O Idealismo Alemão - Parte VII (Inclui glossário)

A Dialética Transcendental

Uma das faces mais conhecidas do Pensamento kantiano é a diferenciação que ele fez entre a Essência da coisa (ou a “coisa em si” ou o “numeno”) e o seu Fenômeno*.

Graças a essa diferenciação é que se pode observar que a “certeza” e a “incondicionalidade” que a Lógica e a Ciência proclamam, na verdade, são apenas relativas porque se limitam ao campo fenomenico, empírico, sensorial. Limitam-se àquilo que nós captamos ou percebemos.

Segundo vários eruditos, o mundo que conhecemos é uma construção mental que erguemos a partir da utilização da Mente, enquanto “agente modelador”, e das Coisas enquanto “estímulos”.

O objeto que captamos através dos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) é uma “aparição”, um “fenômeno” e, provavelmente, muito diferente do que seja “em si”.

Após tê-lo captado, a Mente o modela segundo as suas Leis, resultando desse processo a nossa eterna incerteza sobre “a coisa em si”, a qual pode, inclusive, ser um “Objeto do Pensamento” existente na própria Mente. Porém, ainda assim, ela nunca poderá ser experimentada, pois qualquer experimentação exige o concurso dos sentidos e se eles forem utilizados a maculariam, completando, assim, o circulo das impossibilidades.

Nas palavras de Kant:

“Continua inteiramente desconhecido para nós o que os objetos podem ser por si só e fora da receptividade dos nossos Sentidos. Nada conhecemos, exceto a nossa maneira de percebê-los; maneira peculiar a nós e não necessariamente partilhada por todos, embora o seja, sem dúvidas, por todos os Seres humanos. A Lua que conhecemos, por exemplo, é meramente um feixe de Sensações; unificado pela nossa estrutura mental inata, através do processo de transformação dessas Sensações em Percepções e destas em Concepções ou Ideias. Por isso se pode dizer, que para nós a Lua é apenas as nossas Ideias”.

Todavia, Kant sempre deixou clara a sua crença na existência efetiva da matéria, do mundo externo, mesmo que ele nos seja incognoscível, já que o nosso conhecimento chega apenas à aparência, à “casca”, à superfície dos mesmos. Para ele, o Idealismo não significava a negação peremptória e definitiva do mundo concreto, físico, de que nada existe fora do sujeito, conforme afirmaram alguns idealistas mais radicais, como Bekerley, por exemplo.

Em sua concepção, o Idealismo é a doutrina que afirma que boa parte do objeto captado é criada pelas “Formas de Percepção e de Compreensão” e que, por isso, só conhecemos o objeto da forma que ele ficou após ter sido transformado em “ideia”.

O que ele é realmente, ou seja, antes de ter sofrido essa transformação é uma incógnita, apesar da Ciência insistir ingenuamente no contrário, proclamando ser capaz de desvendar a sua natureza e o seu formato original.

Jactância de que não compartilha a Filosofia, pois os Filósofos sabem que não se consegue lidar com o “numeno”; e por isso tem consciência de que se trabalha apenas com as Sensações, as Percepções e as Concepções que haurem das “coisas em si”.

Essa distinção entre a Essência e o Fenômeno foi um resgate para a Filosofia moderna do antigo ideário platônico da “Ideia” enquanto modelo ou padrão para as “cópias” individuais e físicas que existem no mundo concreto, ou mundo das aparências.

Pela sua importância, tal resgate mereceu a aprovação quase unânime da comunidade filosófica. Schopenhauer, por exemplo, disse que esse seria o maior mérito do sistema kantiano.

E nasce dessa diferenciação o conceito da Dialética Transcendental que ao examinar as premissas colocadas pela Ciência e pela Religião como absolutas, necessárias e verdadeiras comprova a triste falácia das mesmas, pois a Ciência que pretende ser “transcendental” afirmando ser capaz de ir além da sensibilidade, só consegue perder-se em antinomias (a contradição entre duas leis, ou princípios). E a Religião que tem pretensão igual, afunda em paralogismos (raciocínios falsos) exarados por ingenuidade ou por má fé.
As antinomias que surgem inevitavelmente em todas as Ciências que tentam ultrapassar ou transcender a experiência empírica geram dúvidas insolúveis como:

“O mundo é finito ou infinito?”.

