OS GÉMEOS - 5

.

 

(continuação)

 

Realizaram uma partilha simbólica dos haveres que ainda restavam, e que já não eram nada abundantes, e James propôs sair ele de casa. Era o que tinha mais espírito voluntarista e era menos acomodado com a vida.

Por essa altura James militava numa aguerrida organização marxista, o que nem surpreendia muito William. Sempre achara que o irmão havia herdado o sangue fervente do pai, e a fé solidária da mãe.

— Eu, nunca por nunca aceitarei hipotecar o meu livre arbítrio, seja em que matéria ou por que causa for. — afirmava ele a James.

— Mas tu não compreendes que a liberdade é muito bonita mas sem pão e sem trabalho e sem solidariedade o Homem vai destruindo o Homem e vai até acabar por dar cabo do Planeta?

— Idealismo, puro idealismo... Solidariedade sim, mas demagogia não. Nós somos uma engrenagem que ninguém pode parar. Que é que tu aprendeste no colégio? Nada!... Estavas a pensar nas empregadas do refeitório, claro.

— És um conservador, e um revisionista. Por favor, não digas tolices. Tu é que ainda me hás-de dar razão.

— Chega, Jimmy! Não me venhas com o teu excessivo romantismo. Tenho pena de não ter capacidade retórica para te demonstrar que qualquer utopia é apenas uma reflexão filosófica. Cada qual nasce para o que nasce, e eu não me vejo com carisma político. E tu, a seu tempo também mudarás de ideias. Como dizia o Carochinha — lembras-te, aquele maluco do professor de História que nos castigava colando-nos papéis na testa, com os disparates que lhe respondíamos — tudo é apenas uma questão de se estar no lugar certo no momento certo.

— Por falar nisso, preciso de um favor teu.

— Pois sim. E o que é, Jimmy?

— A despeito de não concordares comigo, por agora...

— Ora, ora... Lá vamos nós outra vez...

— Pois. Podia pedir-te isto e não te dizer nada, não é?... Amanhã vou-me embora daqui conforme combinámos. E também está tudo pronto para eu passar à clandestinidade.  Bem, o caso é que me foi escalada uma missão um pouco arriscada, e será tudo muito mais fácil se tu puderes mostrar-te bem visível hoje à noite na manif contra os anunciados despedimentos massivos de metalúrgicos. Estará lá a televisão, e eu, quero dizer, tu, tens de ser filmado o mais tempo possível, entre as seis e as seis e meia da tarde, enquanto aquilo está a aquecer. Depois podes vir-te embora. Já fizemos isso muitas vezes por gozo, mas agora... Posso contar contigo, não é verdade? Olha... não vais arranjar chatices com isto. Podes estar descansado!

— E depois, que mais faço?

— Mais nada. É só isso. Tão cedo não nos voltaremos a ver. Ah!... até ao fim da semana, se encontrares aquela rapariga, a Marte, também podes aproveitar e passares por seres eu, se te apetecer. Fala pouco e saboreia-me bem a pequena, que ela é um amor e gosta dos meus mimos. Adeus Willy, até qualquer dia. Não te preocupes, porque como sabes eu não sou tolo. Eu vou-te mandando notícias

Foi a manif mais estúpida da sua juventude. Esteve sempre exaltado, ia sendo preso para identificação, não escapou sem levar bastonadas e por fim o azar perseguiu-o quando já ia a caminho de casa: à porta do La Grange au Loup deu-lhe para entrar e beber um copo para aliviar a rouquidão, e escorregou na guia do passeio, estatelando-se e esfolando as mãos e as canelas.

Para conseguir estar na mira dos cameramen não tivera descanso e esgotara toda a sua imaginação, buscando picardias e cenas de fervor activista, sempre a gritar “— Ponham isso no ar. Ponham essa merda no ar... Vocês estão feitos ou quê? Ponham as imagens em directo!.”, debalde, que ele bem sabia que a reportagem era certo ser censurada.

Levara consigo um grande cartaz de papelão prensado, onde pintara a vermelho esborratado um simulacro de caracteres chineses, que de facto nada significavam, e por cima escrevera ABAIXO A CORRUPÇÃO.

