vanguarda, fugiram, deixando entre eles intervalos de mais de vinte e quatro horas de marcha.
À frente vinha o imperador, depois os reis e os duques. O exército russo, persuadido de que Napoleão ia meter pela direita e atravessar o Dniepre, aliás a única estrada razoável, seguiu esta direcção, desembocando na estrada real para Krasnoie. E foi ali, como se jogassem à cabra-cega, que os Franceses encontraram a vanguarda russa.
Tomados de pânico perante a inesperada aparição, pararam, mas depressa se puseram em fuga, abandonando os que vinham atrás deles. Eis, como durante três dias, passaram corpos separados uns atrás dos outros através da torrente das forças russas, primeiro o do vice-rei, depois o de Davout, em seguida o de Ney. Abandonaram-se mutuamente à sua infeliz sorte, perdendo as bagagens, a artilharia, metade dos homens, fugindo, com um único pensamento: contornarem os Russos pela direita a coberto da noite.
Ney, que, apesar da infeliz situação das tropas, talvez precisamente por essa circunstância, ficara para trás ocupado a fazer saltar as muralhas de Smolensk, que a ninguém incomodavam, só para castigo da terra que determinara a sua perda, era o último a marchar com o seu corpo de dez mil homens. Reunira-se a Napoleão em Orcha, reduzido a mil homens, depois de ter espalhado o resto, bem como os canhões, em marchas nocturnas através dos bosques para alcançar o Dniepre.
De Orcha prosseguiram a sua rota para Vilna, sempre a jogar à cabra-cega com o exército que os perseguia.
No Beresina, nova confusão: muitos afogaram-se, outros renderam-se: mas os que conseguiram atravessar o rio lá continuaram.
Entretanto o seu grande chefe enfiava uma peliça, sentava-se num trenó e fugia sozinho, abandonando os companheiros. Os que puderam fizeram o mesmo, os que não puderam deixaram-se apanhar ou morreram.
Dir-se-ia que perante esta fuga doida dos Franceses, quando eles faziam tudo para se perderem a si mesmos, quando todos os seus movimentos, desde o desvio pela estrada de Kaluga até à fuga atrás do chefe do exército, eram desprovidos de qualquer bom senso, dir-se-ia que, ao menos, para este primeiro período da campanha, os historiadores, que atribuem a acção das massas à vontade de um só homem, confessassem o erro das suas teorias ao descreverem esta retirada.
Montanhas de livros se escreveram sobre esta campanha e em toda a parte se encontram exaltadas as disposições tomadas por Napoleão, a argúcia dos seus planos e das suas manobras e o génio dos seus marechais.
Explicam-nos, por uma série de profundos raciocínios, o motivo da retirada dos Franceses de Maloiaroslovets por uma estrada devastada quando se lhes deixava a passagem livre por uma região rica em abastecimentos e se lhes oferecia o caminho paralelo que seguiu posteriormente Kutuzov para os perseguir.
Também se nos explica assim a retirada de Smolensk para Orcha. Em seguida traçam-nos um quadro do comportamento heróico de Napoleão em Krasnoie, onde, ao que parece, teve intenção de travar batalha e pôr-se à frente das suas tropas. E mostram-no-lo de um lado para o outro, com uma vara de olmo na mão, dizendo - Já estou farto de fazer de imperador, é tempo de fazer de general. - O que o não impediu, pouco depois, de prosseguir na fuga, abandonando à sua triste sorte todos os corpos de exército dispersos que o seguiam.
Descrevem-nos igualmente a bravura dos marechais, particularmente a de Ney, bravura que se limitou a operar um desvio pela floresta a fim de atravessar o Dniepre de noite e fugir na direcção de Orcha, depois de perder as bandeiras, a artilharia e nove décimos dos efectivos.
Enfim, o abandono pelo grande imperador do seu heróico exército é-nos apresentado como uma grande acção e um rasgo de génio. Até mesmo o empreendimento final da sua fuga, que em qualquer língua só pode ter um nome, a última das cobardias, acto que envergonharia uma criança, até mesmo isso encontra a sua justificação na pena dos historiadores.
Quando já lhes não é possível estenderem mais o fio elástico dos raciocínios, quando o acto é realmente contrário ao que os homens chamam o bem e a justiça, recorrem, à míngua de argumentos, à noção de grandeza. A grandeza parece excluir a possibilidade de apreciar o bem e o mal.
O mal não existe para o que é grande. Quem é grande nunca poderá ser acusado de uma atrocidade. «É grande!», dizem os historiadores, e então deixa de existir o bem e o mal, para só haver o que é grande e o que não é grande. O que é grande é o bem, o que não é grande é, o mal. O grande é, segundo eles, privilégio de indivíduos especiais que recebem a classificação de heróis.
Napoleão, muito bem embrulhado numa peliça, volta para casa, deixando morrer não só companheiros, mas pessoas que, assim ele o confessou, arrastara atrás de si. Para si mesmo diz: sou o grande, e a alma tranquiliza-se-lhe. «Do sublime ao ridículo vai apenas um passo», dizia Napoleão, e o sublime era ele próprio. E de há cinquenta anos para cá o universo inteiro repete: «Sublime! Grande! Napoleão, o Grande! Do sublime ao ridículo vai apenas um passo!» E a ninguém ocorre que confessar que a grandeza está para além do bem e do mal é como reconhecer ao mesmo tempo a sua inferioridade e a sua infinita pequenez. Para nós, que recebemos de Cristo a medida do bem e do mal, nada existe fora dessa medida. Não há autêntica grandeza sem espontaneidade, bondade e verdade.
Haverá algum russo que ao ler as descrições do último período da campanha de 1812 não tenha experimentado um penoso sentimento de despeito, descontentamento e inquietação? Quem não terá perguntado a si próprio: porque não fizeram prisioneiros, porque não exterminaram todos os franceses, tendo três exércitos muito superiores em número a cercá-los, e eles, em debandada, morrendo de fome e de frio, se entregavam em massa, e sabendo nós, assim no-lo diz a história, que o objectivo dos Russos era precisamente deter, cortar a retirada e capturar todos os franceses? Como se explica que o exército russo, menos numeroso que o francês, tenha travado a batalha de Borodino e não haja atingido o seu objectivo quando cercava o inimigo por três lados e a sua intenção era aniquilá-lo? Tinham então os Franceses tão grande superioridade sobre nós que os não podíamos bater mesmo cercados por forças esmagadoras? Como pôde acontecer uma coisa destas?
A história, pelo menos a que se vangloria de tal nome, responde que a culpa foi de Kutuzov, Tormassov, Tchitchagov, deste e daquele, que não fizeram estes ou aqueles movimentos. Mas porque não fizeram eles esses movimentos?
Partindo do princípio de que eram culpados de não terem sabido atingir o objectivo previsto, porque não foram eles submetidos a conselho de guerra e devidamente castigados? E, se se admite que Kutuzov, Tchitchagov e os outros são culpados de tais reveses, não se compreende, mesmo nas condições em que se encontravam as tropas russas em Krasnoie e no Beresina - e em ambos os casos a sua superioridade era esmagadora -, não se compreende porque o exército francês não foi capturado com os seus marechais, os seus reis e o seu imperador, uma vez que essa era a finalidade dos Russos.
A explicação deste facto estranho, dada pelos historiadores russos, qual seja que Kutuzov se teria oposto ao ataque, cai pela base, pois toda a gente sabe que a vontade do general-chefe não evitara o ataque em Viazma e em Tarutino.
Porque é que este exército russo, que, com forças inferiores, em Borodino, alcançou uma vitória sobre um inimigo em pleno vigor, veio a ser vencido por bandos desorganizados de franceses em Krasnoie e no Beresina, quando dispunha, então, de superioridade esmagadora?
Se o objectivo dos Russos era cortar a retirada ao exército francês e aprisionar o imperador e os seus marechais, o certo é que esse objectivo não só não foi alcançado, como todos os esforços no sentido de o conseguir foram malogrados de maneira lamentável, de tal modo que o último período da campanha se apresenta, com justa razão, como uma série de vitórias dos Franceses e que os historiadores russos se enganam redondamente ao considera-lo vitorioso.
Os historiadores russos, forçados a admitir a lógica, chegam fatalmente a esta conclusão, e a verdade é que, não obstante as suas pomposas frases sobre a coragem e a dedicação, se vêem obrigados a admitir que a retirada de Moscovo é assinalada por uma série de vitórias de Napoleão e de derrotas de Kutuzov.
No entanto, pondo de parte todas as questões de amor-próprio nacional, sente-se que esta conclusão encerra em si uma contradição, pois essa série de vitórias levou os Franceses ao aniquilamento total, enquanto as derrotas dos Russos os levaram ao esmagamento do inimigo e à libertação da Pátria.
A razão desta contradição está no facto seguinte: que os historiadores, que estudam os acontecimentos de harmonia com a correspondência dos imperadores e dos generais e segundo relatórios, relações ou planos, pressupõem um objectivo errado, que nunca existiu no período final da guerra de 1812, o qual era cortar a retirada aos exércitos franceses e capturar Napoleão com os seus marechais. Nunca existiu semelhante objectivo, nem podia existir, visto não ter o mais pequeno sentido e ser absolutamente impossível de alcançar.
Semelhante finalidade não tinha o mais pequeno sentido, primeiro porque o exército derrotado de Napoleão fugia da Rússia o mais depressa que podia, isto é, procedia exactamente de acordo com os desejos dos Russos. Para quê operações contra os Franceses, quando eram eles próprios quem retirava a toda a pressa?
Em segundo lugar, era absurdo cortar a retirada a quem se empenhava em fugir com toda a força.
Em terceiro lugar, era estúpido sacrificar as próprias forças para esmagar os exércitos franceses, os quais, sem causas exteriores, desapareciam numa proporção tal que, sem que se opusesse qualquer obstáculo à sua fuga, se lhes tornava mesmo assim impossível transpor a fronteira (como o vieram a conseguir em Dezembro) senão reduzidos à centésima parte dos seus efectivos.
Em último lugar, o projecto para aprisionar o imperador, os reis e os duques era ridículo, pois a captura de tais personalidades só teria servido para prejudicar a política russa, como o reconheceram os melhores diplomatas da época. Joseph de Maistre e outros. E ainda era mais insensato quererem os Russos apoderar-se dos corpos franceses quando as tropas russas estavam reduzidas a metade antes de Krasnoie e seria precisa uma divisão de escolta para guardar os prisioneiros, quando era certo que os soldados russos nem sempre tinham a sua ração completa e que os franceses já capturados morriam de fome.
Esta profunda concepção segundo a qual se deveria cortar a retirada aos exércitos franceses e aprisionar Napoleão faz lembrar a atitude de um hortelão que para enxotar o gado que lhe espezinha a horta corre à porta da quinta e se põe a bater na cabeça dos animais. Só um excesso de ira justificaria semelhante atitude. Mas nem isto era de invocar para justificação dos autores do projecto, pois a verdade é que não tinham tido sequer o horto espezinhado. Aliás, cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército era uma operação não só absurda, mas impossível.
Impossível, primeiro, porque, se é verdade que a experiência ensina que um movimento executado a cinco verstas de um campo de batalha nunca se harmoniza com o plano primitivo, era tão inverosímil que Tchitchagov, Kutuzov e Wittgenstein chegassem a tempo ao local determinado que pode dizer-se impossível. Tal a opinião de Kutuzov ao saber da existência do plano, dizendo que uma diversão a grandes distâncias não pode dar o resultado esperado.
Em segundo lugar, impossível porque, para se conseguir paralisar a força da inércia que fazia recuar o exército francês, era preciso dispor de tropas a incomparavelmente superiores àquelas que os Russos tinham.
Em terceiro lugar, ainda impossível porque a expressão militar de «cortar a retirada» a um exército não tem sentido. Pode cortar-se um bocado de pão, mas um exército, de maneira nenhuma. Cortar a retirada a um exército, isto é, cortar-lhe o caminho, não é coisa que se possa fazer, pois há sempre maneira de contornar o obstáculo, e há a noite, durante a qual todo e qualquer movimento se torna desapercebido, coisa de que os especialistas militares puderam persuadir-se graças a Krasnoie e ao Beresina.
É absolutamente impossível aprisionar seja quem for, a menos que o aprisionado consinta, pela mesma razão de que não é possível apanhar uma andorinha, a não ser que ela venha pousar na nossa mão. Capturam-se aqueles que se entregam, como os Alemães, segundo as regras da estratégia e da táctica. Mas os Franceses não viam nisso vantagem alguma, pois em fuga ou capturados só a fome e o frio os esperavam.
Em quarto lugar, sobretudo, deve considerar-se que desde que o mundo é mundo nunca houve guerra em condições tão terríveis como a de 1812, e que os exércitos russos, para perseguirem os Franceses, haviam posto em jogo todas as suas forças e não podiam fazer mais sem se aniquilarem a si próprios. Durante a sua marcha de Tarutino para Krasnoie, os Russos perderam cinquenta mil doentes e retardatários, quer dizer, um número de homens igual à população de uma importante cidade de província. Metade do exército perdeu-se, sem combate. A propósito deste período da campanha em que as tropas, sem botas e sem agasalhos, com abastecimentos insuficientíssimos, sem vodka, tiveram de passar as suas noites, durante meses, no meio da neve, com temperaturas de quinze graus negativos em que os dias apenas tinham sete ou oito horas de luz solar e as noites eram sem fim, o que tornava impossível toda a disciplina eficaz: em que os homens, não como numa batalha, onde não vêem a morte diante dos olhos senão durante algumas horas, passavam meses inteiros receando, a cada instante, morrer de fome e de frio; em que, no decurso de um mês, metade do exército soçobrou. A este propósito vêm os historiadores contar-nos tranquilamente como Miloradovitch se viu obrigado a fazer uma marcha de flanco em tal sítio, Tormassov em tal outro e Tchitchagov se viu forçado a deslocar-se para determinado ponto, deslocação levada a cabo com neve para cima dos joelhos dos homens, e como fulano caiu em cima do inimigo e lhe cortou a retirada, etc. Os Russos, reduzidos, por morte, a metade dos seus efectivos, fizeram tudo o que puderam e deviam fazer para atingir um objectivo digno e a culpa não é sua se outros russos houve que, fechados em quartos confortáveis, gizaram planos que se não podiam pôr em prática.
Esta contradição estranha, que se não compreende nos nossos dias, entre os factos e as descrições dos historiadores resulta apenas de estes terem querido fazer a história dos belos discursos de certos generais em vez de contarem os acontecimentos.
Interessante para eles são as palavras de Miloradovitch, as condecorações recebidas por este ou por aquele general, os planos propostos. Os cinquenta mil desgraçados que ficaram nos hospitais ou caíram por terra não lhes interessam, porque não dizem respeito aos seus estudos.
