OS GÉMEOS - 33
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Antes do acidente, Madeleine seria incapaz de se portar com tamanha liberalidade para com William! De facto, sentia que agora estava casado com outra mulher... E William decerto também devia estar surpreendido com a nova Madeleine. Se o irmão tinha imaginado umas férias de regalada preguiça e pachorrentas, contemplativas, sob o sol e a brisa mediterrâneas, teria uma desilusão. Mas, aturar a contagiante desenvoltura da cunhada só lhe faria bem, para o desentorpecer um pouco do quase permanente eremitismo em que vivia enfronhado lá no arrozal. Uma pequena cura de bulício social era recomendável para William, mas sobretudo achara necessário distanciá-lo depressa daquele lugarejo onde arranjara ligações inconvenientes que a qualquer momento poderiam fazer incidir sobre ele uma curiosidade indesejável. Saias!... Da parte do seu gémeo, cândido e ponderado, nunca esperaria complicações com ninguém, muito menos com mulheres, e no entanto vira-se já obrigado a ter de intervir duas vezes, em segredo mas com intolerância, para o proteger de sarilhos escusados. Receando que a violência, pela sua própria mão, estivesse a crescer em espiral à volta do pacato William — primeiro, a provocação que conduzira o tal Zeca à prisão, e depois o acidente tornado indispensável, para definitivo despacho do sujeito, e por sorte que fora alertado a tempo quando ele se evadira da prisão — entendera que o melhor era trazer Willy para ao pé de si enquanto assentava a poeira levantada pela sua intromissão pessoal. Como segurá-lo, ia ser problema de Madeleine. A aventura de viver cada dia com fogosidade, jubilosa, era agora a norma dela. Tal, era também o seu próprio conceito, mas havia muita diferença nos respectivos estilos. Por razões óbvias e por disciplina de mentalidade experimentada, ele usava extrema exigência na sua forma mais visível de estar na sociedade, com requinte e assumido poder e contudo sem destaque público, reservando a animação para uma outra realidade, bem privada, onde nem Madeleine tinha lugar, por precaução. Quanto a ela, isenta dessa duplicidade de existência, sem necessidade de movimentos livres para mais do que exaurir o seu entusiasmo novo e apaixonado pela vida, apreendera o sentido da independência, que ele aliás nunca lhe coarctara, e exercia-o sem rebuço e com uma prudência que o deliciava.
Apeteceu-lhe folgar com as intenções recreativas deles. Sem fazer barulho, escusadamente, porque eles não haveriam de o notar, rasgou um pedaço da folha do jornal, amachucou-o bem e arremessou-o para cima deles, pondo-se com ar inocente, de perna cruzada, a atar o cordão dum sapato. Madeleine sentiu a bola de papel a bater-lhe no pescoço e viu-a saltar em cima da mesa e deslizar para o chão, mas manteve-se indiferente. William voltou o olhar em direcção a ele e sorriu. Parecia querer dizer “Madeleine está a dispor de nós...”, traduziu James para si próprio, expressão de comicidade no rosto, a desfrutar as suspeitáveis reticências de William.
— Coragem, meu amor... Se não fores persistente e não o levares pelo braço não conseguirás vencer a inata resistência ao alvoroço, desse herético monge de laboratório. Basta olhar para ele para ver que está a preparar-se para passar os dias em casa, deitado à sombra na relva da piscina, ou passivo, como um asceta em meditação.
— Descansa que eu trato de Willy, querido. Ele ainda não sabe do que eu sou capaz...
— Isso é o que tu julgas. É melhor não estares tão confiante. E livra-te de no caminho o deixares entrar nalguma livraria. Então é que não mais farás nada dele.
— Nem vale a pena defender-me. Jimmy sempre me classificou como bicho-de-buraco. Deixa-o falar, Madeleine. Durante os próximos dias farei tudo tudo o que me for possível para ser uma companhia agradável.
— Eu sei. Jimmy está a dizer aquilo, em parte para se desculpar a ele. Está a ficar igualzinho a ti... Nem calculas o que eu preciso de inventar para o arrancar aos negócios e ter uma vida social divertida. O que vale é que eu sei usar a minha liberdade. Ele não pode, ou não quer ir aqui ou acolá? Pois vou eu sozinha. Não quero mais desperdiçar a oportunidade de me distrair e conviver com os nossos amigos. Para quê desejar a alegria e a felicidade, e não as aproveitar? Tu sabes...
— Pois claro! — Corroborou William. Aquele “Tu sabes...” dissera-o Madeleine de forma quase inaudível, intencionalmente para ele. Não gostava que ela lembrasse o distante mas límpido e impiedoso momento em que, à beira do abismo ambos se tinham sentido sufocar pela iminência da tragédia que ela pretenderia assumir, sss!... — Isso é imperdoável, James! Estarás a tornar-te sensaborão?... Ou a ficar ciumento? É isso! Não queres é que te invejem Madeleine...
— Claro! Claro! É isso... mas ele não quer confessar... — riu-se Madeleine, empertigando-se numa atitude de elegante provocação.
— Pois conta comigo, Madeleine. Vai ser uma temporada brilhante.
— Acredito que seria, se eu vos deixasse à solta. Mas eu não posso sofrer estragos na minha impecável reputação e por isso, lá, vejam se se comportam quando acontecer de eu não estar de atalaia.
— Jimmy querido, não comeces já a desencantar pretextos para nos abandonares. Prometeste-me colaboração para desassossegar o teu irmãozinho!
— E não volto atrás com a promessa, mas a parte importante da cabala é da tua autoria, meu amor. E ele é que tem de ser desintoxicado do “pó-de-arroz” onde vive enfarinhado, e não eu. Dai-me folga uma vez por outra, por favor...
— Com essa história de “cabala” já estou a pensar se não seria muito mais indicado passarmos uns dias aqui em Madrid e depois mais alguns em Roma e quem sabe terminarmos as férias em Viena... — Espirituoso e mordaz estava Jimmy, mas à mistura detectava-lhe alguma suspicácia, e por esse motivo William lhe mencionava esta opção, embora em tom de desinteresse.
— Como preferires, William, mas não vais na mesma livrar-te de mim. — mofou Madeleine, decidida, dobrando o mapa de estradas, retirando da carteira o batom e dirigindo-se até ao espelho sobre a cómoda, para pintar os lábios.
— Vês, querida, já não quer ir para a Riviera! Mas é como dizes, não lhe adianta, ah! ah! ah!... Vamos. E não o largues! Dou-vos meia hora, e nem mais um minuto. Se nessa altura ainda não tiverem escolhido o itinerário que mais lhes agrada, serei eu a determinar a rota. Até já!
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia
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