A certa altura, partira-se a ripa que dava para erguer aquela espécie de bandeira e desde então tivera que passar a segurá-la de braços abertos, com um esforço muscular que ia aumentando diabolicamente, até que lha roubaram com um violento repelão, para se servirem dela como escudo face aos bastões da polícia.

Só arredou pé quase às onze horas da noite. Nada daquilo tinha sentido para ele, enquanto metade de James, ou seu duplo, como quer que se considerasse. Mas via-se a agir com alguma convicção de gestos e palavras, compelido por uma angústia nas entranhas que o tornava mesmo imprudente. De súbito a angústia transformou-se em medo. É que se apercebera então, sem grande dúvida, que dois corpulentos barbudos, com aspecto assaz subversivo, andavam desde o princípio à beira dele, chegando a esboçar movimentos para o protegerem. Lógico... estava a ser enquadrado! Fez de conta, e como já se estourara de mais para satisfizer o pedido de Jimmy, desandou para casa. Era melhor sair logo dali, antes que a sua utilidade se pudesse tornar mais cobiçada pelos revolucionários.

No dia seguinte, estava a almoçar num café das redondezas, viu-se na televisão. Parecia um autêntico paspalhão, como se estivesse a mimar um agitador; a cabeça pouco acima do cartaz, olhar feroz, aos urros... Como lhe fora possível estar ali com tão simulada autenticidade e desvairamento! Vendo bem, não era ele... sem dúvida que era Jimmy. Para todos os efeitos tinha sido Jimmy...

E não é que horas mais tarde deu de caras com Marte!

Aquela mulher era de Jimmy. Apesar do que ele dissera, não queria nada com ela. Mas já não foi a tempo de dobrar a esquina da rua e esgueirar-se da vista de Marte.

— Tu não tens emenda, Jimmy! Que é que te aconteceu às mãos? Como é que podes amar-me, assim ferido? Vais sentir dores em vez da minha pele macia! Mas tu não gostas mesmo de mim!... Como é que eu ainda posso acreditar nisso, se nem és capaz de poupar o teu corpo?... Eu quero-te inteiro e vigoroso, meu querido. Anda, vem comigo para eu tratar dessas horríveis esfoladelas. Oh, querido, querido!

Não estava nas cogitações de William prestar mais aquele favor ao irmão. Marte era bem apetecível e nada tinha de desavergonhada, mas era perdidinha por James. Preferiria não lhe tocar. O que ia resultar da dupla identidade em que de momento estava atolado poderia mostrar-se chocante... A culpa não era dele.

Deixou que Marte lhe metesse o braço, e num instante ficou excitado pelo contacto íntimo com o corpo dela. Tossicou para encobrir a atrapalhação, afirmando a Jimmy, em pensamento, que não podia ser responsabilizado por aquilo...

Por impulso instintivo olhou para o lado, e soltou uma exclamação ordinária, que por uma fracção de segundo se transformou em gargalhada, a terminar em algo parecido com um gemido de dor completado com um expressivo abanar da mão e um “— Porra!...” dito a meia-voz. Tudo porque não queria de modo algum que Marte se apercebesse do jornal, mal seguro e esvoaçante nas pontas dos dedos do ardina com quem acabavam de se cruzar e que apregoava, sacristânico, a destacada manchete: ASSALTO AO BANCO INTERCONTINENTAL RENDE 200 MILHÕES.

Não precisava de ler mais, para descortinar a missão de James.

— O que é que foi? — perguntou Marte, estacando.— Está a doer-te? Tiveste ao menos o cuidado de desinfectar esses golpes, querido?

— Só uma dorzita. Vamos, vamos lá a esse curativo. Se as dores não me deixarem acariciar-te, dou com a cabeça na parede.

— Ah! Já estás bom! Assim, sim. Vá! Começa já a beijar-me. Quando chegarmos a casa nem te lembrarás que estás inválido...

“— Ora... Primeira possibilidade grave de derrapagem!” — disse-se William. “— Sei lá como é que ele a costuma beijar...”