O nosso pensamento rebela-se contra as duas alternativas, pois de um lado somos levados a pensar que existe “algo além”, mas não conseguimos conceber a infinidade.

“O mundo teve um começo?”

Não conseguimos definir a eternidade, mas também não podemos pensar em algo no passado sem “sentir” que antes daquele algo já havia alguma coisa.

“A cadeia de Causa e Efeito (causalidade) teve uma Causa primeira?”

Uma parte de nós diz que sim, pois como imaginar que essa cadeia seja interminável e, portanto, não iniciada? Contudo, outra parte da nossa Razão nega, porque também não conseguimos imaginar uma Causa que não tivesse sido causada.

São antinomias que se repetem em todas as ciências e para muitos esse é um problema insolúvel. Todavia, para Kant existe uma saída para esses impasses, bastando que se procure socorro na Filosofia, já que ela ensina que o Tempo, o Espaço e a Causa são “modos de percepção e de concepção”, ou seja, maneiras inatas de se assimilar, racionalizar e compreender; e não coisas que estão sujeitas às Leis antagônicas da matéria e que por isso causam as contradições. E porque são maneiras inatas, são onipresentes e formam a teia e a estrutura dessas mesmas experiências.

Vê-se, portanto, que as antinomias nascem da suposição equivocada de que Espaço, Tempo e Causa são “coisas externas”, independentes, e não “gavetas” que se usa para classificar e processar os saberes que se adquire.

E se isso acontece com as Ciências, processo semelhante se verifica na Religião onde os paralogismos da chamada “Teologia Racional” tentam provar cientifica e logicamente a existência de um “Ser Necessário (Deus)” ou, então, que a alma é uma substância indestrutível ou que o livre-arbítrio está acima da Lei de Causa e Efeito e tantos outros dogmas.

Esquecem, contudo, os religiosos que a Dialética Transcendental comprovou que a Substância, a Causa, a Necessidade são relacionadas apenas aos Fenômenos e às experiências sensoriais, não sendo possível associar ao mundo das essências, das coisa-em-Si nenhum desses conceitos. Confirmou, em resumo, que a Religião não pode ser comprovada cientifica, racional e logicamente, sendo, portanto, apenas um “objeto da fé”. Algo em que se acredita, ou não, estando muito longe de ser uma “Verdade” universal e inquestionável, como desejam os que nela acreditam ou que dela dependem emocionalmente ou que nela trabalham ou que nela se locupletam.

Por fim, é chegado o momento de se verificar os resultados efetivos que Kant logrou com a sua copiosa obra: A Crítica da Razão Pura.

Se a proposta inicial do livro era responder às questões metafísicas e salvar o que há de genuíno e absoluto na Ciência e na Teologia, pode-se dizer que o sucesso foi alcançado, pois ao estabelecer a transcendência da Estética, da Analítica e da Dialética, Kant adentrou ao campo da Metafísica para num segundo momento buscar as soluções para os problemas da mesma.

Ademais, por destruir a jactância da Ciência ao comprovar a sua limitação ao mundo fenomênico, do qual ela só sai para cair em intermináveis contradições, ele a teria salvo de sua própria ingenuidade. E de maneira similar teria salvado a Essência da Religião ao comprovar que os seus objetos de fé (Deus, alma incorruptível etc.) nunca poderão ser comprovados pela Razão, já que a crença não pode ser racional sob o risco de se extinguir. Afinal, como bem disse o Mestre Eckart (sec.XIII, Alemanha):

“Creio porque é absurdo” (Se não fosse absurdo, se fosse mensurável eu não precisaria crer, pois eu poderia compreender).

É claro que as suas ponderações causaram muito descontentamento entre os homens da Ciência e os da Religião, além de várias censuras de outros filósofos que diziam ser o seu sistema apenas uma copia do de Hume, ou uma derivação de Bekerley etc.