E, no entanto, basta voltarmos as costas ao exame dos relatórios e dos planos para vermos remexer essas centenas de milhares de homens que tomaram parte directa e imediata nos acontecimentos e tudo o que anteriormente nos parecia insolúvel se nos apresentar desde logo como a solução mais fácil e mais simples.
O intento de cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército apenas existiu na imaginação de meia dúzia de indivíduos. Era irrealizável, por absurdo e impossível. O povo só queria uma coisa: libertar o solo pátrio da invasão. Esse objectivo alcançou-se, primeiro sem a intervenção fosse de quem fosse, visto que os Franceses fugiam e bastava deixá-los fugir; em segundo lugar, graças à guerra patriótica que exterminava os Franceses; e por fim porque um poderoso exército russo seguia de perto o inimigo, pronto a utilizar a força caso os Franceses parassem no caminho. O exército russo devia agir como o chicote no dorso do animal que foge. E os pastores hábeis sabem que a melhor maneira de conduzir o gado é segurar o chicote ameaçador no ar sem fustigar a cabeça dos animais.
Quando o homem vê morrer um animal, fica aterrorizado. A qualidade de ser vivo de que ele próprio participa desaparece diante dos seus olhos, deixa de existir. Mas quando aquele que morre é um ser humano, e um ser querido, além desse horror perante a vida que desaparece, o homem sente um dilaceramento, uma ferida moral que, como o ferimento físico, em certos casos leva à morte, noutras cura-se e por vezes também continua sensível e receia os contactos exteriores.
É tão impossível uma dor pura e perfeita como uma pura e perfeita alegria.
Por estranha que pareça, a verdade é que a ferida moral produzida por um desregramento do espírito cicatriza-se, pouco a pouco, como uma ferida física, renovando ela própria os seus tecidos, graças à força vital que vem de dentro.
Não o sabia nem poderia acreditar que assim fosse, mas a verdade é que sob a espessa camada de húmus que lhe revestia a alma, parecia despontar já uma plantazinha tenra que não tardaria a crescer e a estender os seus vigorosos rebentos sobre a dor que a esmagava, dor que não tardaria muito a não ser visível nem perceptível. A sua ferida cicatrizara pelo interior.
Depois do choque dos exércitos em Viazma, onde Kutuzov não pudera refrear o desejo das suas tropas ansiosas por aniquilar e cortar a retirada ao inimigo, o movimento de recuo dos Franceses, perseguidos pelos Russos, continuou até Krasnoie sem outra batalha.
A fuga era tão rápida que o exército russo não podia acompanhar os Franceses. Havia falta de cavalos na cavalaria e na artilharia e não se sabia com precisão onde o inimigo estava.
Os homens, extenuados por esta marcha ininterrupta, à razão de quarenta verstas em vinte e quatro horas, não podiam andar mais depressa.
Para que possa compreender-se o grau de esgotamento do exército russo basta verificar-se o seguinte: se desde Tarutino esse exército não perdera, entre mortos e feridos, mais de cinco mil homens, além de uma centena de prisioneiros, e se à saída de Tarutino contava cem mil homens, o certo é que, ao chegar a Krasnoie os seus efectivos não iam a mais de cinquenta mil.
A rapidez da perseguição agia sobre o exército russo de maneira tão dissolvente como a fuga no exército francês. A única diferença estava nisto: que o exército russo avançava a seu talante, sem a ameaça que a cada momento pesava sobre o exército francês, que via os retardatários doentes caírem nas mãos do inimigo. Os Russos sempre estavam em sua casa.
A causa principal das perdas do exército napoleónico foi a rapidez da sua marcha e a prova incontestável está nas perdas idênticas das tropas russas.
Kutuzov, tanto em Tarutino como em Viazma, fez tudo o que pôde para não entravar a retirada mortífera dos Franceses, como queriam Petersburgo e os generais do exército, antes, pelo contrário, favoreceu-a, facilitando o movimento avante dessas tropas. Mas, além da lassidão das tropas e das perdas que sofreram, consequência da marcha acelerada, Kutuzov ainda tinha outro motivo para moderar os seus ímpetos e ganhar tempo. Evidentemente que o objectivo dos Russos era perseguir os Franceses. A estrada que estes seguiam não era conhecida daí, quanto mais os Russos lhe seguiam o rastro, mais distanciados eles estavam. Só seguindo-os a uma distância respeitável era possível, metendo por atalhos, cortar os ziguezagues que o inimigo efectuava na sua marcha. As sábias manobras propostas pelos generais traduziam-se em toda a sorte de movimentos de tropas, numa multiplicação das jornadas e a única coisa razoável a fazer era reduzir o número destas marchas.
Foi esse o objectivo que Kutuzov procurou realizar energicamente, durante toda a campanha, de Moscovo a Vilna, não temporariamente ou ao acaso, mas com um tal espírito de continuidade que dele se não desviou uma só vez. Kutuzov, não graças a um esforço de raciocínio ou mercê dos seus conhecimentos militares, mas instintivamente, com todas as fibras do seu ser, sentia que todos os seus soldados acreditavam na derrota dos Franceses, que o inimigo fugia e que era necessário reconduzi-lo. Ao mesmo tempo, porém, tanto ele como os seus homens, davam-se conta do fardo que representava esta campanha inaudita na sua rapidez e na estação do ano em que se realizava.
Quanto aos generais, sobretudo os que não eram russos, e não queriam outra coisa senão distinguir-se, provocar surpresa, aprisionar um duque ou um rei, esses eram de opinião de que, para travar batalha e vencer, o movimento era preciso. E nada teria sido mais absurdo e mais culpável.
Kutuzov limitava-se a encolher os ombros quando general após general lhe vinham apresentar os seus planos de movimentos com soldados mal calçados, sem roupas quentes e esfomeados.
Num mês, sem travar batalha, o exército russo perdera metade dos seus efectivos, e nas condições mais favoráveis ainda tinha de percorrer até à fronteira uma distancia maior do que a que percorrera já. Esta ânsia de se distinguirem, de manobrarem, de esmagarem ou cortarem a retirada ao inimigo, manifestava-se sobretudo sempre que os Russos vinham a encontrar-se na presença do exército francês.
Assim aconteceu em Krasnoie, onde julgaram ter pela frente uma das três colunas francesas e onde vieram a defrontar o próprio Napoleão e dezasseis mil homens. Apesar de todos os esforços de Kutuzov para evitar um conflito funesto e poupar os seus homens, as tropas russas extenuadas levaram três dias a aniquilar os bandos franceses.
Toll redigiu o dispositivo: «die erste Kolonne marschirt» (Em alemão no texto original «A primeira coluna marcha, etc.». (N dos T.), etc., E, como sempre, nada se fez segundo o dispositivo.
O príncipe Eugénio de Wurtemberg fuzilava do alto de um monte os franceses que fugiam e pedia reforços, que nunca chegaram. Os Franceses, iludindo os Russos, durante a noite, espalharam-se, esconderam-se nas florestas e acabaram por escapar-se-lhes.
Milarodovitch, que dizia não querer saber das necessidades materiais do seu destacamento, e nunca ninguém encontrava onde era preciso, esse «cavaleiro sem medo e sem mácula», como se cognominava a si mesmo, esse amador de entendimentos com os Franceses, enviou-lhes parlamentários com a intimação de se renderem, perdeu o seu tempo e acabou por fazer, precisamente, que lhe não tinham ordenado.
- Rapazes, ofereço-vos esta coluna - dizia ele para os seus soldados de cavalaria, mostrando-lhes os Franceses.
E a cavalaria, em cima de cavalos que mal se podiam mexer, instigados à força de espora e sabre, marchou a trote curto, penosamente, sobre a coluna que ele lhe oferecia, isto é, sobre um bando de homens mortos de fome e enregelados. E a coluna, lançando fora as suas armas, fez o que há muito desejava: rendeu-se.
Em Krasnoie fizeram vinte e seis mil prisioneiros, tomaram centenas de canhões e um bastão, que se dizia ser de marechal, houve discussões sobre quem mais se distinguira, e sentiram-se contentes com isso, lamentando muito, todavia, não terem capturado Napoleão ou outro qualquer herói, um marechal, por exemplo, e disso se acusaram uns aos outros, responsabilizando sobretudo Kutuzov.
Estes homens, que só davam ouvidos às suas próprias paixões, não passavam de cegos instrumentos de uma triste e inexorável fatalidade. Mas estavam convencidos de que eram heróis e julgavam cumprir a mais bela e a mais nobre das missões.
Acusavam Kutuzov e diziam que desde que a campanha principiara não fizera outra coisa senão impedi-los de vencer Napoleão, que apenas pensava em satisfazer as suas paixões e não queria abandonar as suas «casas de pano», pois só aí se sentia em sossego: que em Krasnoie detivera o exército, pois, ao saber da presença de Napoleão, perdera por completo a cabeça; que estava em contacto com ele e que fora comprado pelo imperador dos Franceses, etc. (Memórias de Wilson. (Nota de Tolstoi).
Não só os contemporâneos, cegos de paixão, falaram assim. A posteridade proclamou Napoleão grande e os historiadores estrangeiros disseram que Kutuzov era um velho cortesão, débil, manhoso e corrupto. E os Russos, esses, pintaram-no como uma criatura indefinível, espécie de palhaço, apenas útil em determinado momento, graças ao seu nome essencialmente eslavo.
Durante os anos de 1812 e 1813, Kutuzov foi francamente acusado pelos seus erros. O imperador estava descontente com ele.
Uma história escrita nessa altura dizia que ele era um cortesão lisonjeador e embusteiro, que tremia só de ouvir o nome de Napoleão e, mercê dos erros que cometera em Krasnoie e no Beresina, privara o exército russo de obter uma completa vitória sobre os Franceses (História do Ano 1812, por Bogdanovitch; retrato de Kutuzov e dissertações sobre os resultados insuficientes da batalha de Krasnoie. (Nota de Tolstoi).
Tal é o destino dos homens superiores que não se atribuem a si próprios o título de «grandes homens», tão contrário ao temperamento russo, dessas raras e únicas personalidades que, interpretando os desígnios da Providência, a ela submetem os seus próprios.
O ódio e o desprezo da multidão castigam estes homens por haverem previsto leis superiores. Para os historiadores russos, por estranho e penoso que isso pareça, Napoleão, esse insignificante instrumento da história, que nunca e em circunstância alguma, nem mesmo no exílio, deu provas de dignidade humana, esse Napoleão é motivo de entusiasmo e exaltações: é grande.
Kutuzov, pelo contrário, ele, que desde o começo, em 1812, até ao fim da sua acção, de Borodino a Vilna, nem uma só vez se contradisse por palavras ou actos, esse homem, que é o exemplo mais notável da história de sacrifício e clarividência do futuro na realidade presente, Kutuzov, aos olhos deles, não passa de qualquer coisa de indefinível e lamentável e parece quase sempre envergonhado de falar de si próprio e dos acontecimentos em que participou. E no entanto é difícil conceber uma personagem histórica cujos actos tenham sido dirigidos com maior perseverança para um só e único fim.
É difícil imaginar escopo mais nobre e mais de acordo com a vontade de todo um povo. E ainda é mais difícil encontrar na história um objectivo de antemão assinalado que haja sido mais completamente realizado que aquele que se propôs Kutuzov em 1812.
Kutuzov nunca falou dos «quarenta séculos que nos contemplam do alto das Pirâmides», dos sacrifícios que fez pela pátria, do que tencionava fazer ou do que realizou; nunca falou propriamente de si próprio, nunca se propôs representar um papel. Sempre teve o aspecto do homem mais simples e mais comum, dizendo as coisas mais simples e mais banais.
Escrevia às filhas e a Madame de Staël, lia romances, gostava do convívio das mulheres bonitas, gracejava com os generais, os oficiais e os soldados, e nunca desmentia as pessoas que lhe queriam provar fosse o que fosse.
Quando Rostoptchine, na ponte de Iauza, lhe veio fazer censuras pessoais, acusando-o de responsável pela perda de Moscovo e declarando-lhe: «Pois quê, o senhor prometera entregar a cidade sem combate?», ele respondeu-lhe: «Mas não a entregarei sem combate!», quando é certo que a cidade a essa hora já caíra nas mãos dos Franceses.
Quando, tendo-o procurado em nome do imperador, Araktcheiev lhe disse ser preciso nomear Ermolov para o comando da artilharia, ele respondeu-lhe: «Sim, era precisamente isso que eu dizia», embora momentos antes tivesse dito exactamente o contrário. Que lhe importava a ele, a única pessoa no meio daquela gente absurda que o cercava que compreendia então o sentido formidável dos acontecimentos, que lhe importava que a infeliz sorte da capital fosse atribuída a Rostoptchine ou a ele próprio? E se isso lhe não importava, como lhe havia de importar o nome do comandante da artilharia? Não só nestes casos, mas constantemente, este velho, que adquirira, pela sua experiência da vida, a convicção de que tudo quanto se possa pensar ou dizer está longe de influir na direcção dos homens, apenas dizia palavras insignificantes, as primeiras que lhe vinham à cabeça.
Contudo este homem, que tão pouca importância atribuía às suas palavras, nunca em toda a sua vida activa pronunciou uma palavra que não tivesse em vista o objectivo único que se propusera no decurso de toda a guerra.
No entanto, involuntariamente, é certo, apesar de ter a certeza, bem triste, de que o não compreenderiam, mais de uma vez, em circunstâncias muito diferentes, exprimiu o fundo do seu pensamento.
Não foi ele, depois da batalha de Borodino, causa inicial das dissensões com os homens que o rodeavam, o único a exprimir a opinião de que aquela batalha constituía uma vitória, opinião que repetiu tanto oralmente como nos seus relatórios e até nos seus relatos, até à sua derradeira hora?
Só ele também se atreveu a dizer que a perda de Moscovo não era a perda da Rússia.
Na sua resposta a Lauriston, que pedia a paz, não é certo ter afirmado que a paz não era possível porque o povo a não queria?
Não foi ele o único, durante a retirada dos Franceses, que garantiu que os movimentos russos eram inúteis, que as coisas se arranjariam por si melhor do que o que se podia desejar, que ao inimigo que foge «ponte de ouro», que não tinham sido necessários nem o combate de Tarutino nem os de Viazma ou de Krasnoie, que era preciso atingir a fronteira com forças suficientes, que não daria um soldado russo por dez franceses?
E foi só ele, esse homem que nos pintam como se fosse um cortesão, e que dizem ter mentido a Araktcheiev para agradar ao imperador, foi ele quem ousou, em Vilna, sabendo que desagradava ao seu monarca, afirmar que a continuação da guerra para lá da fronteira seria prejudicial e sem sentido.
