Óperas, guia para iniciantes - AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR - Ensaio completo
Autoria – Nicolai (Carl Otto Ehrenfried – 1810-1849 – Alemanha)
Libreto – Hermann Mosenthal.
Personagens:
Sir John Falstaff* – Desajeitado conquistador – interpretado por um Baixo.
Senhor Ford – interpretado por um Barítono.
Senhor Page – idem.
Fenton – interpretado por um Tenor.
Slender– idem.
Doutor Caius – interpretado por um Tenor.
Senhora Ford – interpretada por uma Soprano.
Senhora Page – interpretada por uma Mezzo Soprano.
Anne Page – filha do casal Page. Interpretada por uma Soprano.
Nota do Autor* – a personagem John Falstaff* voltou a aparecer na Ópera epônima, que Verdi compôs ao encerrar a sua carreira.
Época e local
Windsor, Grã Bretanha, durante o reinado de Henrique IV(1553-1610).
Prefácio
Mas, apenas por si, a crítica aos costumes, mesmo que atualizadíssima como se disse, garantiria a enorme popularidade que a comédia continua a ter em nossos dias, se nela não estivesse toda a magia e encanto que a pena do bardo britânico produziu.
E o trabalho de Nicolai não destoa dessa excelência. Composta dentro de um padrão leve, elegante e delicioso, a sua Ópera reconta a hilária história das duas senhoras que se divertem a custa das vidas de outrem e, principalmente, à custa do obeso e desajeitado galanteador de paróquia, Sir Falstaff.
Porém, como no original sheaksperiano, a obra de Otto não se resume a ser apenas cômica, exercendo simultaneamente uma crítica social, vez que expõe uma série de comportamentos que não primam pela ética.
Em termos melódicos, merece atenção especial a “Abertura”, por ser uma peça musical sobejamente conhecida e admirada; assim como outros trechos executados no terceiro e no último ato.
E além das melodias, a obra tem a seu favor o conjunto de bons argumentos literários, uma primorosa mis em scéne e o brilho que as grandes vozes sempre lhe emprestam, haja vista que é uma das preferidas pelos grandes artistas do gênero.
Por isso, permanece como uma das mais executadas em todo o mundo e sempre colhendo o carinho e o aplauso das mais variadas plateias.
A primeira cena é ambientada em um típico pátio das cidades inglesas da época. À esquerda, vê-se a residência da família Ford e à direita a casa da família Page.
Em certo dia as senhoras Page e Ford recebem cartas individuais, assinada pelo obeso e atrapalhado Sir Falstaff, com declarações de amor do mesmo.
Embora use o honorável título de “Sir”, John Falstaff é um pobre diabo que vive cortejando e sendo rejeitado pelas mulheres do lugar, horrorizadas com sua aparência desagradabilíssima e com sua estupidez proverbial.
E com ambas não é diferente, pois a primeira mostra de sua estultice pode ser vista no fato de ele não ser capaz de escrever duas missivas diferentes, limitando-se a enviar cópias de uma mesma carta, para as duas.
Entoando um dueto cômico, as senhoras comentam as propostas do “conquistador barato” e não lhe poupam dos piores adjetivos e de satíricas gargalhadas. Porém, essas censuras não lhes satisfazem o desejo de se vingarem da petulância do infeliz e, por isso, tramam um plano para castigá-lo severamente. Uma lição de que ele não se esquecerá, dizem, antecipando o gosto da desforra.
Pouco depois entram em cena os respectivos maridos e o jovem milionário chamado Slender; o médico francês Dr. Caius e o jovem proletário de nome Fenton.
Os três são pretendentes à mão de Anne Page e assediam ao seu pai, o Senhor Page, em busca de consentimento para um futuro namoro e casamento.
Mas, como se poderia esperar, a preferência do velho recai sobre o milionário Slender, já que ele poderia melhorar a condição financeira e social de toda a família. Em consequência, ele rejeita os assédios do médico francês e, principalmente, o de Fenton através da conhecida melodia que termina com a expressão “Não e não! Três vezes não!” que acabou se tornando um dito popular.
Aliás, essa ária, é quase que uma síntese do clima burlesco que impera em toda a Ópera.
A segunda cena é ambientada no interior da casa da família Ford.
A senhora, destinatária de uma das cartas do canastrão Falstaff, cogita convidá-lo para que possa divertir-se com a sua estupidez; e para alcançar seu intento chega a ensaiar com uma cadeira de balanço um imaginário diálogo e romance com o mesmo.