Optou pela orelha mais próxima e depois o pescoço e outra vez a orelha, sem sofreguidão, mas sensual, a deixar-lhe o hálito morno na pele e a ouvir-lhe a respiração estremecida.

— Faz-te bem magoares-te, sabes? Dá-te meiguice. Ai!... — suspirou Marte num murmúrio arrisado, passando-lhe os braços em volta do pescoço, e à procura de se ajustar milímetro a milímetro ao corpo dele. — Meu amor!...

— Vá, vamos embora daqui, se não ainda começo a despir-te peça por peça, e vai parecer um circo, com tanto basbaque a ver o espectáculo.

— Pagava só para ver se tinhas coragem disso. É o que eu digo, faz-te bem magoares-te... ficas diferente! Até ameaças fazeres coisas arrojadas em público! Garanto-te que ainda te vou esfolar mais... Aliás, assim magoado vai dar para experimentarmos uma de sadismo. Ah, ah, ah!

— Isso é o que nós vamos ver, minha pomba.

— Ah! E chamas-me “pomba”! Não, isso não! É muito romântico mas eu prefiro que continues a tratar-me por “chochota querida”, meu pedaço de...

— Schiu! Estamos a perder tempo. Vamos!

— Sim, meu pedaço de...

— Schiu!


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 


.
 

Submited by

Miércoles, Marzo 27, 2013 - 15:27

Prosas :

Sin votos aún

Nuno Lago

Imagen de Nuno Lago
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 9 años 10 semanas
Integró: 10/17/2012
Posts:
Points: 2518

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Nuno Lago

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Amor MADRIGAL 0 1.322 03/07/2013 - 12:15 Portuguese
Poesia/Fantasía ... outra me sorrirá! 0 861 03/07/2013 - 12:05 Portuguese
Poesia/Erótico CARMINS de ti 0 1.150 03/06/2013 - 15:44 Portuguese
Poesia/Poetrix Viveremos em universos paralelos? 0 794 03/06/2013 - 15:37 Portuguese
Poesia/Amor BEIJOS 0 1.343 03/06/2013 - 15:29 Portuguese
Poesia/Erótico Não é verdade!? 0 928 03/05/2013 - 17:00 Portuguese
Poesia/Amor TROVA 0 1.229 03/05/2013 - 16:52 Portuguese
Poesia/Dedicada Balada para o meu amor 0 960 03/04/2013 - 15:17 Portuguese
Poesia/Fantasía EPIGRAMA 0 1.186 03/04/2013 - 15:01 Portuguese
Poesia/Erótico HORA DO TIGRE 0 1.023 03/04/2013 - 14:48 Portuguese
Poesia/Erótico TEUS SEIOS… 0 963 03/03/2013 - 15:29 Portuguese
Poesia/Fantasía FANTASIANDO 0 1.270 03/03/2013 - 15:23 Portuguese
Poesia/Desilusión Vais perder-me… 0 1.319 03/03/2013 - 15:14 Portuguese
Poesia/Dedicada Jogo marcado… 0 620 03/02/2013 - 12:05 Portuguese
Poesia/Pasión Eu sei! 0 862 03/02/2013 - 12:00 Portuguese
Poesia/Poetrix Me diz!… 0 1.931 03/02/2013 - 11:51 Portuguese
Poesia/Amor Nos teus olhos 0 1.376 03/01/2013 - 17:29 Portuguese
Poesia/Pasión Para ti... 0 808 03/01/2013 - 17:23 Portuguese
Poesia/Amor Oceânica 0 769 03/01/2013 - 17:07 Portuguese
Poesia/Amor Já é madrugada! 0 1.253 02/28/2013 - 12:30 Portuguese
Poesia/Fantasía Fazes de mim um gelado! 0 745 02/28/2013 - 12:23 Portuguese
Poesia/Fantasía Te rogo!... 0 987 02/28/2013 - 12:15 Portuguese
Poesia/Meditación Podem acreditar… 0 611 02/27/2013 - 17:37 Portuguese
Poesia/Fantasía Diz que é tudo mentira! 0 605 02/27/2013 - 17:31 Portuguese
Poesia/Poetrix Reflexos… 0 1.196 02/27/2013 - 17:26 Portuguese