Não disse estas palavras apenas para provar que compreendia muitíssimo bem o sentido dos acontecimentos. Os seus actos, todos, sem excepção alguma, visaram este tríplice objectivo: concentrar todas as suas forças no intuito de fazer frente aos Franceses, vencer o, inimigo e por fim expulsá-lo da Rússia, minorando quanto possível os sofrimentos do povo e do exército.
Só ele, Kutuzov, o contemporizador, cujo lema era: «Paciência e Tempo», só ele, o inimigo dos actos decisivos, trava a batalha de Borodino dando aos preparativos dela uma solenidade sem exemplo.
Esse Kutuzov, que em Austerlitz previra que a batalha seria perdida em Borodino, a despeito da opinião dos generais que afirmavam certa a derrota, a despeito do exemplo único na história de um exército vitorioso que abandona o campo de batalha, afirma, só e até à morte, contra a opinião de todo o mundo, que essa batalha constitui uma vitória.
Só ele, enquanto dura a retirada, insiste para que se não travem novos combates, que eram inúteis, sustentando que se não devia começar nova guerra, nem atravessar a fronteira.
Hoje, desde que se ponham de lado todos esses objectivos que só um reduzido número de homens concebia, é fácil darmo-nos conta dos acontecimentos, pois estão a ver-se agora todas as suas consequências. Mas como é que esse velho, sozinho contra a opinião de todos os outros, pôde adivinhar tão bem o instinto popular na inteligência dos factos que nunca o atraiçoou?
Essa extraordinária clarividência tinha a sua fonte no sentimento patriótico que nele vibrava em toda a sua força e em toda a sua pureza.
O povo, por estranhas vias, soube reconhecer naquele homem esse sentimento intenso e escolher esse velho, então do desagrado do monarca, contra a vontade do czar, para que fosse ele a, conduzir a guerra patriótica. E só esse sentimento o colocou em tal altura moral e fez que, generalíssimo, empregasse todos os seus esforços, não para que fossem mortos e exterminados os seus homens, mas salvos e poupados. Esta figura simples, modesta e por conseguinte magna figura, não podia amoldar-se à forma mentirosa do herói europeu, pseudo-dominador dos povos, que a história imaginou.
Não há grandes homens para o seu criado de quarto, porque o criado de quarto tem a sua maneira pessoal de compreender a grandeza.
O dia 5 de Novembro foi o primeiro dia da batalha conhecida pela «batalha de Krasnoie».
Para a noite, depois de muitos debates e de falsas manobras dos generais, após numerosas expedições de ajudantes-de-campo portadores de ordens contraditórias, quando se tornou evidente que o inimigo fugia por todos os lados e que era impossível travar batalha, Kutuzov seguiu de Krasnoie para Dobroie, para onde fora transferido, durante o dia, o quartel-general. Fazia um tempo claro e frio.
Kutuzov, seguido de uma imponente comitiva de generais, que em voz baixa exprimiam o seu descontentamento, dirigia-se para Dobroie, montado no seu bem nutrido cavalo branco. Ao longo da estrada, em volta das fogueiras, juntavam-se os prisioneiros franceses capturados durante o dia, num total de sete mil. A pequena distância da aldeia, um grande grupo desses prisioneiros esfarrapados, embrulhados nos primeiros trapos que tinham encontrado à mão, falava em tom elevado, junto de uma longa fila de peças francesas desatreladas.
Quando o general-chefe se aproximou, as conversas cessaram e todos os olhares convergiram para Kutuzov, que, com um gorro branco de rebordos vermelhos, embrulhado numa capa almofadada, caminhava lentamente, as costas vergadas e esbarrondado sobre o cavalo. Um general ia-lhe explicando onde tinham sido apreendidas as peças e capturados os prisioneiros.
Kutuzov, preocupado, não ouvia o que lhe diziam. Piscava o seu único olho com uma expressão descontente e observava os prisioneiros, de aspecto particularmente lamentável. A maior parte deles tinham as faces e o nariz gelados e os olhos vermelhos, inchados e lacrimosos. Um grupo encontrava-se mesmo junto do caminho, e dois soldados, um dos quais com a cara cheia de pústulas, rasgavam à mão um pedaço de carne crua. No olhar furtivo que lançaram aos generais havia qualquer coisa de terrível e bestial e o soldado do rosto em ferida teve uma expressão feroz quando viu Kutuzov, voltando-se em seguida e continuando a sua tarefa. O general-chefe contemplou por algum tempo esses dois soldados. Com uma expressão cada vez mais preocupada, abanava pensativamente a cabeça. Noutro ponto reparou num soldado russo que, rindo e batendo familiarmente no ombro de um francês, lhe falava amistosamente, Kutuzov teve idêntico abanar de cabeça.
- Que estás tu a dizer? - perguntou ele ao general que continuava a fazer o seu relatório, procurando chamar-lhe a atenção para as bandeiras francesas capturadas que, hasteadas, se encontravam diante do regimento Preobrajenski.
- Ah! As bandeiras! - exclamou Kutuzov, arrancando-se, penosamente, ao curso das suas reflexões.
E lançou à sua roda um olhar distraído. Milhares de olhos, à sua volta, se fixaram nele, aguardando o que ele ia dizer.
Diante do regimento Preobrajenski parou, soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Alguém da comitiva fez sinal aos soldados que empunhavam as bandeiras para que se aproximassem e estes agruparam-se em volta do general-chefe, empunhando os estandartes.
Kutuzov esteve calado alguns instantes, e, sem grande prazer, apenas como se se submetesse às circunstâncias, ergueu a cabeça e pôs-se a falar. A chusma dos oficiais envolveu-o. Kutuzov percorreu-os atentamente com o olhar, reconhecendo alguns.
- Agradeço-vos a todos! - disse, primeiro virado para os soldados e depois para os oficiais. E no silêncio que reinava as suas palavras destacavam-se nitidamente.
- Agradeço-vos o vosso penoso e fiel serviço. A vitória é completa e a Rússia não vos esquecerá. Que a glória seja convosco para sempre! Calou-se e olhou em volta de si.
- Abaixa-lhe, abaixa-lhe a cabeça! - gritou ele a um soldado que inclinava, sem querer, a águia francesa diante da bandeira do regimento Preobrajenski.
- Mais, mais para baixo, assim. Hurra!, rapazes! - gritou, dirigindo-se aos soldados com uma contracção nervosa do queixo.
- Hurra! Hurra! - rugiram milhares de vozes. Enquanto os soldados gritavam, ele, debruçado sobre a sela, inclinava a cabeça, e pelo seu único olho perpassou-lhe um lampejo ligeiramente trocista.
- Ouçam-me, rapazes - principiou, quando as vozes se calaram. E de súbito a sua voz e a expressão do rosto mudaram por completo. Já não era o general quem falava, mas um velho, simplesmente, que queria agora comunicar coisas urgentes aos seus camaradas. Houve uma agitação no meio dos oficiais e nas fileiras dos soldados, todos tentando ouvir o melhor possível o que ele ia dizer. - Ouçam, rapazes. Eu bem sei que é duro, mas que havemos de fazer? Tenham paciência. Já não é por muito tempo. Vamos acompanhar os nossos hóspedes e depois toca a descansar.
O czar não esquecerá os vossos serviços. É duro, mas, seja como for, vocês estão naquilo que vos pertence: em vossa casa. Mas esses, olhem para eles, onde estão eles? - acrescentou, apontando para os prisioneiros. - Estão em pior estado que os mais miseráveis bandidos. Quando eram poderosos, não tínhamos que nos compadecer deles, mas agora também os podemos lamentar. São homens como nós. Não é verdade, rapazes?
Kutuzov olhou à sua volta, e em todos os olhares atentos, respeitosamente interrogadores, fixados nele, havia simpatia pelas suas palavras. O rosto cada vez se lhe iluminava mais do seu bom sorriso de velho, que lhe abria estrelas de rugas nas comissuras dos lábios e no canto dos olhos. Calou-se e baixou a cabeça: dir-se-ia irresoluto.
- Mas, para falar verdade, quem os mandou cá vir? É bem feito, com mil bombas! - disse, de súbito, erguendo a cabeça. Brandindo o látego, abalou a galope, pela primeira vez em toda a campanha, no meio dos risos e dos hurras alegres dos soldados, que principiavam a destroçar.
Evidentemente que nem todos os soldados tinham compreendido as palavras de Kutuzov. Ninguém seria capaz de repetir textualmente este discurso, solene no princípio e de uma simplicidade cheia de bonomia nas suas últimas frases. A verdade, porém, é que o seu sentido íntimo não só foi bem compreendido, mas chegou ao fundo da alma dos soldados.
Esses sentimentos de grandeza majestosa aliados à piedade para com o inimigo e à consciência de que a razão estava do seu lado, expressos na imprecação característica do velho, correspondiam ao que eles próprios sentiam, Essa a razão por que soltaram prolongadas e alegres aclamações. Quando em seguida um dos generais veio perguntar ao generalíssimo se ele queria seguir de carruagem, Kutuzov respondeu-lhe com um soluço, tão viva era a emoção que, sentia.
A 8 de Novembro, último dia dos combates de Krasnoie, já era noite quando as tropas chegaram aos bivaques.
O dia fora tranquilo, frio e com alguns raros flocos de neve que esvoaçavam pelo ar. Para a noite o tempo clareou: através da neve ligeira surgiu um céu estrelado, negro-violeta, e o frio tornou-se mais vivo.
O regimento de fuzileiros, que partira de Tarutino com três mil homens e estava agora reduzido a novecentos, foi um dos primeiros a chegar ao ponto indicado, uma aldeia situada na estrada real. Os forrageiros que tinham saído ao seu encontro declararam que todas as isbás estavam ocupadas por doentes ou cadáveres de franceses, a cavalaria e o estado-maior. Apenas restava uma para o comandante do regimento.
Este último dirigiu-se à isbá devoluta. O regimento atravessou a povoação e ensarilhou armas nas últimas casas à beira da estrada.
Como um grande animal de muitos braços, o regimento pôs-se a organizar o seu alojamento e a tratar do rancho. Parte dos soldados, com neve até aos joelhos, dispersou-se pela mata de álamos(…) lenha para as fogueiras(…)Tocou a recolher, fez-se a chamada, os homens cearam e aninharam-se para a noite diante das fogueiras, uns remendando as botas, outros fumando cachimbo, outros despindo-se para catar os piolhos.
Dir-se-ia que nas condições extremamente penosas em que se encontravam naquele momento os soldados russos, sem botas de Inverno nem peliças e acampando a céu aberto, com temperaturas de dezoito graus abaixo de zero, sem mesmo saberem o que era rancho regulamentar, pois a pitança nem sempre chegava a horas, deviam oferecer o mais lamentável e o mais desolador dos espectáculos.
E no entanto nunca os soldados tinham estado tão alegres e animados, nem mesmo durante a época em que se encontravam em situação material mais favorável. E isto explica-se, pois, à medida que o tempo ia passando, do meio deles desaparecia tudo quanto era tristeza e fraqueza. Todos os que se haviam debilitado física ou moralmente ficavam para trás. O que estava ali agora era a fina flor do exército, do ponto de vista moral e do vigor físico.
As tropas francesas continuavam a decompor-se regularmente segundo uma progressão matemática. A travessia do Beresina, sobre que se escreveu tanta coisa, não foi mais que um incidente intercalar na obra de destruição e de modo algum um episódio decisivo da campanha. Se muito se escreveu, se ainda continua a escrever-se a este respeito, é que, do lado francês, esta ponte, que foi pelos ares, sintetizava, por assim dizer, as desgraças, até aí mais ou menos iguais umas às outras, experimentadas pelo exército francês, num espectáculo trágico, que para sempre ficou na memória de todos. Se os Russos, pela sua parte, muito comentaram este caso, é porque, longe do teatro da guerra, em Petersburgo, um plano estabelecido por Pfuhl previra a ratoeira estratégica do Beresina. Ali toda a gente estava, convencida de que na realidade tudo se passaria como estava previsto no plano e por isso mesmo atribuíram à passagem do rio a perda dos Franceses. A verdade, porém é que as consequências foram muito menos desastrosas para eles, em homens e canhões, que as de Krasnoie, por exemplo, como se pode provar com algarismos.
O caso do Beresina só numa coisa é importante: em ter demonstrado de maneira evidente e incontestável que todos os planos para cortar a retirada ao inimigo eram errados e que a única coisa sensata era o que exigia Kutuzov e a massa das tropas, isto é, que se seguisse o inimigo de perto.
Os Franceses fugiam cada vez mais depressa, não pensando noutra coisa senão em chegar onde queriam. Fugiam como um animal ferido e não lhes era possível deterem-se no caminho. E isso ficou bem demonstrado menos pela própria organização da travessia do no que pela passagem das pontes. As pontes tinham ido pelos ares, e toda aquela gente, soldados desarmados, habitantes de Moscovo, mulheres e crianças que acompanhavam as bagagens dos Franceses, graças à velocidade adquirida, em vez de se resignar a esperar, precipitou-se para a frente, para dentro das barcas, e para cima das águas geladas.
Compreendia-se esta precipitação. Tão má era a situação dos que fugiam como a dos que os perseguiam. Conservando-se ao lado dos seus, na sua desgraça, cada um esperava o auxílio do camarada, tinha o seu lugar entre eles. Se se entregassem aos Russos, era para continuarem na mesma desgraçada situação, passando a ser contados entre os últimos com direito a receber mantimentos.
Os Franceses não precisavam de informações precisas para saberem que metade dos prisioneiros nas mãos dos Russos - e o certo é que estes não sabiam que destino dar-lhes, por mais que quisessem salvá-los - morriam de fome e de frio. Pressentiam que assim tinha de ser.
Os chefes russos mais compassivos e que mais simpatias tinham pelos Franceses, os próprios franceses ao serviço dos Russos, nada podiam fazer pelos prisioneiros. A má situação em que se encontrava o exército russo concorria para a perdição dos Franceses. Era impossível tirar pão e roupa a soldados esfomeados e cheios de privações para dá-los aos Franceses, evidentemente inofensivos, nem sequer hostis ou culpados, simplesmente inúteis. Alguns o fizeram, mas só excepcionalmente.
Voltar para trás era a perdição certa: avançar, a esperança.
Tinham-se queimado as embarcações, só havia uma salvação, a fuga em comum, e todas as forças francesas tendiam para essa meta.
Quanto mais demorada era a retirada, mais lamentável o aspecto que ofereciam os restos do exército francês, sobretudo depois do Beresina, que fizera nascer, graças ao plano de Petersburgo, esperanças particulares, e mais se exasperavam as paixões dos chefes russos, que se culpavam uns aos outros e principalmente Kutuzov. Diziam que ele seria chamado à responsabilidade pelo malogro do plano do Beresina estabelecido em Petersburgo, o que tornava maior o descontentamento, o desdém e a troça que ele inspirava. Claro que tanto a troça, como as provas de desconsideração exprimiam-se de uma forma respeitosa, e de tal sorte que o próprio interessado nem sequer podia perguntar de que o acusavam.
