ENDECHAS I

I

A Armi

Já de illusões não vivo
Meu bem, sou desgraçado:
Nenhum mortal se esquiva
Do que lhe ordena o Fado.

Em vão com mil sorrisos
Os candidos Amores
Me afagam, me promettem
Dulcissimos favores:

Em vão meiga esperança
Me diz que em brandos laços
Hei de expirar de gosto
Nos teus mimosos braços.

Suspeita roedôra
Me gasta o frouxo alento,
De imagens pavorosas
Me enluta o pensamento;

Murmura na minha alma,
Onde mil serpes cria,
Ouço-lhe em surdas vozes:
«Não lograrás Armia.»

Usa sonhar venturas
A credula esperança;
Só entre mortas cinzas
No tumulo descança:

As lagrimas nos olhos,
No peito enfrêa os ais,
Doura crueis desastres
A miseros mortaes.

Em rapidos momentos
Aos deuses me egualou,
Phantasticas delicias
Na idéa me traçou.

Mil vezes, doce amada,
Fingiu ao meu desejo
Patentes os thesouros
Que recatava o pejo:

Mil vezes (ah ! Foi sonho,
Mas sonho encantador)
Me fez voar comtigo
Á gloria, ao céo de Amor.

Ali do térreo manto
Minha alma solta, e nua,
Philtrando-se em teus labios,
Ia aggregar-se á tua;

Ali teu brando peito,
De Amor altar sagrado,
De accezos pensamentos.
Só visto, só tocado,

A' boca melindrosa, .
Leda, suave, e pura
Suspiros te enviava
De gosto, e de ternura.

Mas eis que a luz se extingue
Da fulgida illusão,
E escura, horrenda nuvem
Me abafa o coração.

Tenaz desconfiança.
Que ás fibras se me afferra,
Garras mortaes vibrando,
Move aos prazeres guerra.

Subito, abrindo as azas,
As azas côr de neve,
Foje de horror a instavel
Turba risonha, e leve.

Debalde a companheira
Fiel dos desgraçados
Quer suspender o adejo
Dos jubilos alados:

Por corações tranquillos,
Soltos das leis de Amor
Te abrigas, te repartes,
Oh bando voador!

Nos ais, Armia, em tanto
Minha alma se evapora,
Victima lamentavel
Da angustia, que a devora:

E além do turvo Lethes
Zelos temendo achar,
Phrenetica deseja
Poder-se aniquilar.

Se o racional tivesse
Do irracional a sorte,
Se as almas se apagassem
Ao halito da morte;

Feliz de um terno escravo,
Feliz de um triste amante,
Remindo-se do jugo
No derradeiro instante!

Mas ai que a turba insana
Dos méstos amadores
Té lá no reino escuro
Vae suspirar de amores.

Sobre os elysios prados
Inda a sydonia Dido
Guarda as fataes memorias
Do Teucro fementido;

Entre os formosos pomos
O golpe inda roxêa,
Inda goteja o sangue,
Que a neve purpurêa.

Tambem nas margens tuas,
Oh rio somnolento,
Sem demandar o abysmo
Do eterno esquecimento,

Carpindo a bella esposa,
(Ah! Que não póde Amor !)
Arde, suspira o thracio,
Miserrimo cantor.

Ali aos olhos d'alma
Lhe retrocede o dia
Em que applacára os monstros
Da região sombria;

Ali no pensamento
O estygio rei figura;
Vê-lhe os terriveis olhos,
A torva catadura:

Vê-o fervendo em raiva,
Troando em ameaços,
Porque um vivente ousára
Tocar-lhe os negros paços.

Eis fere a maga lyra,
Que infunde o céo no inferno:
De assombros assaltado,
Cede o tyranno eterno:

Acóde aos igneos olhos
Doce, invencível somno,
Baquêa o férreo sceptro
Sobre os degráus do throno.

Até que em si volvendo
Do subito lethargo,
Contempla Orphêo saudoso,
Desfeito em pranto amargo.

Soffrendo um ar benigno
No carrancudo aspecto,
Mostra sentir piedade
Do mavioso objecto.

Co'a féra mão, que firma
Dos réos a eterna pena.
Para indagar seus males
Em fim ao vate acena.

Inquire a causa ignota,
Pergunta o gran motivo
De lhe invadir o imperio,
De ir aos infernos vivo.

Mal que as razões lhe escuta
Quebranta a lei da morte,
Manda que á luz do dia
Volva a gentil consorte.

Mas ai, que o vingativo,
Terrifico Plutão
Une á maior das graças
Pezada condição !

Nas férvidas entranhas
Feroz despeito occulto
Quer da amorosa audacia,
Quer despicar o insulto.

