EPISODIOS TRADUZIDOS X

A Colombiada, ou a fé levada ao novo mundo

POEMA DE MADAME DU BOCAGE

(Traducçao do Canto I)

Eu canto o Grenovez, de Urania alumno,
Da inveja, e dos infernos perseguido,
O nauta, que do Tejo foi tão longe
Desencantar os indicos thesouros;
Que da aurora ao poente o mar domando,
Para a fé conquistou mundo ignorado.
Oh mãe de Orphêo (que pela voz de um filho
Typhis, Jason no pégo enfeitiçaste !)
Consente, para mais, á minha audacia
Que do Ismario cantor imite os versos.
Se bosques attraíu, monstros, e Furias,
Homens enternecer meus sons não podem ?
Musa, do sexo teu o imperio estende,
Une á feminea voz a lyra eterna,
Mostra aos humanos que tambem no Pindo,
Assim como em Cythéra, os cantos nossos,
Caros aos deuses, os heróes afamam.
Do solsticio do inverno á florea quadra
Phebo precipitava os turvos dias,
Desde que sobre os mares, vencedora
Das procellas horrísonas, vagava
Longe do patrio seio a frota ibera.
De ilha em ilha evitava estereis climas
O próvido Colombo: a seus desejos
Ditoso, grato asylo em fim se off'rece,
Mostrando a seu favor sorrir-se os Fados.
Este heróe, nunca trémulo ante o p'rigo,
Na bonança acautéla as tempestades.
Desce a noute; elle teme infesto escolho,
E, até que a luz diurna o polo aclare,
Congregando os baixeis áquem do porto,
Assim de seus guerreiros falla aos chefes:
«Rivaes d'esses, que o Bosphoro venceram
Compete a vosso, ardor mais alto premio:
Os males nossos tem nos céos a palma.
Quem das avitas glorias dorme á sombra
Perde na escuridade a luz da origem.
Nós, que havemos tégora em perigos cento
Calejado a constancia, eia, surjamos
N'essa fronteira, incognita enseada:
De Fernando os pendões ali se arvorem.
Dado que féros povos nos insultem,
E' nosso escudo o céo: proezas nossas
Para estender seu culto a vida egualem.»
Diz, e d'est'arte lhe responde a turba:
«Claro almirante ! Affronta o mar, o inferno,
Que todos sem terror te seguiremos
Aos dous pólos do mundo. Os annos vôam;
Mas da injuria dos seculos vorazes
Nada tem que temer lustrosos feitos.»
Ferve a taes vozes o soldado, espera
Novos mundos ganhar, vêr outra Colchos.
O nome dos heróes, que honraram Grecia
Distinguia os baixeis. Um pinho annoso,
Filho robusto da hyperbórea terra,
Velas do Argus sustenta em aurea pôpa.
O prudente Matheus, rival de Typhis,
Guia um novo Jason, conduz Colombo.
O cauto chefe, que a seus olhos sempre
Tem de Helena os irmãos, sobre estes lenhos
Atear-se a discordia viu cem vezes.
Ali Julio encaminha illustre cabo,
Mendes segue Pinzão; traidor Ximenes,
Tu reges Telamon. Busca-se Alcides,
Ah! Vãmente: escarcéos o devoraram;
Torres, seu director, já não existe.
Patria do meu heróe, Genova illustre,
Fieschi, em ti nascido, a seus trabalhos,
A seus feitos magnanimos se aggrega;
Alba no Orphêo conduz, e Boile, o docto.
Este sabio as estrellas não medita;
O iman, subjeito aos erros, não consulta:
Olha sómente o céo para imploral-o,
E o céo por elle annue á sancta empreza.
A gloria esquecerei, que haveis ganhado,
Invencivel Cortez, Pizarro affouto?
Ambos, um no Calais, outro no Zetes,
Dos alados heróes tomando o vôo ?
Vós de Castella, e de Africa os ginetes
A' expedição levaes. Morgan valente
Dogues no Hilas açama, exercitados
Em jogo marcial. Por chefe o tractam
Hastins, Arcy, Murrai, Stanhope, e activos,
Para alongar seu nome, a patria deixam.
O Neustroo Marcoussy, caro a Colombo,
O segue no Thesêo, que lhe é subjeito:
Boulainvilliers, Amboise, e Aidie, e Argennes,
As suas leis submissos, lá florecem.
Triumphantes no Sena estes guerreiros,
Tentam novas emprezas: sobre os mares
Quer o valor francez dar pasmo ao globo.
Pelêo, e Ajax, na Andaluzia armados,
Pendem de Margarit, e de Garcia.
Vasos mais leves, de que escondo os nomes,
Em torno do almirante as ondas talham.
Dos chefes, que perdêra, o fim deplora;
Mas, applacando a magoa nos que restam,
Sem temor voga ao porto, e junto d'elle
Dos pilotos á voz se ferra o panno.
Em tanto que a esperança industriosa
Promette aos hespanhoes mil bens, mil palmas;
Que Diana, esparzindo o raio incerto,
Nas aguas a folgar delphins convida;
Por ellas, onde brilha a sua imagem,
Manso, e manso os baixeis co'a terra emproam.
Mas entes infernaes, da Grecia deuses,
Que tem na India altares, e outros nomes,
Oppõem-se ao Genovez, de quem se temem.
Para traçar taes monstros, Musa minha,
Restituir Cythéra a Venus podes,
Podes restituir o Olympo a Juno:
Satân em meus pinceis Platão simelha,
E os manes do Cocyto as ondas passam.
Boiá, Teules, Zemês, estygios numes,
Que adora cego povo, a Europa ignoto,
Ajuntam de seu rei os estandartes.
No ruido de asperrimas correntes
As tartáreas phalanges se annunciam;
Serpentes, que das igneas testas brotam,