Não lhe falavam a sério; quando lhe apresentavam qualquer informação ou lhe pediam uma decisão, dir-se-ia cumprirem uma cerimónia fúnebre. Por detrás das suas costas piscavam o olho uns aos outros e faziam o que podiam para o enganar. Todos aqueles homens, precisamente porque o não podiam compreender, estavam convencidos de que era inútil discutir com semelhante velho, incapaz de entender jamais a profundidade dos seus planos, o qual sempre lhes respondia com uma das suas frases, para eles frases apenas, como a da «ponte de ouro» e que não era possível chegar à fronteira com aqueles bandos de esfarrapados, e coisas no mesmo género. Há muito que lhe conheciam semelhante estribilho.
Tudo quanto ele dizia: que era preciso esperar pelos mantimentos, que os homens não tinham botas para calçar, tudo era de uma simplicidade infantil, enquanto eles propunham coisas complicadíssimas e sábias. E daí tornar-se evidente que Kutuzov não passava de um velho imbecil enquanto eles, cabos-de-guerra geniais, ali estavam sem poderes para realizar o que congeminavam.
Depois da junção do exército de Kutuzov com o do preclaro almirante Wittgenstein, herói de Petersburgo, todas essas malévolas disposições e todas essas intrigas do estado-maior se agravaram ainda mais. Kutuzov, ao dar por isso, limitava-se a despedir um suspiro e a encolher os ombros. Só uma vez, depois do Beresina, se zangou e escreveu a Bennigsen, o autor das informações particulares enviadas ao imperador, a carta seguinte:
Rogo a Vossa Excelência que, ao receber esta carta, se apresente em Kaluga, em virtude do seu estado de saúde pouco satisfatório, onde aguardará ordens ulteriores de Sua Majestade Imperial.
Como resultado do afastamento de Bennigsen, o grão-duque Constantino Pavlovitch, que havia tomado parte na primeira fase da campanha e fora afastado por Kutuzov, foi reintegrado no exército. Ao chegar informou o general-chefe de que o czar estava muito descontente com os ligeiros êxitos das tropas russas e a lentidão dos seus movimentos e anunciou-lhe que o imperador tinha a intenção de visitar pessoalmente, o exército.
Kutuzov, esse velho, tão experimentado cortesão quão bom militar, que em Agosto desse ano fora nomeado generalíssimo contra a vontade do imperador, que determinara o abandono de Moscovo, esse homem compreendeu imediatamente que a sua hora tinha soado, que o seu papel acabara e que os supostos poderes que ainda lhe pertenciam lhe iam ser retirados. E não só como cortesão compreendia que assim era. Percebia que a acção militar em que desempenhara o seu papel estava no fim, que a sua missão terminara. Por outro lado, principiava ao mesmo tempo a sentir que o corpo, quebrado pela idade, cansado, pedia descanso.
No dia 29 de Novembro, Kutuzov entrou em Vilna, na sua querida Vilna, como ele dizia. Duas vezes na sua carreira fora governador da cidade. Na rica Vilna, que se conservava intacta, além das comodidades de que por tanto tempo estivera privado, encontrava velhos amigos e boas recordações. Liberto, de súbito, de todas as preocupações oficiais e militares, entregou-se a uma vida regular e tranquila, na medida em que o permitiam as paixões que germinavam à sua roda, como se tudo que se estivesse a passar naquele momento, e que ainda tinha de se cumprir como acontecimento histórico, lhe fosse de todo indiferente.
Tchitchagov um dos mais ardorosos partidários da ideia de se cercarem e derrotarem os Franceses, que a princípio quisera levar a cabo uma diversão militar na Grécia, e depois em Varsóvia, mas que nunca se apresentava onde o mandavam, esse homem célebre pela ousadia com que falara ao imperador, que ao mesmo se considerava protector de Kutuzov, pois, quando se fora à Turquia, em 1811, incumbido da missão de concluir a paz, ao saber que a paz já fora concluída, dissera ao imperador que o mérito de tal missão pertencia a Kutuzov - Tchitchagov foi o primeiro a receber o generalíssimo junto do castelo de Vilna, onde este devia hospedar-se.
Com o seu uniforme de marinheiro, de espada à cinta, o chapéu debaixo do braço, apresentou a Kutuzov o seu relatório sobre o estado da guarnição e as chaves da cidade. A deferência um tanto desdenhosa que a juventude testemunhava a um velho que ela entendia chegado à segunda meninice traduzia-se no mais alto grau na maneira de agir de Tchitchagov, ao corrente das acusações que faziam ao generalíssimo.
Na conversa que teve com ele, Kutuzov dissera-lhe, entre outras coisas, que as suas bagagens tomadas em Borissov, com toda a sua baixela, estavam intactas e lhe iam ser entregues.
- É para me dizer que eu não tenho que comer... Estou habilitado, pelo contrário, a fornecer-lhe seja o que for, mesmo que pretenda oferecer banquetes - respondeu-lhe Tchitchagov acaloradamente.
Queria mostrar-se importante em cada uma das palavras que dizia e estava persuadido de que essa era a intenção do seu interlocutor.
Kutuzov teve um sorriso fino e penetrante e respondeu encolhendo os ombros:
- É apenas para lhe dizer o que lhe estou a dizer.
Ao contrário do que o imperador queria, o generalíssimo mandou que se detivesse em Vilna a maior parte das suas tropas.
Na opinião das pessoas que o rodeavam, decaíra muito fisicamente durante a sua permanência nesta cidade. Só muito ao de leve se preocupava com os assuntos militares, deixando que os generais fizessem tudo, e enquanto aguardava a chegada, do imperador entregava-se ao prazer.
Tendo saído de Petersburgo com a sua comitiva no dia 7 de Dezembro - o conde Tolstoi, o príncipe Volkonski, Araktcheiev e outros - o imperador chegou a Vilna no dia 11, dirigindo-se imediatamente ao castelo no seu trenó de viagem.
Apesar do frio que fazia, esperavam-no, cá fora, uma centena de generais e de oficiais do estado-maior, de uniforme de gala, bem como uma guarda de honra do regimento Semionovski. O correio que precedia o czar chegou ao castelo, numa troika, coberto de suor, e gritou:
- O imperador!
Konovnitsine precipitou-se no vestíbulo para advertir Kutuzov, que esperava no compartimento do porteiro. Um minuto depois, Kutuzov, no seu uniforme de gala, com todas as condecorações e cobrindo-lhe o peito por completo, uma faixa a apertar-lhe o ventre, surgia no alpendre em passos titubeantes. Cobriu a cabeça, como se estivesse a comandar o exército, pegou nas luvas, desceu com dificuldade os degraus do alpendre e pegou no relatório que ia ser apresentado ao czar.
Um grande alarido se ouviu, uma troika passou vertiginosa a toda a gente fixou os olhos no trenó que chegava, a galope, onde se destacavam as silhuetas do imperador e de Volkonski. Apesar de mais de cinquenta anos de experiência, esta chegada não deixou de impressionar, como sempre, o velho general. Apalpou-se, febrilmente, à pressa, ajeitou o gorro e as condecorações, enquanto o imperador, apeando-se do trenó, erguia para ele os olhos. Depois apresentou-lhe o relatório, dominando a emoção que o tomava, sem perder o aprumo militar, e pôs-se a falar numa voz comedida e insinuante.
O imperador olhou-o rapidamente da cabeça aos pés, franziu as sobrancelhas por segundos, mas, dominando-se imediatamente, aproximou-se e, de braços abertos, apertou-o contra o peito. Esta atitude do imperador, acordando-lhe velhas impressões e pensamentos íntimos, produziu em Kutuzov o efeito habitual: rompeu em soluços.
O imperador saudou os oficiais, a guarda de honra do Semionovski e, apertando mais uma vez a mão do generalíssimo, penetrou com ele no castelo.
Quando ficou só com o marechal exprimiu-lhe o seu descontentamento por causa da morosidade na perseguição dos Franceses, dos erros cometidos em Krasnoie e no Beresina e pô-lo ao corrente dos seus planos sobre a futura campanha no estrangeiro. Kutuzov não fez a mais pequena observação nem teve o mais pequeno comentário. No seu rosto havia a mesma expressão submissa de sete anos antes, ao receber as ordens do soberano no campo de batalha de Austerlitz.
Quando, no seu andar pesado e cambaleante, saiu do gabinete do imperador e, de cabeça baixa, atravessou o salão, uma voz deteve-o.
- Sereníssimo! - dizia-lhe alguém.
Kutuzov ergueu a cabeça e ficou a olhar por muito tempo o conde Tolstoi, que estava diante dele, com um minúsculo objecto dentro de uma salva de prata. Dir-se-ia não compreender o que queriam dele. De súbito pareceu recordar-se, um sorriso imperceptível lhe perpassou pelo rosto entumecido, e, inclinando-se respeitosamente, numa grande vénia, pegou no objecto que estava na salva. Era a cruz de S. Jorge de 1ª classe.
No dia seguinte, o marechal ofereceu um jantar seguido de baile, que o imperador honrou com a sua presença. Kutuzov recebia a cruz de S. Jorge de 1ª classe; o imperador prestava-lhe as maiores honras; mas o descontentamento do soberano não era segredo para ninguém. Tinham-se respeitado as conveniências e ele fora o primeiro a dar o exemplo. Mas toda a gente sabia que o velho era culpado e já para nada prestava. Como Kutuzov ordenasse, de acordo com um velho costume dos tempos de Catarina, que no momento em que o imperador entrasse na sala de baile lhe depusessem aos pés os estandartes tomados ao inimigo, o soberano, descontente, franziu o sobrolho e pronunciou algumas palavras, onde alguns julgaram surpreender esta frase: «Velho comediante! »
O descontentamento do czar ainda se tornou mais evidente durante a permanência em Vilna quando verificou que Kutuzov não queria ou não podia compreender a utilidade da campanha projectada. No dia seguinte ao da sua chegada, o imperador dissera aos oficiais reunidos à sua volta:
- Os senhores não salvaram apenas a Rússia, os senhores salvaram a Europa.
- E então todos compreenderam que a guerra não findara.
Só Kutuzov não podia compreender e dizia a quem o queria ouvir que uma nova guerra não melhoraria a situação nem aumentaria a glória da Rússia, mas, muito pelo contrário, concorreria para piorar e diminuir o alto prestígio de que o país então desfrutava, segundo ele. Esforçava-se por demonstrar ao imperador a impossibilidade de convocar mais tropas, aludindo ao penoso estado das populações, à possibilidade de qualquer malogro, etc. Era evidente que, numa tal disposição de espírito Kutuzov não podia deixar de constituir um empecilho para a guerra prevista.
Para evitar qualquer conflito com o velho, acharam perfeitamente natural uma escapatória, como se fizera com Barclay aquando de Austerlitz e no começo da campanha: retirar o poder ao generalíssimo para o confiar ao próprio imperador, sem ruído nem inúteis explicações. Nessa intenção, procedeu-se, pouco a pouco, a uma reorganização do estado-maior e todo o poder efectivo de Kutuzov foi suprimido e transmitido ao imperador.
Toll, Konovnitsine, Ermolov, foram encarregados de outras missões.
Dizia-se abertamente que o marechal estava muito enfraquecido e de saúde abalada.
Era preciso, realmente, que a sua saúde estivesse muito abalada para transmitir as suas funções àquele que o devia substituir. E de facto estava enfermo. Tal como viera outrora da Turquia, o mais natural e simplesmente que é possível, a fim de reunir a milícia em Petersburgo e depois colocar-se à frente do exército no momento em que era indispensável, agora, o mais natural e simplesmente, e da mesma forma progressiva, terminado o seu papel, substituíam-no por uma nova engrenagem, a engrenagem que a situação requeria.
A guerra de 1812 não devia conservar o seu carácter estritamente russo de guerra patriótica, mas assumir outro, tornar-se uma guerra europeia. Depois da marcha dos povos do Ocidente para o Oriente, devia verificar-se uma, marcha do Oriente para o Ocidente, e para levar a cabo esta nova guerra era necessário um homem novo, dotado de qualidades que Kutuzov não tinha, com outras vistas, outros objectivos. Para realizar esta marcha dos povos em sentido inverso e restabelecer as fronteiras, Alexandre I, eis o homem indispensável, tão indispensável quanto o fora Kutuzov para salvação e glória da Rússia.
Kutuzov era refractário a estas noções: Europa, equilíbrio, Napoleão. Não podia entendê-las. O representante do povo russo, esse russo, enquanto russo, já nada tinha a fazer naquela hora em que o inimigo estava esmagado e a Rússia liberta e no pináculo da glória. O representante da guerra patriótica só tinha agora um caminho a seguir: morrer. E assim o fez.
Outrora procurava Deus nas missões que a si próprio se impunha. Quando procurava um objectivo para a vida, era Deus que no fim de contas procurava. E de repente, durante o cativeiro, descobrira, não por meio de palavras ou raciocínios, mas graças a uma espécie de íntima revelação, o que a sua velha ama tantas vezes lhe dissera: «Deus está em toda a parte.» No cativeiro aprendera que Deus era bem maior, mais infinito, mais inacessível que o Grande Arquitecto do Universo dos franco-mações. Dir-se-ia que achara a seus pés o que andava buscando muito longe de si. Toda a sua vida pusera os olhos lá longe, por cima da cabeça da multidão, quando não tinha mais que olhar para diante de si. Até então não conseguia descobrir em parte alguma o inacessível, o grande, o infinito. Apenas sentia que o infinito existia algures e procurava-o. Em tudo o que o rodeava, em tudo o que lhe era dado compreender, só via interesses acanhados, mesquinhos, absurdos, os interesses que a vida nos revela. E armava-se de uma espécie de óculo moral para olhar ao longe, para onde esses interesses mesquinhos, essas pequenas coisas exteriores, escondidas na névoa da distância, se lhe afiguravam como que revestidas de grandeza, verdadeiras imagens do infinito, pela simples razão de que as não via com nitidez. Assim se lhe entremostrava a vida europeia, a política, a maçonaria, a filosofia, a filantropia. Agora, porém, que se dava conta da sua fraqueza, quando o seu espírito penetrava nessas misteriosas profundezas, era para descobrir aí também essa mesma mesquinhez, esse mesmo absurdo, existentes na vida quotidiana. Agora aprendera a ver o infinito em toda a parte, em tudo, por isso achava perfeitamente natural que para usufruir da contemplação das coisas eternas já não precisasse desse óculo que lhe permitia lobrigar para além dos homens; admirava, à sua volta, com alegria, o espectáculo eternamente mutável, eternamente grande, inacessível e infinito da vida. E quanto mais de perto olhava esse espectáculo mais tranquilo e feliz se sentia. O terrível porquê que outrora fazia ruir todas as construções do seu espírito deixara de existir para ele. Agora essa interrogação angustiosa tinha uma resposta simples. Deus existia, esse Deus - o assentimento do qual nem um só cabelo cairá da cabeça do homem.
