Um cachinho daqui, outro de lá

Muitas das estórias que eu ouvi quando criança, foram contadas pelo meu avô. Muitas delas acabaram esquecidas. Por isso estou escrevendo tudo o que me lembro da minha infância, porque se eu não puder contar aos meus netos, eles lerão o que deixei para eles.
Uma das coisas que meu avô sempre fazia ao cair da tarde, era ir lá em casa tomar chimarrão com a mãe. Muitas vezes a erva-mate acabava e a mãe pedia que eu fosse ao armazém comprar. Aproveitava e já pedia mais uma porção de coisas e me dizia: tu não vais esquecer? Ao que eu retrucava: claro que não. E lá ia eu memorizando tudo o que ela havia pedido. Chegando ao armazém, sempre precisava esperar para ser atendida e continuava repetindo mentalmente os pedidos feitos pela mãe. Quando chegava a minha vez, eu trocava tudo. Pedia coisas que a mãe nem tinha me falado. Voltava para casa com uma sacola cheia de outras coisas e a mãe perguntava: Cadê a erva para teu avô fazer o chimarrão? E eu dizia: que erva? A senhora não pediu erva nenhuma. E lá ia eu novamente devolver o que tinha levado e fazer o pedido certo. O dono do mercado então me dizia: tem certeza que é isso que tua mãe pediu?
Tínhamos uma vizinha que estava sempre contando para a mãe as coisas que fazíamos. No nosso quintal, havia muitas árvores frutíferas e uma parreira que dava uvas muito doces e saborosas. Meu irmão costumava subir no muro que dividia a nossa casa com a tal vizinha. E lá ele ficava horas comendo uvas. Era um cachinho daqui, outro de lá (da vizinha). Quando ela aparecia na porta, ele corria e se escondia. E lá vinha a vizinha reclamar que o Davi ficava comendo as uvas da parreira dela. A minha mãe dizia: não é possível esse menino fazer isso. Com tanta uva aqui em casa e ele vai comer as suas uvas? E lá vinha a varinha de marmelo cantar nas pernas do arteiro. Quando o Davi via que a situação ia ficar crítica, ele desaparecia a tarde inteira. Ia lá para a casa da tia Izabel, ajudá-la com as compras do armazém. Quando voltava para casa, a mãe já havia se acalmado. Então ele dizia que estava na casa da tia (que confirmava a versão dele) e não em cima do muro, comendo as uvas.
É certo que meu irmão era muito inteligente, só que não gostava muito de escrever. Um dia a professora de português resolveu pedir aos alunos que fizessem um diário, contando tudo o que faziam durante o dia. O Davi, muito entusiasmado, começou o diário dele assim: hoje de manhã, levantei, escovei os dentes, tomei café e fui para a escola. No outro dia, ele repetia a mesma coisa. A professora então disse a ele que queria saber mais coisas, não só o que ele repetia todos os dias. Foi aí que ele se lembrou do meu diário. Um pequeno caderno com cadeado que eu havia ganhado da minha madrinha. Lá eu ia anotando tudo o que fazia. Ele então me fez mil propostas para que eu desse a chave do meu diário, para ele copiar alguma coisa. É claro que não dei e não lembro como a estória acabou.
Então a Páscoa chegou. Cada um de nós ganhou um ninho cheio de ovos e chocolates. Nessa época, éramos apenas três irmãos. Quando peguei a minha cestinha, sentei a um canto e comi tudo o que havia nela. Eu e meu irmão mais velho fizemos isso. O Davi, muito astuto, guardou a cestinha dele, para comer depois que não tivéssemos mais nada. Então, ele vinha para perto de nós com a cestinha dele cheia de chocolates e começava a comer. Como já havíamos comido o que havia nas nossas cestas, resolvemos pedir a ele que dividisse a cesta dele conosco. E ele dizia: quem mandou vocês comerem tudo de uma vez? Perguntaram se eu queria um pouco?
Acho que ele deve ter se lembrado, que eu não quis dar a chave do cadeado do meu diário. Se eu não dei a chave, ele não tinha obrigação de me dar um chocolate. Acho que era mais ou menos assim que as coisas funcionavam.

Débora Benvenuti

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Sábado, Agosto 16, 2014 - 17:05

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