«Vae (diz ao triste amante)
Que um não sei que me obriga
A permittir que os passos
Eurídice te siga;

«Mas nega-lhe teus olhos
Em quanto profanares
Co'a temeraria planta
Meus horrorosos lares.

«A' clausula, que imponho
Se execução não dás,
Sem a chorada esposa
Rever o mundo irás.»

Ah malfadado ! Acceitas
O rigoroso artigo,
Mas subito exp'rimentas
Um barbaro castigo.

Pela mordaz saudade
Roto o cruel preceito,
Olhas, e vês em sombras
Teu jubilo desfeito.

Sumindo-se a teus olhos
A cara esposa vae,
E a teu inutil grito
Responde ao longe um « ai! »

Soltando-se, apoz ella
Te vôa o coração,
Para alcançal-a emprehendes
Tudo, mas tudo em vão:

Ás ferrolhadas portas
Do amplo salão ruidoso
Tornas de novo, e queres
Entrar-lhe o seio umbroso:

Extráes um som da lyra
Mais tentador, mais terno,
Mas o divino encanto
Não move o surdo inferno.

D'est'arte a meiga esposa
Do misero amador
Foi por amor ganhada,
Perdida por amor.

Ah brando Orphêo! Não chores,
Supprime os ais que lanças,
Turbado o pensamento
Com tão crueis lembranças.

Eu sou mais desgraçado,
Tu não padeces tanto,
Tu logras, tu desfructas
O premio de teu pranto:

Aquella, que soava
Na tua doce lyra,
Qual suspirava d'antes
Inda por ti suspira:

Eu, miserando objecto
De dôr, e de piedade,
Junto á fatal balisa
Da triste humanidade,

Queimando o véo dos Fados
Co'a luz da phantasia,
Vejo futuros males,
Vejo traições de Armia.

Dura exp'riencia antiga
No coração me diz
Que o lacrimoso Elmano
Jamais será feliz.

Oh domador das féras !
A doce, a bella ingrata
Que o laço da existencia
Me sólta, me desata,

Eurídice é nas graças,
Mas na paixão, na fé,
No afago, nos extremos
Eurídice não é.

Votos de amor lhe escuto,
Mas no benigno rosto
Um animo lhe observo
Para a traição disposto.

Os bens instaveis préza
Da lubrica Ventura,
E o desvelado Elmano
Não tem senão ternura.

Na mente a cada instante
Diviso (oh céos ! Que horror !)
Volver a ingrata os olhos
A novo adorador;

Sacrificar excessos
Aos dons da varia Sorte,
Sumir-me os tristes dias
Na escuridão da morte:

E, ainda não contente
Da enorme aleivosia,
C 'o presumpçoso amante
Pizar-me a campa fria:

Ali, entre seus braços,
Para o cruel fartar,
Do extincto Elmano as cinzas
De imprecações manchar.

Mas trema a deshumana
Se desleal me fôr,
Trema, que até na morte
Terá dominio Amor.

Fará surgir do Averno
Meus manes vingadores,
Para terror, e exemplo
De corações traidores.

Qual o afanoso Orestes,
Das Furias acossado,
Sempre terás, oh féra,
O meu phantasma ao lado;

Como a continua sombra
Perseguirei teus passos:
Não folgarás ao menos
Do meu rival nos braços.

Irei lá no silencio
Da erma noute escura
Turbar-te os deleitosos
Mysterios da ternura.

Quando (ai do mim) sentires
Teu coração tremer,
Voar tua alma ao cume
Do rapido prazer,

«Perjura! (hei de gritar-te
Com pavorosa voz)
Eu sou Elmano, e venho
Punir teu crime atroz.»

Verei de horror gelar-se
Teu animo infiel,
E o nectar de teus gostos,
Impia, mudar-se em fel:

Teu complice odioso
Verei, dando um gemido,
Fugir-te d'entre os braços,
Convulso, espavorido.

Armia, ah não te exponhas
D'um numen ao furor:
Se as leis de Amor não cumpres,
Teme o poder de Amor.

Submited by

Domingo, Septiembre 20, 2009 - 23:13

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

Bocage

Imagen de Bocage
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 13 años 51 semanas
Integró: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Bocage

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LVII 0 984 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LVIII 0 2.291 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LIX 0 883 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LX 0 1.049 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXI 0 1.745 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXV 0 1.135 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVI 0 1.412 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVII 0 1.483 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVIII 0 1.030 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXIX 0 1.347 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XL 0 808 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLI 0 1.873 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLII 0 3.200 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLIII 0 900 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLIV 0 1.378 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLV 0 1.167 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVI 0 1.134 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVII 0 602 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVIII 0 1.464 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXII 0 1.017 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXIII 0 1.099 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXIV 0 1.015 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXV 0 1.180 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXVI 0 746 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXVII 0 634 11/19/2010 - 15:55 Portuguese