O mais astucioso dos homens não teria sido capaz de ganhar a confiança da princesa ainda que evocasse as melhores recordações da sua juventude e lhe falasse comovidamente. A astúcia de Pedro limitou-se a mostrar interesse em acordar sentimentos humanos naquela criatura azeda, seca e orgulhosa.
«Sim, é um homem de bom coração quando não está sob influência de gente má mas de pessoas como eu», dizia ela com os seus botões.
O médico que o tratava e o visitava todos os dias, embora se julgasse na obrigação, como todo o médico que se preza, de se dar ares de quem não tem um minuto a perder, pois o seu tempo é precioso para a humanidade que sofre, passava horas junto dele a contar-lhe as suas anedotas favoritas e a fazer observações sobre a sua clientela em geral e em particular as senhoras.
Não discutia as opiniões do amigo, parecia mesmo estar de acordo com ele, pois de si para consigo dizia que a melhor maneira de evitar discussões sem qualquer resultado era fingir que concordava com ele. E sorria, divertido, enquanto ele falava.
Assim como é difícil explicar as idas e vindas das formigas quando vêem o seu formigueiro arrasado, umas carregando os ovos e os cadáveres e outras voltando ao ninho, tropeçando, perseguindo-se, lutando, também não seria fácil dizer o que impelia os Russos, depois da partida dos Franceses, a agrupar-se naquele local a que outrora se dera o nome de Moscovo. Se se observarem as formigas dispersas em volta do seu formigueiro, compreenderse- á que, apesar da ruína completa do seu lar, mercê da sua tenacidade, da sua energia, da actividade daqueles inumeráveis insectos, tudo perderam, salvo o princípio inabalável e imaterial que constitui a força da sua colónia.
O mesmo acontecia em Moscovo em Outubro. Embora estivesse privada das suas autoridades, das suas igrejas, das suas riquezas, das suas casas, a cidade era a mesma que fora em Agosto. Tudo estava destruído salvo o que nela havia de imaterial, de verdadeiramente pode roso e de indestrutível. Os objectivos que impeliam todos aqueles que, vindos de toda a parte, afluíam a Moscovo depois de evacuada pelo inimigo, eram os mais diversos, e sobretudo pessoais, e principalmente, nos primeiros tempos, de uma natureza bestial e perfeitamente selvagem. Um único sentimento era comum a todos: o desejo de regressar ao local onde fora Moscovo para cada um se entregar à sua própria actividade. Ao fim de uma semana, Moscovo contava já quinze mil habitantes, duas semanas mais tarde tinha vinte e cinco mil e assim por diante. No Outono de 1813, aumentando sempre, a população da cidade atingia um número de almas muito superior ao da população de Moscovo de 1812.
Os primeiros russos que deram entrada em Moscovo foram os cossacos do destacamento Wintzengerode, os mujiques das aldeias vizinhas e os habitantes que tinham fugido, escondendo-se nos arredores. Estes, ao entrarem na cidade em ruínas e encontrando-a a saque, saquearam-na também. Continuaram o que os Franceses tinham principiado. Os mujiques, com as suas carroças, vinham buscar o que se encontrava abandonado nas casas e ao longo das ruas. Os cossacos levaram consigo, para o seu acampamento, o que puderam; os proprietários de imóveis apoderavam-se do que encontravam nas casas alheias e diziam que tudo isso era seu.
Depois dos primeiros saques, vieram outros, e outros ainda, e a pilhagem, à medida que aumentava o número dos salteadores, tornava-se mais difícil e obedecia a normas mais metódicas.
Os Franceses tinham encontrado a cidade abandonada, mas haviam conservado todas as formas de uma administração regular, com o seu comércio, os seus ofícios, as repartições públicas, a religião. A maior parte das vezes tratava-se de corpos sem vida, mas que ainda assim mesmo existiam. Ainda havia galerias comerciais, lojas, armazéns, entrepostos de farinhas, bazares, oficinas, ateliers, geralmente abastecidos de mercadorias; e havia palácios, casas ricas cheias de luxuosos artefactos; havia hospitais, prisões, escritórios, igrejas, catedrais.
À medida que os Franceses foram ficando, todas estas formas de vida urbana desapareciam pouco a pouco e por fim a cidade transformara-se num vasto campo de saqueio. Quanto mais se prolongava o saque dos Franceses tanto mais se esgotavam as riquezas de Moscovo e os recursos dos próprios saqueadores. Pelo contrário, o dos Russos, nos primeiros dias do seu regresso à capital, quanto mais se prolongava tanto maior era o número dos que nele tomavam parte, contribuindo para restabelecer rapidamente a riqueza da cidade e a sua vida regular.
Assim como o sangue aflui ao coração, afluíam a Moscovo, vindos de diversos pontos, além dos saqueadores, pessoas de toda a sorte, atraídas quer pela curiosidade, quer pelo desejo de se tornarem úteis, quer por interesse, proprietários, eclesiásticos, pequenos e grandes funcionários, comerciantes, artesãos, mujiques. Ao cabo de uma semana, os mujiques que entravam na cidade com os seus carros vazios para levarem os objectos que encontravam eram detidos pelas autoridades e obrigados a transportar os mortos para fora da cidade. Outros, ao saberem do que sucedera aos companheiros, trouxeram trigo, aveia, feno, e em virtude da concorrência que faziam uns aos outros, os preços baixaram a um nível inferior ao antigo. Os artels (Associações de trabalho comunitário. (N dos T.) dos carpinteiros, atraídos pelos bons salários, apareciam todos os dias e por toda a parte reconstruíam ou reparavam as casas que tinham ardido. Comerciantes abriam lojas em abarracamentos. Nas ruínas iam-se organizando estalagens, hotéis. O clero restabelecia o serviço religioso em muitas das igrejas que haviam ficado intactas. Donatários traziam alfaias religiosas que haviam sido roubadas. Funcionários instalavam em pequenas divisórias as suas mesas cobertas de pano preto e as suas estantes. As autoridades e a polícia procediam à distribuição dos bens abandonados pelos Franceses. Os proprietários das casas em que os Franceses tinham acumulado muitos objectos valiosos diziam que estavam a ser lesados, porque tudo fora levado para o Palácio das Facetas. Outros sustentavam que os Franceses tinham concentrado num mesmo local muitos objectos roubados de diversas casas e diziam não ser justo entregarem aos proprietários essas casas com tudo o que lá estava dentro. Insultavam a polícia, tentavam suborná-la. Duplicavam o valor dos bens do Tesouro queimados, exigiam socorros em dinheiro. O conde Rostoptchine redigia, as suas proclamações.
- Queixamo-nos das desgraças e dos sofrimentos - disse Pedro -, mas se neste mesmo instante me viessem dizer: «Queres voltar ao que eras antes do cativeiro ou preferes tornar a viver o que passaste?», eu responderia: «Por Deus! Antes uma vez mais o cativeiro e a carne de cavalo!» Julgamos nós que ao sermos atirados para fora do caminho trilhado tudo está perdido, quando, pelo contrário, é então que começa uma nova vida, a verdadeira vida. Enquanto há vida há felicidade. Há muita, muitíssima esperança no futuro.(…)
Há quem diga que as amizades entre homens se fundam sempre nos contrastes.
Mais tarde veio a recordar muitas vezes estes dias de louca felicidade. Todos os juízos que então fizera a respeito das pessoas e das circunstâncias ficaram para ele como juízos exactos para sempre. Não só não renegou depois as suas opiniões de antanho sobre os homens e as coisas, mas, pelo contrário, quando tinha dúvidas e incertezas intimas, recorria às opiniões que tivera nessa altura e verificava serem sempre exactas.
«É possível», dizia ele com os seus botões, «que eu fosse então estranho e ridículo, mas não era tão louco como parecia. Pelo contrário, nessa altura sentia-me mais perspicaz e inteligente do que nunca. Compreendia tudo o que valia a pena compreender na vida, porque... era feliz.»
Sete anos tinham passado. O agitado mar que submergira a Europa regressara às suas margens. Parecia ter sossegado, mas as forças que haviam impelido a humanidade, ocultas porque as leis a que obedecem nos não são conhecidas, continuavam a actuar. Embora tudo parecesse tranquilo à superfície das águas, a humanidade continua a estar submetida a um movimento ininterrupto, como o do tempo. Diversos agrupamentos humanos se combinaram, para em seguida se dissolverem, causas novas de formação e deslocação dos estados, de amálgamas de nações se preparam.
As vagas não se encaminham agora, como antes, de uma só vez, de uma margem à outra: a tempestade ruge nas profundezas. As personalidades históricas não são como outrora arrastadas pelas vagas de uma margem para a outra: parecem agora turbilhonar no mesmo sítio. Outrora presidiam, à frente das tropas, aos movimentos das massas, por meio de guerras, de campanhas, de batalhas; agora tomam parte nos surdos movimentos da tempestade por meio de combinações políticas e diplomáticas, de leis, de tratados...
Esta intervenção de certas personagens tem para os historiadores o nome de reacção.
(…)Mas se se supõe que Alexandre se enganou, há cinquenta anos, sobre o bem dos povos, somos levados a presumir que o historiador que hoje em dia emite tais juízos muito bem poderá, dentro de alguns anos, parecer errado igualmente no que hoje se julga ser o mesmo bem. Tal suposição é tanto mais natural e necessária que, se se acompanhar a evolução da história, ver-se-á que com cada novo autor muda o ponto de vista sobre o em que consiste esse bem da humanidade. De tal maneira que o que parecia ser bem passou a ser mal dez anos depois e reciprocamente. E, o que é mais, simultaneamente surgem opiniões contraditórias sobre o mesmo assunto. Há historiadores que consideram mérito de Alexandre à constituição da Polónia e a Santa Aliança, e há os que consideram esses mesmos actos motivos de reproche.
Quer se trate de Alexandre ou de Napoleão, não pode dizer-se que a sua acção foi útil ou nociva, uma vez que se não sabe em que ordem de coisas foi ela útil ou nociva Se os seus actos desagradam a este ou àquele é apenas porque vão de encontro à noção limitada que este ou aquele têm do que é o bem. Se o bem para mim está no facto de a casa de meu pai não ter sido destruída em Moscovo em 1812 ou na glória dos exércitos russos, ou na prosperidade das Universidades de Petersburgo ou outras ou na liberdade da Polónia, no poder da Rússia, no equilíbrio europeu ou ainda numa civilização europeia de um género a que se dá o nome de progresso, devo confessar que, além destes escopos, esta ou aquela personagem histórica tinha outros, mais gerais, que eu não posso compreender.
Admitamos que a pretensa ciência tem o poder de reduzir todas as contradições e que dispõe para as personagens e os acontecimentos históricos de um modo infalível de medir o que é o bem e o que é o mal.
Suponhamos que Alexandre poderia proceder de maneira completamente diferente.
Suponhamos que tinha podido, de acordo com as indicações dos que o acusam, dos que pretendem conhecer os objectivos finais da humanidade, que ele tinha podido cumprir o programa de interesse nacional, de liberdade, de igualdade e de progresso que os seus críticos actuais acham que devia ter realizado e, segundo eles é o único válido. Suponhamos que um tal programa era possível e prático e que Alexandre o pudera aplicar.
Que teria acontecido à acção dos indivíduos que se opuseram às tendências do governo de então, essa acção que, segundo os historiadores, foi boa e útil? Nada do que fizeram teria sido realizado: toda a vida teria sido extinta.
Pretender-se que a vida dos homens seja sempre dirigida pela razão é destruir toda a possibilidade de vida.
Se admitirmos, como os historiadores, que os grandes homens conduzem a humanidade para determinados objectivos - a grandeza da Rússia ou da França, o equilíbrio europeu, a expansão das ideias revolucionárias, o progresso geral ou qualquer outra coisa - então é impossível explicar os fenómenos históricos sem recorrer à intervenção do azar e do génio. Se a finalidade das guerras do princípio do século foi a grandeza da Rússia, esta podia ter sido alcançada sem qualquer das guerras precedentes e sem a invasão. Se essa finalidade era a grandeza da França, tinha sido possível alcançá-la sem a Revolução e sem o Império. Se fosse a propagação de certas ideias, a imprensa tinha-a podido realizar muitíssimo melhor do que os soldados. Se era o progresso da civilização, temos de concordar que há meios mais eficazes que a destruição das pessoas e das riquezas. Porque se passaram então as coisas assim, e não de maneira diferente?
Muito simplesmente porque foi assim que se passaram, «O azar estabeleceu determinada situação: o génio tirou dela partido», dizem os historiadores. Mas que vem a ser o azar? Que é o génio? Como estas palavras nada significam de realmente existente, não se podem definir. Apenas indicam uma certa maneira de compreender os fenómenos. Ignoro a causa de determinado acontecimento; reconheço que a não posso vir a conhecer, e por isso falo no azar. Vejo uma força que produz resultados que ultrapassam a craveira dos acontecimentos ordinários: não compreendo como as coisas se deram, e invoco o génio.
Num rebanho de carneiros, o carneiro que o pastor fecha todas as noites num cercado especial para que seja alimentado à parte e venha a ficar duas vezes mais nutrido do que os outros deve necessariamente parecer um génio. E pelo facto, precisamente, de este carneiro ter sido criado à parte, com uma alimentação especial, o ser vendido para o talho deve considerar-se uma circunstância genial ligada a toda uma série de circunstâncias extraordinárias. Basta, porém, que os outros carneiros deixem de acreditar que o que acontece é apenas o resultado de se pretender realizar os objectivos próprios dos criadores de gado; basta-lhes admitir que os objectivos em vista podem ser-lhes ininteligíveis, para que eles encarem a engorda de um dos seus pares um acontecimento com a sua unidade e o seu desenvolvimento lógico. Ignorando a razão desse acontecimento, saberão pelo menos que ele se não produziu de improviso e que não terão necessidade de recorrer nem ao azar nem ao génio.
Só quando renunciamos a conhecer a meta próxima e compreensível, e ao admitirmos que a meta final nos é inacessível, podemos ver encadeamento e lógica na vida das personagens históricas; descobriremos a razão da desproporção existente entre os seus tetos e, a capacidade comum a toda a gente e dispensaremos de uma vez para sempre tanto o azar como o génio.
