APÓLOGOS XIX

19

O lobo, a raposa, e a ovelha

Estando o lobo doente
Sem se poder arrastar,
E em necessidade urgente
De exercer, de ensanguentar
O rijo, faminto dente:

Ao vêr entrar pela gruta
A raposa a visital-o,
Lhe disse: «Ai comadre astuta !
A' mingoa esmoreço, estálo,
A fome commigo lucta.

«Tu conheces a amisade
Com que ha dous annos te trato:
Vale-me por caridade,
Vae buscar por esse matto
Allivio á minha anciedade.»

— «Eu vou cuidar no teu bem»
Responde o falso animal,
E parte: menos porém
Para livral-o do mal,
Que para o fazer a alguem.

De serra em serra caminha,
Até que vê desgarrada
Uma innocente ovelhinha;
«Topar-te (diz a malvada)
Foi teu bem, e é gloria minha.

«Crê que a raposa não manga,
Sou de ingenua condição;
Nenhum vivente me zanga;
Todos amo, á excepção
De gallo, gallinha. ou franga.

«Tanto, amiga, pôde em mim
O dó de expostas vos vêr
Aos crueis lobos, que vim
Felizmente hoje a obter
De vossos males o fim.

«Dos lobos o rei voraz
Quasi em artigos de morte,
Carpiu suas acções más;
E com piedoso transporte
Jurou ás ovelhas paz.

«Fez este promettimento
Por si, e seus adherentes;
Não receies fingimento;
Personagens eminentes
Não fazem vão juramento.

«Agora pede a razão,
Quer da cortezia o termo,
Que venhas sem dilação
Visitar o illustre enfermo
Em signal de gratidão.

«A sua cova não dista
Muito aqui d'este logar,
D'aquelle outeiro se avista:
Toca pois a caminhar,
Vem tu seguindo-me a pista.»

Aquillo, que se deseja,
Quão facil se conjectura !
A ovelha de gosto arqueja,
E, graças dando á ventura,
Vai seguindo a malfazeja.

Entram por aquelle horror,
E a conductora ladina
Vendo da ovelha o terror,
Lhe disse: «Chegae, menina,
Beijae a pata ao senhor.»

A repugnancia vencendo
Com bem custo a coitadinha,
E callada extremecendo,
Pouco a pouco se avisinha
Ao bruto feroz, e horrendo.

Vibrando os olhos scentelhas,
O tyranno lhe afferrou
Dente, e garra entre as orelhas:
D'esta arte se confirmou
A paz dos lobos, e ovelhas.

Ingenuo, tem conta em ti !
No mundo ha nmitos enganos,
Eu o sei, porque os soffri:
Os bons padecem mil damnos
Julgando os outros por si.

Submited by

Domingo, Octubre 11, 2009 - 16:38

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

Bocage

Imagen de Bocage
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 14 años 19 semanas
Integró: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Bocage

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LVII 0 1.323 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LVIII 0 2.704 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LIX 0 1.060 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LX 0 1.168 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXI 0 2.150 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXV 0 1.235 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVI 0 1.568 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVII 0 1.732 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXVIII 0 1.161 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXXIX 0 1.500 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XL 0 984 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLI 0 2.233 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLII 0 3.346 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLIII 0 981 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLIV 0 1.899 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLV 0 1.465 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVI 0 1.559 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVII 0 677 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLVIII 0 1.660 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXII 0 1.111 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXIII 0 1.163 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXIV 0 1.249 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXV 0 1.239 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXVI 0 864 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XXVII 0 819 11/19/2010 - 15:55 Portuguese