Gastou o silêncio num riscar de fósforo

Gastou todo o silêncio num riscar de fósforo e acendeu a noite nos lábios, quase cansado de esperar por quem não vinha.
As palavras por dizer queimavam-lhe a garganta. Segurou-se num copo meio vazio, meio cheio de emoções contraditórias.
A sua vida fora sempre feita de equilíbrios precários, de arames estendidos no seu caminhar despido, sem desejar ter nascido ensinado.
Hoje porém era um dia especial. Já não tinha medo de amar, nem medo de cair. Decidira arriscar dizê-lo à contorcionista das sextas-feiras, no bar de todos os dias.
Mas ela hoje não veio, por isso tinha a sensação de que lhe faltava tudo: um sorriso distribuído generoso, um bambolear de rabo que arrastava sem querer a anca e os homens, um olhar anatomicamente impossível.
Sobrava-lhe um vazio que começava na sua frustração e acabava na vertigem de se saber só.
O ruído era uma volúpia de palavras incompreensíveis. O barman falava consigo mas só conseguia ouvir os movimentos que este fazia com a boca, num chocalhar de maxilares e dentes.
Abriu e fechou os olhos para sair daquele pesadelo mas não conseguiu.
A mulher da cobra, que bebia um líquido verde na mesa do fundo, acercou-se de si silenciosa como víbora. Abraçou-o pelo tronco, envolvendo-o de braços longos, que lhe entraram pela roupa e lhe afagaram o rosto.
Sentiu um calor mais frio que gelo no beijo, as veias a retesarem-se, a pele quase a estalar, um fio de sangue a escorrer do seu ouvido em forma de búzio.
Foi salvo por um palhaço que não parava de rir, e que saiu de dentro do bombo da banda, disparado como bala.
Caiu sobre a rede de segurança desamparado e o público bateu palmas até lhe doer as mãos.
Cansado da vida, de um destino de circo em tudo impregnado, subiu ao mastro mais alto da tenda por uma escada de corda, largando a cada degrau uma memória: o abraço que lhe faltou, a amizade que não sentiu, a mulher que não amou.
Chegou à gávea no topo quase liberto. Vinte metros abaixo rufavam os tambores e seguiam-no os holofotes de uma ribalta com a qual não se identificava.
Ergueu os braços e lançou-se decidido por um túnel de luz sem fundo.
Os gritos sucediam-se junto ao chão, e os olhos de tão abertos pelo desespero, não viram umas asas longas que riscaram o ar como um fósforo, num segundo que de tão efémero cabia nele o mundo.
Numa qualquer sexta-feira, direi aquela mulher que não veio naquele dia, o quanto me custa a palavra e a minha própria desdita, pelo homem que todos os dias por mim arrisca, pelo rastilho que é a minha escrita.

Submited by

Domingo, Diciembre 21, 2008 - 18:29

Prosas :

Sin votos aún

admin

Imagen de admin
Desconectado
Título: Administrador
Last seen: Hace 43 semanas 5 días
Integró: 09/06/2010
Posts:
Points: 44

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of admin

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Amor {Empty title} 7 647 09/05/2009 - 12:10 Portuguese
Poesia/Amor {Empty title} 8 871 09/03/2009 - 13:36 Portuguese
Poesia/Fantasía {Empty title} 14 3.202 08/30/2009 - 13:05 Portuguese
Poesia/Amor {Empty title} 12 1.712 08/21/2009 - 21:38 Portuguese
Poesia/Amor {Empty title} 8 1.757 08/18/2009 - 22:42 Portuguese
Poesia/Tristeza {Empty title} 10 2.103 08/17/2009 - 21:58 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 10 413 08/14/2009 - 22:07 Portuguese
Poesia/Alegria Love is in the air.. 3 2.206 08/14/2009 - 16:14 Portuguese
Poesia/General Apocalipse 3 869 08/14/2009 - 16:09 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 6 903 08/11/2009 - 12:56 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 4 2.037 08/10/2009 - 15:41 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 16 1.805 08/06/2009 - 23:07 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 6 1.004 07/18/2009 - 18:33 Portuguese
Poesia/Fantasía {Empty title} 10 1.788 07/18/2009 - 18:05 Portuguese
Poesia/Meditación Imbecilidade 1 2.393 07/12/2009 - 20:32 Portuguese
Poesia/Aforismo Contra mão 2 2.150 07/10/2009 - 19:34 Portuguese
Poesia/Desilusión Espionagem 2 441 07/09/2009 - 18:38 Portuguese
Poesia/Fantasía {Empty title} 3 1.162 07/08/2009 - 23:07 Portuguese
Poesia/General O Verdadeiro Amor da Soberana 3 2.131 06/30/2009 - 20:48 Portuguese
Poesia/Fantasía {Empty title} 8 1.772 06/25/2009 - 20:27 Portuguese
Poesia/Gótico As Virgens Medievais, as Feiticeiras. 2 1.776 06/25/2009 - 19:46 Portuguese
Poesia/General {Empty title} 8 2.048 06/23/2009 - 21:53 Portuguese
Poesia/General O Poeta Rico 3 1.325 06/19/2009 - 22:30 Portuguese
Prosas/Fábula Alice no País das Mentiras 1 4.071 06/17/2009 - 21:20 Portuguese
Poesia/Dedicada Falsos Amigos. 6 2.005 06/17/2009 - 16:52 Portuguese