Basta reconhecermos que, a razão das agitações dos povos europeus nos é desconhecida, que apenas conhecemos factos, primeiro as matanças em França, depois na Itália, em África, na Prússia, na Áustria, na Espanha, na Rússia, e que tudo isso não passa de uma deslocação do Ocidente para o Oriente, depois do Oriente para o Ocidente, para que não só renunciemos a admitir qualquer coisa de excepcional e de genial nos caracteres de Napoleão e de Alexandre, mas até para que não seja possível vermos neles homens diferentes dos outros.
Não teremos mais necessidade de explicar por um feliz azar as mínimas circunstâncias que fizeram destes homens o que eles foram; tornar-se-nos-á evidente que essas circunstâncias eram necessárias. Se renunciarmos a conhecer a meta final das coisas, compreenderemos que, da mesma maneira que uma planta não pode ter outra cor nem outras sementes, não podemos imaginar duas pessoas cujos actos correspondam melhor que os dos dois imperadores, numa tal escala e até nos mais pequenos pormenores, à missão que lhes foi atribuída.
O facto essencial e fundamental dos acontecimentos do princípio do século XIX consiste numa deslocação em massa dos povos da Europa Ocidental para o Oriente, depois do Oriente para o Ocidente.
Para que os povos do Ocidente tenham podido levar a marcha bélica até Moscovo foi necessário: 1º, que formassem um conjunto militar suficientemente poderoso para suportar o choque da massa dos guerreiros do Oriente; 2º, que renunciassem a todas as suas tradições e aos seus hábitos; 3º, que, para levar a bom termo o seu empreendimento, tivessem à sua frente um homem capaz de justificar aos seus próprios olhos e aos olhos deles as fraudes, os saques e as chacinas que o acompanharam.
O primeiro grupo, oriundo da Revolução Francesa, insuficientemente forte, dissolve-se depressa; ao mesmo tempo são destruídos os velhos hábitos e as tradições antigas; depois forma-se, pouco a pouco, um novo grupo e mais considerável, novas tradições se estabelecem e então prepara-se para desempenhar o seu papel o homem que irá colocar-se à frente do futuro movimento e chamar a si toda a responsabilidade dos acontecimentos que devem seguir-se.
Este homem, sem convicções, sem passado, sem tradições, sem nome, que nem sequer é francês, graças a um concurso de circunstâncias, insinua-se entre os partidos que agitam então a França e sem fazer parte de nenhum deles vem a ser guindado a uma alta esfera. A grosseria dos seus companheiros, a fraqueza e a nulidade dos seus adversários, o cinismo na mentira, a mediocridade brilhante e vaidosa desse homem, levam-no ao comando do exército. O ar espaventoso das tropas de Itália, a nula vontade de se baterem que tinham os seus rivais, a sua audácia e a sua vaidade pueril asseguram-lhe a glória das armas. Uma série de circunstâncias felizes acompanha-o por todos os lados. O afastamento em que os dirigentes o mantêm é-lhe útil.
As tentativas que faz para mudar de rota não frutificam: recusam aceitar os seus serviços na Rússia, falha igualmente na Turquia. Durante a guerra de Itália, por várias vezes, vê-se a dois passos da perdição e sempre qualquer circunstância imprevista o livra de apuros.
Os exércitos russos, precisamente os que lhe podiam ofuscar a glória, mercê de várias combinações diplomáticas, não põem o pé na Europa enquanto ele ali se mantém.
No seu regresso de Itália encontra o governo de Paris num tal estado de decomposição que aqueles que dele fazem parte têm fatalmente de se apagar e desaparecer. E espontaneamente se lhe apresenta a maneira de sair de uma situação perigosa: a expedição à África, absurda e sem qualquer razão de ser.
E os mesmos felizes acasos o acompanham. Malta, considerada inexpugnável, rende-se sem um tiro. Os actos mais imprudentes são coroados de êxito. A armada inimiga, que pouco depois não deixará passar um único barco, deixa as águas livres a uma esquadra inteira.
Em África comete-se toda uma série de abominações sobre uma população quase desarmada. E os homens que cometem esses crimes, e sobretudo o seu chefe, estão persuadidos de que tudo isso é heróico, que estão a cobrir-se de glória e que os seus empreendimentos são dignos de rivalizar com os de César e de Alexandre da Macedónia. Este ideal de glória e de grandeza que consiste não só em não recuar perante seja que crime for, mas em vangloriar-se disso mesmo, atribuindo aos crimes uma espécie de valor sobrenatural, esse ideal que, de então para o futuro, será o escopo desse homem e dos seus acólitos, elabora-se plenamente em África. Tudo o que faz o faz com êxito. A peste não o contagia. As cruéis chacinas de prisioneiros não lhe são imputadas como crime.
A sua partida de África, de uma imprudência infantil, que nada justifica, acto de flagrante ingratidão para com os seus companheiros em desgraça, é considerada um mérito, e pela segunda vez a armada inimiga o deixa fugir.
É então que, aturdido pelos crimes praticados e que lhe deram sorte, pronto a desempenhar o seu papel, mas ainda sem objectivo, chega a Paris. A decomposição do governo republicano, que um ano antes o teria podido perder, atingiu o mais alto grau, e a presença desse homem novo, alheio aos partidos, só pode concorrer para a sua salvação.
Não tem qualquer plano. Tem medo de tudo, mas os partidos agarram-se a ele e pedem-lhe auxílio. Com o ideal de glória e de grandeza que forjou na Itália e no Egipto, com a louca admiração de si próprio, com a audácia revelada para o crime, com o cinismo que pratica na mentira, só ele é capaz de justificar os acontecimentos que vão seguir-se. É o homem necessário para o lugar que o espera e é por isso que, independentemente da sua vontade, apesar da sua irresolução, da sua falta de planos, de todos os erros que comete, é arrastado a uma conspiração para tomar conta do Poder e essa conspiração é coroada de êxito.
Introduzem-no à força numa reunião do Directório. Assustado, quer fugir, julgando-se perdido. Finge uma síncope. Diz coisas insensatas, que lhe poderiam ter sido fatais, Mas os membros do Directório, até então altivos e prudentes, ao perceberem que desempenharam o seu papel, ainda se mostram mais perturbados do que ele próprio, e dizem exactamente o contrário do que deviam para manterem o Poder e aniquilar o adversário.
Um azar, milhões de azares concedem-lhe o Poder e todos os homens parecem combinados para lhe consolidar a autoridade. É, o azar que leva os governantes da França de então a inclinarem-se diante dele é o azar que determina Paulo I a reconhecê-lo; é, o azar que contra ele trama uma conspiração, a qual, em vez de lhe abalar o Poder, o consolida. É o azar que põe à mercê dele o duque de Enghien e o compele, inopinadamente, a mandá-lo assassinar, demonstrando à populaça, desta sorte - meio mais poderoso que nenhum outro -, que o direito lhe pertence, visto que dispõe da força. É o azar que o faz reunir todos os recursos de que dispõe para levar a cabo uma expedição contra a Inglaterra, empreendimento que evidentemente lhe poderia ser fatal, mas a expedição não se realiza, caindo, de súbito, sobre Mack e os Austríacos, que se rendem sem combate. É o azar, secundado pelo génio, que lhe concede a vitória em Austerlitz e é ainda graças ao azar que não só a França, mas todas as nações da Europa, com excepção da Inglaterra, a qual não tomará parte nos acontecimentos subsequentes, que todos os povos, apesar do horror e da aversão que os crimes deste homem lhes inspiram, e conhecem o seu poder, o título que a si próprio se atribuiu e o seu ideal de grandeza e de glória, que todos acham magnífico e sensato.
Como para se exercitarem e prepararem para se porem em movimento, as forças do Ocidente, por várias vezes, em 1805, 1806, 1807, 1809, dirigem-se para o Oriente, cada vez mais poderosas e mais numerosas.
Em 1811, o grupo de homens que se formou em França une-se, numa massa considerável, com os povos do Centro da Europa. À medida que esta massa de homens vai crescendo, maiores as razões de se justificar assistem àquele que as comanda.
Durante os dez anos de preparação deste grande movimento estabelece entendimentos com todos os monarcas da Europa. Os poderosos deste mundo, despojados de toda a autoridade, para opor a este ideal de glória e de grandeza encarnado num Napoleão, e desprovido de todo o bom senso, não dispõem de qualquer outro ideal razoável. Um por um se dão pressa de mostrar-lhe a sua insigníficância.
O rei da Prússia manda a própria mulher solicitar as boas graças do grande homem; o imperador da Áustria considera alta mercê o facto de ele se dignar receber no seu leito a filha dos Césares; o Papa, guardião do sagrado tesouro espiritual dos povos, põe a religião ao serviço da glorificação deste homem.
Não é Napoleão quem se prepara para desempenhar o seu papel mas são aqueles que o rodeiam quem o compele a aceitar a responsabilidade dos acontecimentos presentes e futuros. Não era acto, crime, desonestidade, cometido por ele que se não transforme imediatamente em grande façanha na boca dos que o rodeiam.
Os Alemães, para o lisonjear, nada têm de melhor que celebrarem as vitórias de Jena e de Auerstedt.
Não é só nele que reside a grandeza, mas nos antepassados, nos irmãos, nos sobrinhos, nos cunhados. Tudo para o despojar dos últimos lampejos da razão, preparando-o para o seu terrível papel. E quando chega o momento de estar preparado tudo à sua volta está preparado também. A invasão avança para o Oriente, atinge o seu objectivo final: Moscovo. A capital é tomada. O exército russo encontra-se num estado de aniquilamento tal como nenhum outro exército o esteve nas precedentes guerras, de Austerlitz a Wagram.
E de súbito, em vez destes golpes do génio e do azar que de maneira tão persistente o conduziram, graças a uma cadeia ininterrupta de êxitos, ao objectivo previsto, surge uma série inumerável de azares contrários, desde a constipação de Borodino até ao gelo e à centelha que incendiou Moscovo, e o génio é substituído por rasgos de estupidez e de vilania sem precedentes. A invasão precipita-se, põe-se em fuga de novo e tudo desde aí passa a ser, constantemente, não a seu favor, mas contra ele.
Produz-se um movimento em sentido inverso, do Oriente para o Ocidente, em tudo parecido com o anterior, do Ocidente para o Oriente. As mesmas tentativas prévias como em 1805, 1807, 1809, antes da marcha geral; a mesma aglutinação dos diversos elementos para se formar a massa colossal; a mesma adesão dos povos do centro da Europa; a mesma hesitação a meio do caminho e a mesma multiplicação da velocidade à medida que se aproxima da meta.
Paris, o objectivo último, é atingida. O governo imperial e o exército são destruídos. Napoleão já não tem razão de ser; todos os seus actos de então para cá são lamentáveis e repugnantes.
Mas eis que um acaso inexplicável se produz. Os aliados odeiam esse homem, a quem atribuem todas as suas infelicidades. Despojado da sua força e do seu poderio, convicto de crimes e de perfídias, deveria ter-lhes surgido diante dos olhos como lhes aparecera dez anos antes: um verdadeiro bandido à margem da lei. Graças, porém, a uma estranha circunstância, ninguém o viu nesse aspecto.
Ainda não estava terminado o seu papel. Este homem, este bandido fora da lei, é enviado para uma ilha, apenas a dois dias de jornada da França, cuja jurisdição lhe é entregue, com um corpo de guarda próprio e milhões que lhe pagam não se sabe porquê.
O fluxo da maré dos povos principia a recolher-se aos limites das suas margens. As vagas refluem e sobre o apaziguado mar flutuam os diplomatas, convencidos de que esse apaziguamento é obra sua.
Mas, de súbito, o mar agita-se de novo. Os diplomatas persuadem-se de que são eles e que é o desacordo que lavra entre si que constitui a causa deste novo afluxo de violências: aguardam a guerra entre os soberanos; a situação afigura-se-lhes insolúvel.
No entanto, a maré, o refluxo que eles esperam, não surge do lado donde supunham que viria.
A mesma vaga se levanta do mesmo ponto de partida, de Paris. Produz-se então o último movimento vindo do Ocidente, agitação nova que deve resolver as dificuldades diplomáticas, que parecem insolúveis, e pôr fim aos movimentos bélicos desse período- O homem que arrasou a França volta só, sem conspiração prévia, sem soldados. Qualquer sentinela o podia, ter prendido, mas, por estranho azar, não só ninguém lhe deita a mão como todos acolhem, entusiasmados, o homem a quem na véspera maldiziam e a quem irão amaldiçoar um mês depois.
Este homem era, necessário ainda para justificar o último acto. O último acto terminou.
Depois de representar o seu papel, o actor recebe ordem para despir as roupas de cena e para se despojar dos adereços: ninguém já precisa dele. Alguns anos decorrem ainda em que ele, na solidão da sua ilha, continua a representar para si próprio uma miserável comédia, intrigando e mentindo, para justificar os seus actos, quando essa justificação é inútil e prova ao mundo inteiro o que em verdade era o que todos supunham ser a força numa época em que uma mão invisível a guiava.
Uma vez terminado o drama e despojado o actor das suas roupas de cena, o encenador apontava para ele:
- Aqui tendes aquele em quem acreditastes! Ei-lo! Vede agora como não era ele, mas eu quem o conduzia.
Cegos pela violência do impulso recebido, os povos levaram tempo a perceber.
Sequência e fatalidade maiores ainda se encontram na vida de Alexandre I, ele que se achou à frente do movimento em sentido inverso, o do Oriente para o Ocidente.
Que era preciso ao homem que, eclipsando todos os demais, se encontrava a dirigir esse movimento? Sentimento da justiça, visão geral dos interesses europeus não obscurecidos por mesquinhas considerações. Ascendente moral superior sobre os demais soberanos da época. Qualidades pessoais de doçura e sedução. Ter sido pessoalmente ofendido por Bonaparte. E tudo isso se associou em Alexandre I.
Tudo isso fora preparado pelos numerosos azares que tinham semeado a sua vida passada: a educação, as tendências liberais, os conselheiros que o rodeavam, Austerlitz, Tilsitt, Erfurth.
Durante a guerra patriótica, a sua personalidade apaga-se, pois não é necessária. Mas, logo que surge a necessidade de uma guerra europeia geral, ei-lo que aparece no seu lugar no momento dado; e, promovendo a união de todos os povos, condu-los ao fim em vista. O objectivo é finalmente atingido.
Depois da última guerra de 1815 encontra-se com poderes como homem algum ainda tivera. Como usou deles?