Decidida, envia-lhe o convite e o boquirroto não demora em atendê-lo. Cheio de plumas e pose, ele logo aparece, sentindo-se um verdadeiro “Dom Juan”. Assim que se acomoda, entra a vizinha senhora Page e a dona da casa finge estar terrivelmente assustada dizendo ser o seu marido quem chegava e que, por isso, precisava escondê-lo no cesto de roupas de sujas.
O tolo, igualmente assustado, não se faz de rogado e entra rapidamente no recipiente, apesar do mau cheiro e da imundice que ali se deposita. Então, a senhora Ford e a senhora Page, lacram o cesto e mandam os empregados jogá-lo num rio de águas geladas.
Neste instante adentra o senhor Ford, que por ter sido alertado da presença do conquistador em sua vivenda, não disfarça a sua desconfiança e demonstra toda a sua ira. Transtornado pelo ciúme, nem percebe que aquele que procura está sendo levado no cesto de roupas sujas. Possesso, ele prossegue em sua busca irracional por toda a residência, enquanto a sua mulher finge-se de vitima inocente, angariando, assim, a simpatia dos demais, que condenam a brutalidade do esposo.
Porém, a favor do senhor Ford existe a carta enviada por Falstaff e com essa prova ele reverte as criticas e continua a sua procura. Sem ter como contra-argumentar a senhora Ford simula desmaiar e com essa farsa o ato se encerra.
§§§
O cenário do segundo ato acontece em uma taberna, no dia seguinte.
Rodeado por um Coro, Falstaff entoa uma canção com a qual brinda à vida e às aventuras amorosas. Logo depois, chega à mesa um homem estranho que se apresenta como Her Bach*. Em verdade, trata-se do senhor Ford, que se utiliza desse disfarce para saber o quê, realmente, aconteceu em sua casa no dia anterior.
E o estulto Falstaff, acreditando que foi, de fato, escondido devido à chegada do marido, não perde a oportunidade para se jactar de seus dotes de conquistador. Aliás, ele iria se vangloriar de toda forma, já que faz parte de seu caráter defeituoso recorrer sem pudores à mentira para tentar elevar-se junto aos outros. E ele relata o acontecido, exagerando de tal forma nas tintas, que o senhor Ford sente como se um punhal estivesse sendo cravado em seu peito a cada palavra que ouve.
Tomado pelo ódio, ele murmura entre dentes que a sua vingança será terrível. Que o crápula nem imagina o risco que está correndo.
Na sequência tem início a segunda cena, ambientada no jardim do casal Page.
Num canto do terreno, o milionário Slender entoa uma romântica ária, com a qual implora pela presença da amada Anne Page. No canto oposto, o também pretendente, doutor Caius, suspira pela mesma. Ambos externam seu amor pela mesma mulher, ignorando-se mutuamente. Logo depois, surge Fenton que canta um apaixonado “Romance” em louvor à musa dos três.
Anne, ao ouvir Fenton corre ao seu encontro e ambos trocam caricias e ternas palavras, enquanto zombam dos outros dois pretendentes.
Com esse clima, a segunda cena se encerra.
A terceira cena volta a ser encenada no interior da casa da família Ford, onde o senhor e a senhora discutem por conta da próxima visita que Falstaff planeja fazer. Em seguida entram em cena Slender, doutor Caius e o senhor Page. Por último, e para aumentar o clima confuso e burlesco, chega o falastrão Falstaff, disfarçado de mulher. O dono da casa não o reconhece na fantasia, mas já irritado pelo caos em sua residência, expulsa com rispidez a “velha mulher”, sem nem lhe perguntar o que desejava.
E nesse clima de completa anarquia, o segundo ato é encerrado.
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O terceiro ato é iniciado com Anne Page entoando uma grande ária, onde ela expressa o seu amor por Fenton.
A segunda cena, ricamente colorida, é encenada em um belo parque, no qual está acontecendo a tradicional “Masquérade*” da cidade, na qual, quase todos os habitantes do lugar participam do folguedo, fantasiados de animais ou de Seres mitológicos.
No fundo da cena, à esquerda, avista-se um pavilhão de caça, onde um coral oculto canta, em louvor à Lua, a mesma música que já fora executada na “Abertura”.