Os homens da Ciência ressentiram-se por verem evaporar as suas “Verdades Cientificas”. Por ver que lidavam apenas com a superfície, com a casca das coisas e que os seus enunciados eram tão corruptíveis quanto os seus objetos de estudo. Ressentiram-se por ver que não obstante os seus esforços, nunca atingiriam a Coisa-em-si, a “Verdade última” etc.

E se ressentiram os Religiosos por ter ficado provado que a sua “Verdade” era apenas sua e de quem lhes compartilhasse a crença, não podendo pretender-se que fosse geral e inquestionável. E ressentiram-se porque Kant provou que os seus dogmas são impossíveis de serem provados racionalmente, estando sujeitos, portanto, a ser uma simples crença. Foi, é certo, um grande abalo que sofreram, pois até então a existência de Deus não podia sequer ser colocada em dúvida sob pena de sanções eclesiásticas, sociais e judiciais. Mas, talvez, o motivo mais importante de seu ressentimento foi a subtração ocorrida em seus status de “Arautos da Verdade”, pois a “Verdade” já não existia como antes.

E quanto aos Filósofos, pouco se tem a acrescentar ao que já foi dito, somando-se apenas a inveja despertada como é comum nos casos das inteligências superiores.

De qualquer forma, essas reações são inevitáveis, pois toda genialidade tira os medíocres da sua zona de conforto e em vista desse abalo, só lhes resta protestar. O fato é que Kant, em sua grandeza, contrapôs-se ao Materialismo, mas sem cair em um Idealismo ingênuo ou radical. Ao contrário, elevou a doutrina ao patamar das essências, à Metafísica e com isso escreveu o seu nome de forma perene entre os grandes sábios da humanidade.


GLOSSARIO

A priori – o que já existe antes de qualquer experiência. Inato, herdado geneticamente.

Categorias do Pensamento – Para Kant, as Categorias são conceitos puros (ou definições isentas das imperfeições empíricas) do Entendimento e referem-se a priori aos objetos da Intuição em Geral como funções lógicas. Não são os gêneros das coisas, conceitos gerais, formas lógicas e nem, tampouco, são ficções. Não descrevem a realidade, embora tornem possível compreendê-la.  Kant fundamenta sua tábua de categorias na tabela das formas de Juízo, com a seguinte abrangência: Quantidade: unidade, pluralidade, totalidade (ie. a coisa em questão apresenta-se unificada ou é um ente entre vários semelhantes etc.); Qualidade: realidade, negação, limitação; Relação: substância e acidente, causalidade e dependência, comunidade ou reciprocidade entre agente e paciente; Modalidade: possibilidade, impossibilidade, existência, não existência, necessidade, contingência. Além destas, existem as chamadas “Categorias Predicáveis do Entendimento Puro” opostas aos predicamentos.
   
Causalidade ou Lei de Causa e Efeito – essa Lei prevê que certa ação ocasionará necessariamente um mesmo resultado.
   
Contingência – aquilo que ao contrário do “necessário” pode ser de outra maneira, pode existir ou não etc.
   
Empiricamente o conhecimento obtido através do que foi captado pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) e raciocinado logicamente.
   
Experiência ou Experiência Sensorial ou Empírica – aquilo que é captado pelos Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato). Os relacionamentos do indivíduo com o mundo exterior.
   
Fenômeno – aquilo que as operações mentais e/ou os Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) conseguem captar de algo ou alguém. Aquilo que é aparente, percebido pela Mente ou Consciência.
   
Necessária – a condição de qualquer coisa, acontecimento etc. ser daquela maneira, não podendo ser de outro modo.
   
Percepções* - além do sentido que normalmente lhe é dado, perceber algo ou alguém, o termo adquire em Filosofia significados mais amplos. Neste Ensaio usamos a definição que lhe deu Kant para quem é a Percepção que dá forma às Sensações através do uso das intuições que nos são inatas sobre o Tempo e o Espaço. Assim, temos a Percepção como “Entendimento”, “Compreensão”.

Razão Pura* – o raciocínio feito a partir de elementos a priori, a partir de dados relativos à essência das coisas.      O raciocínio feito a partir das “verdades primeiras” e fundamentais.

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Viernes, Mayo 23, 2014 - 20:39

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