Alexandre, o pacificador da Europa, esse homem que desde a sua mais tenra juventude só pensou na felicidade dos seus povos, esse homem que foi o primeiro iniciador das reformas liberais na sua pátria, agora que, ao que parecia, dispunha do mais lato poder, e por conseguinte dos meios de realizar a felicidade com que sonhara, ao mesmo tempo que Napoleão, no exílio, se entrega a planos mentirosos e pueris, destinados, segundo ele, a promover a felicidade da humanidade, caso lhe voltassem a conceder os poderes de que desfrutara, Alexandre, que cumprira a sua missão e se sente nas mãos de Deus, reconhece, de súbito, a inanidade de todo esse falso poder, retira-se, confia o Poder a homens a quem despreza e contenta-se em murmurar:
- Não é por nós, não é por nós, mas por Ti, Eterno! Sou um homem como qualquer outro; deixem-me viver como um simples mortal e pensar na minha alma e em Deus!
Assim como o Sol e cada átomo do éter constituem esferas perfeitas em si, nada mais que átomos do todo imenso, cuja imensidade é inacessível ao homem, cada indivíduo transporta consigo os seus próprios fins ao mesmo tempo que serve fins comuns incompreensíveis à humanidade.
A abelha pousada numa flor picou uma criança. Esta tem medo das abelhas e diz que esses insectos só servem para picar os homens. O poeta, por sua vez, admira a abelha que esvoaça na corola das flores e afirma que o seu papel consiste em extrair o néctar das plantas. O apicultor, notando que as abelhas recolhem o pólen e o transportam para as colmeias, conclui que o papel delas é recolher o mel. E aqueloutro que estudou de perto a vida do enxame mantém que a abelha recolhe o pólen para sustento das abelhas jovens e a criação da rainha e que o seu papel, por conseguinte, é o da conservação da espécie. O botânico observa que a abelha, transportando o pólen da planta dióica para o órgão feminino, o fecunda, e nesta fecundação vê ele o papel do insecto. Outro, ao estudar as variações das plantas, descobre que a abelha contribui para essa variação e julga-se no direito de concluir que foi criada para desempenhar tal papel.
Na realidade, nenhuma das observações que o espírito humano está em condições de fazer atende ao objectivo derradeiro da abelha. Quanto mais a inteligência procura erguer-se à compreensão das razões últimas, tanto mais evidente se lhe torna que essas razões lhe são inacessíveis. O homem apenas pode atingir a correlação existente entre a vida da abelha e os demais fenómenos vitais. E o mesmo acontece com a penetração das razões últimas dos factos históricos relativos aos indivíduos e aos povos.
Não é belo o que é belo, mas sim o que agrada.
(…)não seguia a regra ideal que certos homens superiores aconselham, principalmente franceses, segundo a qual uma mulher depois de casada não deve desleixar-se, pondo de lado todos os recursos da valorização dos seus encantos: pelo contrario, deve cuidar ainda mais de si que antes do casamento e procurar seduzir o marido como o tentara fazer antes de casada(…)
É sabido que o homem tem a faculdade de se deixar absorver completamente por um único objecto, por mais insignificante que seja. E também é sabido que não há objectos insignificantes em si mesmos que se não tornem de uma importância extraordinária desde que a atenção se concentre neles.
As discussões e os argumentos acerca dos direitos da mulher, das relações entre cônjuges, das liberdades e direitos que a cada um deles competem, embora não constituíssem, como hoje, «problemas», já então existiam, mas tais questões eram-lhe completamente alheias e nem sequer as entendia.
Esses problemas, então, como aliás hoje em dia, só existiam para as pessoas que encaravam o casamento apenas pela satisfação que os esposos eram capazes de proporcionar um ao outro; Isto é, por um dos seus aspectos, e não pelo seu verdadeiro fim, que é a família.
Se aqueles que entendem que a finalidade das refeições é a alimentação dos indivíduos não se pode perguntar se este ou aquele manjar lhes proporciona prazer, o mesmo acontece com os que só vêem no casamento uma maneira de constituir família.
Se a finalidade de uma refeição é alimentar o corpo, aquele, que ingira sucessivamente duas refeições obterá, talvez, grande satisfação, mas não o fim proposto, pois a verdade é que o estômago não poderá digerir essas duas refeições.
Se a finalidade do casamento é a família, aquele ou aquela que queira ter várias mulheres ou vários homens, talvez venha a tirar daí grande prazer, mas o que não terá, em caso algum, é uma família.
Dado que a finalidade do comer é alimentar-se o homem e a do casamento constituir família, o problema resume-se a não se comer mais do que o estômago pode digerir e a não se ter mais mulheres ou mais maridos do que os necessários para a família, isto é, a não se ter mais do que uma mulher ou mais do que um marido.
(…) A conversa girava em torno das intrigas das altas esferas administrativas, onde em geral se concentra todo o interesse da política interna de um pais.
(…) tudo vai por terra. Nos tribunais prevarica-se; (…) O povo vive tiranizado; toda a cultura está asfixiada. Tudo que é novo, tudo que é honesto, é perseguido. Todos compreendem que isto não pode durar muito. Está muito esticada a corda e terá de acabar por partir-se. - Pedro falava como se fala sempre que se julgam os actos de qualquer governo desde que no mundo há governos.
(…)- Visto estarem todos para aí, sem bulir um dedo, à espera que a corda se parta, e visto que todos são de opinião de que vai dar-se uma inevitável catástrofe, é preciso que o maior número possível de homens se encontre reunido e de mãos dadas para resistir à convulsão geral. Toda a juventude, toda a força é sempre para ali atraída, e ali se corrompe. A este são as mulheres que o perdem: àquele o favoritismo àqueloutro a vaidade e o dinheiro, e assim passam para o outro campo. Pessoas independentes e livres como vocês e eu já não existem. Disse-lhes ainda: ampliai a vossa esfera de acção, que a vossa palavra de ordem não seja apenas a virtude, mas a independência e a actividade(…) nos uniremos, com o objectivo único: o bem e a segurança de todos.
(…) a miséria e o sofrimento são gerais hoje em dia, que a imoralidade triunfa por toda a parte, e que é nosso dever ajudar o próximo.
- Para ele as ideias não passam de divertimento... Para mim, pelo contrário, só o que não são ideias é divertimento. Quando uma ideia me preocupa, tudo o mais, para mim, é apenas um espectáculo divertido.
(…) as ideias com grande projecção são sempre muito simples. No fundo a minha ideia é que se os criminosos estão unidos entre si, e são uma força, o mesmo devem fazer as pessoas de bem.
O objecto da história é a vida dos povos e da humanidade. Mas abarcar com palavras, sem outros intermediários, descrever, em suma, não a vida da humanidade, mas a de um único povo, pode parecer tarefa impossível.
Todos os historiadores antigos, para descreverem e abarcarem a vida de um povo e conseguirem isso, que parece impossível, adoptam um único e mesmo processo, descrevem os actos dos indivíduos que governam esse povo, e esses actos para eles é como se fossem os actos desse povo inteiro.
Quando se lhes perguntava como podiam esses indivíduos separados fazer agir os povos a seu talante e quem dirigia a vontade desses indivíduos, respondiam que a vontade divina submetia os povos à vontade de um homem eleito e depois que esta mesma divindade dirigia a vontade desse homem para um objectivo previamente estabelecido.
Para os antigos, portanto, a, questão ficava resolvida pela fé numa intervenção imediata da divindade nas acções humanas.
A história moderna rejeitou estas duas afirmações. Pareceria que ao rejeitar a crença dos antigos na subordinação dos homens à vontade divina e a um objectivo determinado para o qual são conduzidos, a história moderna, em vez de estudar as manifestações da autoridade, devia investigar as causas do seu estabelecimento.
No entanto, eis o que a história moderna não faz. Rejeitando, em teoria, os pontos de vista dos historiadores antigos, na prática segue-lhes os passos. No lugar dos indivíduos dotados de poder divino e guiados pela vontade divina coloca ou heróis providos de qualidades extraordinárias e sobre-humanas ou simplesmente indivíduos de méritos muito diversos, quer sejam monarcas, quer simples jornalistas, dirigindo as massas.
No lugar dos fins instituídos outrora pela divindade a certos povos, Judeus, Gregos ou Romanos, arrastando a humanidade, coloca o bem do povo francês, alemão ou inglês, ou ainda, mercê de uma generalização mais abstracta, o bem da civilização em geral, representado, vulgarmente, pelos povos que habitam o pequeno recanto noroeste do grande continente.
A história moderna desprezou as teorias dos antigos sem as substituir na realidade por outras novas, e a lógica obrigou os historiadores, que por assim dizer renegaram o poder divino dos reis, a admitirem por uma outra via uma conclusão semelhante. Primeiro, que os povos são conduzidos por indivíduos particulares, e, segundo, que existe um objectivo para o qual se encaminham as nações e a humanidade.
Todos os historiadores modernos, de Gibbon a Buckle, apesar do seu desacordo aparente, não obstante a dessemelhança dos seus pontos de vista, reconhecem, no fundo, estes dois princípios inevitáveis: Em primeiro lugar, o historiador não tem que descrever senão os actos dos indivíduos separados que, na sua opinião, dirigem a humanidade. Para uns, esses indivíduos são os monarcas, os grandes capitães, os ministros; para outros, além dos monarcas, os oradores, os sábios, os reformadores, os filósofos, os poetas. Em segundo lugar, o historiador conhece o objectivo para o qual a humanidade se encaminha: para uns, é a grandeza de Roma, da Espanha, da França: para outros, a liberdade, a igualdade, a civilização, de um certo género, desse pequeno recanto do mundo que se chama Europa.
Em 1789 estalou uma revolução em Paris; essa revolução cresceu, alastrou e tornou-se por fim num movimento dos povos do Ocidente para Oriente. Por várias vezes esse movimento se produz e vem a chocar com um movimento contrário de Oriente para Ocidente.
Em 1812 o referido movimento chegou ao seu ponto extremo, Moscovo: depois, um movimento perfeitamente simétrico com o primeiro se realiza em sentido contrário, arrastando consigo, tal qual como da primeira vez, os povos centro-europeus. Este segundo movimento atinge o seu ponto de origem, Paris, e apazigua-se.
Durante este período, que abrange quase vinte anos, uma grande superfície de terra fica em pousio, casas são queimadas, o comércio muda de direcção: milhões de indivíduos se arruinam, enriquecem, emigram, e milhões de cristãos que professam a lei do amor do próximo matam-se mutuamente. Que significam estes factos? Donde veio tudo isto? Quem levou esta gente a queimar as casas e a matar os seus semelhantes? Quais as causas destes acontecimentos? Que força obrigou os homens a agir deste modo? Eis as simples, ingénuas e mais que legítimas perguntas que a humanidade formula quando encontra diante de si os monumentos e as tradições deste movimento pretérito.
Para resolver essas questões, o bom senso dirige-se à ciência histórica, cujo objectivo é o estudo dos povos e da humanidade. Se a história ainda admitisse as teorias dos historiadores antigos, responderia que a divindade, para recompensar ou castigar o seu povo, deu a Napoleão o poder e dirigiu-lhe a vontade no sentido de atingir os seus fins divinos. E a resposta seria completa e clara. Pode crer-se ou não na missão divina de Napoleão; para aquele que acredita, porém, tudo se torna inteligível na história desse tempo e nada há nela que surpreenda. Mas os historiadores modernos não podem responder desta forma. A ciência já não admite, como os antigos, a intervenção da divindade; por isso as suas respostas têm de ser outras.
Dizem eles então: se quereis saber o que significa este movimento, donde saiu e qual a força que produziu esses acontecimentos, escutai: «Luís XIV era muito orgulhoso e autoritário; tinha estas e aquelas amantes e estes e aqueles ministros e governou mal a França. Os seus sucessores eram criaturas fracas, que por sua vez também governaram mal. Tiveram estes favoritos e aquelas amantes. Além disso, por esse tempo homens houve que escreveram livros. No fim do século XVIII reuniram-se em Paris algumas dúzias de indivíduos que principiaram a dizer que todos os homens eram iguais e livres. E isto fez que em toda a França os homens principiassem a matar-se uns aos outros. Foram eles quem mandou matar o rei e muito mais gente. Nessa mesma altura havia em França um homem de génio, Napoleão. Por toda a parte saía vitorioso, quer dizer, fazia que se matasse muita gente e isso lhe conferia o génio. Não se sabe porque carga de água foi, inclusivamente, matar africanos e tão bem lhes tratou da pele, tão manhoso e inteligente era, que no regresso a França submetia todo o mundo à sua vontade. E todo o mundo lhe obedecia. Depois de se ter proclamado imperador, foi de novo matar gente na Itália, na Áustria e na Prússia, E aqui matou mesmo muita gente. Na Rússia vivia então o imperador Alexandre, que decidira restabelecer a ordem na Europa, e por esse motivo travava luta com Napoleão. De súbito, porém, no ano de, 1807, tornou-se seu amigo, embora em 1812 de novo se zangue com ele e ambos recomecem a matar muita gente. E Napoleão levou consigo seiscentos mil homens até à Rússia e conquistou Moscovo, fugindo, em seguida, repentinamente, desta cidade, e foi então que o imperador Alexandre, graças aos conselhos de Stein e de outros, soube unir a Europa e armá-la contra o perturbador da sua tranquilidade. Todos os aliados de Napoleão se tornaram, subitamente, inimigos seus e toda essa gente marchou contra as novas forças reunidas por ele. Os aliados venceram Napoleão, entraram em Paris, obrigaram-no a renunciar ao trono e mandaram-no para a ilha de Elba, sem o privarem do titulo de imperador e dando-lhe as maiores provas de consideração, quando cinco anos antes e um ano mais tarde o considerariam um bandoleiro fora da lei. E Luís XVIII principiou a reinar, esse mesmo rei de quem os Franceses e os aliados até então sempre haviam troçado. Quanto a Napoleão, depois de chorar diante da sua velha guarda, abdicava e partia para o exílio.
Em seguida hábeis estadistas e diplomatas, principalmente Talleyrand, que, conseguindo sentar-se primeiro que ninguém em certa poltrona, pudera por esse meio fazer recuar as fronteiras da França, conferenciaram em Viena, e esta conferência tornou os povos felizes ou infelizes.
E eis que de um momento para o outro diplomatas e monarcas principiam a guerrear-se e estão de novo prestes a dar ordens aos seus soldados para voltarem a matar-se uns aos outros.
É então que Napoleão desembarca, com um batalhão de soldados, e os Franceses, mesmo os que o odiavam, se lhe submetem todos. Os monarcas aliados zangam-se e mais uma vez marcham para a guerra a combater os Franceses. E venceram esse génio que era Napoleão e levaram-no para a ilha de Santa Helena, proclamando, de súbito, que ele era um bandoleiro.
Ali, o exilado, longe dos seus dilectos e da sua bem-amada França, morre aos poucos, legando os seus grandes feitos à posteridade. E na Europa produziu-se uma reacção e todos os soberanos recomeçaram a oprimir os seus povos.»