À distância escuta-se o repicar de um sino anunciando a meia-noite. Nesse momento, Falstaff, convidado para a festa pelas senhoras Ford e Page, faz-se notar desfilando fantasiado de caçador. As mulheres não deixam de notar o ridículo de sua figura e não lhe poupam as zombarias. E para completar a pilhéria “juram-lhe” amor eterno.
O clima festivo a todos contagia e a tudo harmoniza e pacifica.
Um grande coral, vestido como “Elfos”, entoa uma suave canção e nesse momento, Anne Page, deslumbrante, adentra a cena a bordo de uma carruagem luxuosamente decorada com flores magníficas. Vestida como “Titania*”, ela recebe com um carinho o também galante Fenton, fantasiado de “Oberon*” e, em seguida, entoa a célebre ária em que suplica a proteção da verdadeira Titânia para o amor de ambos.
Pouco além, porém, o clima harmônico será interrompido, pois o senhor Page, também fantasiado como caçador, acompanhado por um grupo de iguais, avista o boquirroto Falstaff e todos lhe aplicam uma grande surra. E como se não bastasse a primeira punição, outro grupo numeroso, fantasiado de “moscas” e de “vespas”, ataca-o sem piedade. Alquebram o fracassado conquistador barato.
E a violência só arrefece quando um dos maridos percebe que o pobre diabo, em sua estupidez, foi mais uma vitima de suas mulheres, que um aproveitador de fato. Um bobalhão que se tornou o joguete de um jogo cruel das Comadres de Windsor. Com isso decidem perdoá-lo.
E este perdão acentua a felicidade que se desenrola na cena. E tão amistoso se torna o clima que até o amor de Anne pelo despojado Fenton é aceito pelos pais da moça, que lhes dão a benção para se casarem.
É o final feliz que se pode esperar de uma Ópera feita com o objetivo de passar uma mensagem otimista e positiva. Uma obra “Buffa” em seu melhor estilo de censura social e de comicidade.
Otto Ehrenfried Nicolai na cidade de Konisberg, Prússia, que também é famosa por ter sido o berço do grande filósofo Immanuel Kant.
Nicolai passou grande parte de sua curta vida na Itália e ali compôs quatro óperas no idioma local, o quê, certamente, contribuiu para a popularização de seu trabalho, vez que para lá se dirigiam as atenções do mundo, quando o assunto era a “Grande Arte”.
Contudo, ter feito as suas músicas no idioma nativo não diminui, em absoluto, o seu mérito. O sucesso que Nicolai obteve então se deveu exclusivamente ao seu enorme talento e à sua rara sensibilidade, como bem comprova a aceitação universal que a sua música continua a ter, nesses tempos em que a importância do idioma tornou-se relativa.
Após o sucesso na “Bota”, Nicolai regressou a Alemanha em 1842, já como um compositor consagrado. Em Berlim fundou a Sociedade Filarmônica, que foi o embrião da atual Orquestra Filarmônica de Berlim, famosa em todo o mundo.
Através da “Sociedade Filarmônica” ele deu nova vida ao cenário local da música erudita graças às várias atitudes que tomou, sendo a mais famosa delas, o célebre “Concerto Anual”, cuja renda era destinada aos próprios integrantes da Companhia. Esse Concerto ainda acontece anualmente, sob o nome que recebeu em homenagem ao seu criador: “Concertos de Nicolai”.
A Ópera que vimos aqui é a sua obra mais importante. Foi levada aos palcos berlinenses em 1849 e já na estreia obteve um estrondoso sucesso junto à crítica especializada e ao público em geral, que se extasiou com o divertissement de bailados e coros.
A sua profusa e alegre encenação da famosa comédia de Willian Shakespeare arejou o gênero, que, em regra, apresenta-se solene, pesado, melancólico.
Lamenta-se, todavia, que o compositor pouco tenha desfrutado desse êxito retumbante, já que veio a falecer apenas dois dias após a estreia. A ele, portanto, deve-se registrar o mais profundo respeito e a mais sincera admiração.
São Paulo, 24 de março de 2015.
Nota do Autor* - Masquérade é o nome dado a um tipo de folguedo italiano que se constitui de cenas com personagens fantasiados ou “mascarados” de figuras mitológicas ou satíricas. Os bailados são acompanhados por alegre e contagiante música polifônica.
Nota do Autor* – Titania e Oberon – a rainha e o rei das fadas e dos Elfos. Shakespeare já os citara em sua peça “Sonhos de uma noite de verão”, onde são as personagens principais.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.
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