Seria erróneo pensar que estamos brincando e que acabamos de fazer uma caricatura da história. Pelo contrário, apenas demos uma pálida imagem das explicações absurdas e incoerentes que nos proporcionam todos os historiadores sem excepção, desde os autores de memórias e de histórias dos diversos povos até aqueles que escreveram histórias universais ou tratados de um novo género acerca da evolução das civilizações.
O que há de estranho e de cómico em semelhantes deduções resulta do facto de a história moderna ser semelhante a um homem surdo que responde a perguntas que ninguém lhe faz.
Se o objectivo da história está nas descrições dos movimentos da humanidade e dos povos, a primeira pergunta que se lhe deve fazer, e à qual deve responder, para que tudo o mais se torne inteligível, é a seguinte: qual a força que move os povos?
A esta pergunta a história moderna dá-se pressa em responder dizendo-nos ou que Napoleão era um homem de génio ou então que Luís XIV era muito orgulhoso, ou ainda que vários escritores escreveram certos livros.
Tudo isto é muito possível e a humanidade está pronta a aceitar que assim seja, mas não é isso que ela quer saber. Tudo isso poderia ser interessante se admitíssemos que um poder divino, que só de si dependesse e que fosse sempre igual a si mesmo, governasse os povos por intermédio dos Napoleões, dos Luíses XIV ou destes ou daqueles escritores. Nós, porém, não admitimos um poder desse género. Por isso, antes de se falar hoje de todos estes grandes homens, é preciso mostrar as relações que existem entre eles e o movimento dos povos. Se em lugar deste poder divino aparece uma força nova, é preciso explicar em que consiste essa nova força, pois é ela que confere todo o seu valor à obra da história.
Os historiadores parecem supor que esta força se explica por si mesma e é conhecida de todos. No entanto, apesar do desejo que se possa ter de a supormos conhecida, o leitor de grande número de obras históricas será levado a duvidar de que esta força, compreendida de maneira tão diferente pelos próprios historiadores, seja, de facto, de todos conhecida.
Qual é então a força que move os povos?
Os autores de biografias individuais e os historiadores dos povos tornados separadamente admitem que essa força seja como que um poder inerente aos heróis e às grandes personalidades. Segundo eles, os acontecimentos produzem-se exclusivamente graças à vontade dos Napoleões, dos Alexandres ou de cada uma das personagens de que a história escreve a vida. As respostas que eles dão às perguntas formuladas são satisfatórias, mas apenas quando consultamos um historiador para cada acontecimento.
Assim que os historiadores das diversas nacionalidades ou de diferentes opiniões se põem a descrever um mesmo acontecimento, as suas afirmações perdem imediatamente todo o valor, pois a verdade é que a força em causa cada um deles a interpreta não só de maneira diferente, mas, por vezes, de maneira absolutamente oposta. Este sustenta que determinado acontecimento foi provocado pela força de Napoleão, aquele pela de Alexandre e um terceiro pela de uma terceira personalidade, seja ela qual for. Além disso, os historiadores desta categoria opõem-se uns aos outros inclusivamente para explicarem a força sobre a qual repousa o poder de uma só e mesma personalidade.
Thiers, que é bonapartista, afirma que o poder de Napoleão se fundava nas suas virtudes e no seu génio. Lanfrey, que é republicano, afirma que era baseada no bandoleirismo e na mentira, e, assim, ao mesmo tempo que invalidam, mutuamente, as suas asserções, destroem pela mesma razão esta noção de uma força causa de acontecimentos, não proporcionando resposta alguma ao problema essencial da história.
Os historiadores da história universal, que têm de se ocupar de todos os povos, parecem combater os pontos de vista dos historiadores da história particular no que respeita à força que conduz os acontecimentos. Para eles esta força não é o poder inerente aos heróis e aos potentados, mas a resultante de muitas outras forças dirigidas em sentidos diversos. Quando descrevem uma guerra ou uma conquista, procuram as causas dos acontecimentos não no poder de um único indivíduo, mas nas mútuas reacções de grande número de pessoas ligadas a esses acontecimentos.
De acordo com esta teoria, sendo o poder das personagens históricas a resultante de muitas forças, não poderia ser considerado, ao que parece, como uma força que por si mesma e só por si, conduzisse os acontecimentos tendo com eles uma relação de causa e efeito.
Ora pensam que a personagem histórica é o produto do seu tempo e que o seu poder não é mais que o resultado de forças diferentes, ora que o seu poder é essa mesma força que conduz os acontecimentos.
Gervinus, Schlosser, por exemplo, e outros, ora demonstram que Napoleão é produto da Revolução Francesa, das ideias de 1789, etc., ora afirmam terminantemente que a campanha de 1812 e outros acontecimentos com que não simpatizam apenas são o resultado da vontade de Napoleão falsamente dirigida e que as ideias de 1789 foram detidas no seu desenvolvimento pela arbitrariedade do imperador.
As ideias da Revolução Francesa e a predisposição geral dos espíritos produziram o poder de Napoleão. E este mesmo poder abafou as ideias e essa corrente geral.
Esta estranha contradição não é acidental. Não só se encontra a cada passo, como de uma longa série de semelhantes contradições é feita a história escrita pelos autores de que falámos. Essa contradição provém de que, ao entrarem na análise, os historiadores universais se detêm a meio caminho.
Para se encontrarem resultados iguais às forças componentes ou que fazem as suas vezes é necessário que a soma das resultantes seja igual à das componentes. Eis uma das condições que nunca é realizada pelos historiadores universais, pois, para explicar a força que lhes serve de componente, devem necessariamente admitir, além das resultantes insuficientes, uma força ainda inexplicada agindo como componente.
O historiador particular, ao descrever, quer a campanha de 1813, quer a restauração dos Bourbons, afirma claramente que esses acontecimentos foram provocados apenas pela vontade de Alexandre. Mas o historiador universal Gervinus, para contrabalançar semelhante opinião, esforça-se por mostrar que estes dois acontecimentos são devidos, não só a Alexandre, mas à acção de Stein, de Metternich, de Madame de Staël, de Talleyrand, de Fichte, de Chateaubriand e de outros. Sem dúvida, o historiador subdividiu o poder de Alexandre nos seus componentes: Talleyrand. Chateaubriand, etc.: a soma destes componentes, a saber, a acção mútua de Chateaubriand, de Talleyrand, de Madame de Stael e de outros não é, evidentemente, igual à resultante ou ao que faz as suas vezes, isto é, ao facto de, milhões de franceses se terem submetido aos Bourbons. Do facto de Chateaubriand, Madame de Staël e outros terem trocado entre si tais ideias resulta apenas que entre eles havia essas relações, mas não que milhões de homens tenham obedecido a este ou àquele. E a fim de explicar como esta submissão de tanta gente é uma consequência das relações entre si destas personagens, ou seja, que os componentes iguais a A dão um resultado igual a mil A, o historiador vê-se obrigado a, admitir a força do poder que ele nega, visto que a considera apenas como o resultado de outras forças, quer dizer, deve admitir uma força inexplicável que actua segundo a resultante. E é o que fazem, efectivamente, os historiadores universais. E por esse motivo não só contradizem os historiadores particulares como se contradizem também a si mesmos.
A gente do campo, consoante quer que chova ou faça bom tempo, como não faz ideia clara do que se passa na atmosfera, diz que o vento dissipa as nuvens ou que o vento as concentra. Agem da mesma maneira os historiadores universais às vezes quando estão para aí virados, quando isso está de acordo com as suas teorias, afirmam que o Poder é uma consequência dos acontecimentos: outras, quando têm necessidade de provar qualquer outra coisa, sustentam que, pelo contrário, é o Poder que os produz.
Uma terceira categoria de historiadores, os que se consideram historiadores das civilizações, acertando o passo pelos historiadores da história universal, que consideram, por vezes, os escritores, senhoras mesmo, como forças conduzindo os acontecimentos, compreendem, no entanto, essa força de maneira completamente diferente. Encontram-na naquilo a que chamam civilização, numa actividade moral dos povos.
Estes historiadores são partidários decididos dos seus predecessores, os historiadores da história universal. Com efeito, se se podem explicar os acontecimentos históricos pelas relações que existem entre estes ou aqueles indivíduos, porque não explicá-los pelo facto de Sicrano ou Beltrano ter escrito este ou aquele livro?
Esses historiadores elegem, entre os numerosos indícios que acompanham cada fenómeno humano, aqueles que têm valor moral e sustentam que esses indícios são a causa deles. Mas, apesar de todos os esforços neste sentido é preciso muito boa vontade para se admitir que exista alguma coisa de comum entre a acção moral das ideias e o movimento dos povos. Pode dizer-se mesmo que em caso nenhum é de admitir que essa acção dirija os actos dos homens. Fenómenos tais como as chacinas da Revolução Francesa, consequência da propagação das ideias de igualdade, as guerras cruéis e as execuções, resultado da predicação da lei do amor, contradizem uma tal suposição.
Admitamos mesmo que todas as dissertações confusas e subtis que as histórias nos proporcionam são exactas. Admitamos que os povos são conduzidos por essa força indefinível a que se chama ideia, o problema essencial da história fica, não obstante, sem solução, ou, então, ao antigo poder dos monarcas, à influência já admitida dos conselheiros e outras personalidades virá justificar-se a nova força da ideia, cuja relação com as massas se torna necessário explicar. Pode admitir-se que, tendo Napoleão o Poder, determinado acontecimento se haja dado: pode admitir-se, com, um pouco de boa vontade, que Napoleão tenha sido, simultaneamente com outras forças actuantes, a causa dos acontecimentos; mas que um livro como o Contrato Social tenha compelido os Franceses a matarem-se uns aos outros, eis o que se não pode compreender sem se explicar a causa da relação desta força nova com o próprio acontecimento.
Não há dúvida de que existe uma relação entre todos os que vivem numa mesma época, e que, portanto, pode estabelecer-se uma certa relação entre a acção intelectual dos indivíduos e os movimentos históricos, da mesma maneira que se pode estabelecer relação entre os movimentos da humanidade e o comércio, os misteres, a arte da jardinagem e tudo quanto se quiser.
Mas como pode esta actividade intelectual surgir aos olhos dos historiadores da civilização como a causa ou a expressão de todo um movimento histórico, eis o que é difícil compreender. Só é possível explicar essa conclusão da maneira seguinte: em primeiro lugar, a história é obra dos sábios e por isso lhes é natural e agradável pensar que graças a eles e aos da sua classe a humanidade inteira se agita, como seria natural e agradável aos comerciantes, aos agricultores, aos soldados, pensarem a mesma coisa, embora estes nada digam porque não escrevem história; em segundo lugar, a acção moral, a actividade espiritual, a civilização, a cultura, o poder das ideias, todas estas coisas são noções obscuras e indeterminadas à sombra das quais é muito cómodo empregar palavras que têm uma significação ainda menos definida e que por isso mesmo estão aptas a servir a qualquer teoria.
Mas sem falar já da qualidade intrínseca da história deste género, pois será útil sem dúvida a alguém ou servirá para qualquer coisa, a história da civilização, com que principiam a estar cada vez mais de acordo as histórias universais, é notável pelo facto de, ao estudar detalhadamente as diferentes doutrinas religiosas, filosóficas e políticas, tomando-as como causa dos acontecimentos, de cada vez que tem de escrever um facto verdadeiramente histórico, como, por exemplo, a campanha de 1812, o relata, a seu pesar, como o produto do Poder, dizendo abertamente que a referida campanha é uma consequência da vontade de Napoleão. E, ao falarem deste modo, os historiadores, inconscientemente, mostram-se em contradição consigo mesmos ou admitem que esta força histórica nova que imaginaram não dá a explicação dos fenómenos e que a única maneira de os compreender e admitir o poder de um só que eles parecem não reconhecer.
Uma locomotiva movimenta-se. Pergunta-se porquê.
O camponês diz que é o Diabo que a empurra. Outro que ela se desloca porque as rodas giram. Um terceiro afirma que a causa do movimento é o fumo que o vento leva. Nada há a objectar ao camponês. Para isso seria preciso demonstrar-lhe que o Diabo não existe ou que outro da sua classe lhe explicasse que não é o Diabo, mas um alemão que a põe em marcha. Só assim, mercê da contradição, se daria conta de que nem um nem outro tem razão. No que diz respeito ao que atribui o movimento ao girar das rodas contradiz-se a si próprio, pois, uma vez no campo da análise, será obrigado a avançar um pouco mais: ser-lhe-á necessário explicar o movimento das rodas. E só terá o direito de se deter na busca dos motivos quando tiver chegado à última causa do movimento da locomotiva, ao vapor comprimido dentro do êmbolo. Para aquele que explica o movimento pelo fumo que o vento leva, ao notar que a explicação pelas rodas nada explica, lançará mão do primeiro indício que lhe apareceu para apresentá-lo como uma causa. A única noção capaz de explicar o movimento da locomotiva é a de uma força igual ao movimento visível. A única noção por meio da qual se pode explicar o movimento dos povos é a de uma força igual a esse movimento geral dos povos.
No entanto, os diversos historiadores compreendem neste conceito forças muito diversas e em nenhum caso iguais ao movimento verificado. Uns falam de uma força inerente aos heróis, da mesma maneira que o camponês fala no Diabo no caso da locomotiva; outros, de uma força que na realidade é produzida por diversas outras forças, como aquele que invoca o movimento das rodas: outros, por fim, a influência moral, como acontece com aquele que alude ao fumo que o vento leva.
Enquanto se não escreverem senão histórias particulares, a dos Césares, dos Alexandres, dos Luteros ou dos Voltaires, e não a de todos os indivíduos, sem excepção alguma, que tomaram parte num acontecimento, não haverá possibilidade de descrever os movimentos da humanidade sem a noção de uma força compelindo-os para um fim. E a única noção no género que os historiadores conhecem é a do Poder. Esta noção é o único mecanismo que permite manipular os materiais da história no seu estado actual e aquele que o quis quebrar, como Buckle, sem nada ter para o substituir, mais(…)
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Comentarios
;)
Obrigado!
Suspeito que discorda, no que toca essencialmente ao papel da mulher! Pois... todos os homens, ainda que alguns contraditórios, deviam ser processados.
É uma herança difícil de combater.
Ganhando tempo: A mulher é o discurso da vitória! ;)
O SEU LONGO, MAS MAGNIFICO TEXTO!
Não seria sincera se lhe dissesse que 'digeri' tudo o que li num curto espaço de tempo. Não, não foi assim. Comecei a ler ontem, na tranquilidade do meu fim de dia e terminei agora mesmo.
Admirei a forma como o texto foi escrito e concordo com quase tudo o que nele li. Digo quase tudo porque situações há que, pela sua complexidade, se começasse a comentar sobre elas, daria um outro longo texto e não é esse o meu propósito. Interessa-me deixar aqui, tão somente, os meus mais sinceros cumprimentos pela escolha.
Maria Letra