Os silvos formam lá, que em Lemnos se ouvem
Quando n'agua se extingue o ferro ardente.
Teules, que tem na Estyge Eólio mando,
Leva aos pés de Satân o horror, que inspira.
Nos seus olhos em braza é sangue o pranto,
Tem de um lado o terror, tem de outro a morte;
Das tormentas a chave á mão lhe é sceptro.
D'atra nuvem de enxofre, onde fluctuam
Mil cabeças medonhas, surge a d'elle,
E o turbulento inferno, á voz do monstro,
Como as aguas do Lethes, se abonança:
Té no perjuro, no traidor, no ingrato
O remorso emmudece alguns instantes.
«Rei d'esta região sombria, horrenda,
(Vozêa a Furia insana) onde aras tuas
Se perfumam de incensos, no indio clima
Do Tejo os filhos soffrerás que reinem?
De um Deus no outro hemispherio as leis se adoram,
Nosso inimigo eterno em parte o globo
Attrahiu com seus dons: ah! Se elle outr'hora
Cavou o immenso. abysmo onde penamos,
Golpe fatal, que nos prepara, ao menos
Cuide-se em rebater. Por novo mundo
Elle quer alongar suas conquistas,
Elle quer transmittir-lhe as leis, e altares.
Que! Debaixo dos seus os templos nossos
A' gloria sua servirão de base,
Gloria, que se eternize em nosso estrago!
Sem defender teu jus victorias cedes ?
Pondera que um mortal, do Averno injuria,
Contra nós o universo a armar se atreve.
O instructo Genovez, nos males firme,
Conhece o equóreo fundo, e mede os astros,
Conquista os corações, subjuga as almas.
«De tão forte guerreiro emprezas temo...
Trance me é duro elogiar contrarios,
Mas o assustado orgulho ingenuo falla:
Vencido do pavor, se os riscos peza,
Jío interesse, e no p'rigo é só que attenta.
A esquadra, que receio, o termo attinge
De alta intenção: meu unico regresso
E' no centro das ondas sepultal-a.»
«Entrega aos furacões (Satân responde)
Esse povo atrevido: os elementos
Todos em damno seu se desenfrêem:
Derrama no universo a raiva tua.»
O mar treme de ouvil-o, e todo o inferno
Do embate de mil mãos faiscas saltam,
Como das rochas sahem, que rompe o ferro;
Ou quaes costumam rebentar de corpos
Que inflamma o choque electrico. Eis o abysmo
Ao magico motim responde em eccos,
Como em crébros trovões o céo rebrama.
A passos gigantêos caminha Teules
Ás horriveis abobadas profundas,
Onde as cohortes procellosas fremem.
Abre co'a ferrea chave as bronzeas portas,
Que, rapidas volvendo-se nos gonzos,
Por pouco o monstro audaz não derrubaram.
Os subterraneos Sues, que assaltam nuvens,
De cem respiradouros arrebentam,
E o mar, em monte e monte, aos céos altêam.
Que os heróes lhe exp'rimente um Deus permitte
Ao negro inferno. Subito a bonança
Se converte em tormenta escura, enorme.
Gemem de susto as Alcyoneas aves;
Nas ondas os baixeis arrebatados
Como que vem dos céos no mar sumir-se.
Entre as torrentes, que derretem nuvens,
Mãos congela o terror, e as prende aos cabos:
Tudo estala, e, deixado o panno aos ventos,
Debalde implora os nautas amarellos.
Tres vezes viu Matheus luzir a aurora
Desde que a frota errante em mãos de Eólo
Foge da praia, a que aproou Colombo.
Arte fallece em tanto mal; e os gritos
C'o estrepito das ondas misturados,
Vão rebombar no pólo. O grande chefe,
Colombo, cuja voz já não se escuta,
Nas preces do pontifice encurvado,
D'est'arte, a bem commum, seu Deus invoca:
«Creador, que, presente em toda a parte,
Ares, terras, estrellas equilibras,
Tu, que, remindo um povo, abriste as vagas !
Podes pôr freio ao mar co'um volver d'olhos.
Queres nossos baixeis sumir no abysmo?
Se o fim da grande empreza é mallogrado.
Ai! Quem trará teu nome a terra ignota ?
Por ti, por ordem tua o p'rigo arrosto,
E quantos me ladêam. Sorte avêssa
A teu sabor, gran Deus, mudar-se póde:
Somente o favor teu nos punge, e alenta.
Terra nos dá, senhor, que prometteste
A nossos males, ás fadigas nossas.»
Todos applicam dolorosos prantos
Do sacerdote á voz; do p'rigo o susto,
Principio de mil votos, enternece
O numen bemfazejo. Em breve as ondas
A superficie alizam. Duros ventos,
De espirito celeste agrilhoados,
Outra vez, a tremer, entram nas grutas.
Mal que os Notos aos Zéphyros consentem
Reconduzir bonança aos amplos mares,
O Norte em nuvem franca off'rece um astro,
Dos navegantes esperança, e guia.
Este lume os consola, e qual descende
Sobre os mimos de Abril vapor suave,
E lhe ergue o tronco, e lhe reforça os fructos,
Dos ares o socego ás almas vôa,
E o que o medo abateu, o esforço eleva.
Colombo, que jámais provou receios,
Ao seu Typhis commette as rédeas do Argus;
Quer que a maior das Ursas deixe á dextra-,
E, esperando a manhã, vogue ao poente.
O horisonte branquêa: o fulvo Apollo,
Occulto inda aos mortaes em atrios de ouro,
No carro matinal roxêa os mares,
E manso dia azul promette aos nautas.
O ar se esparze de aromas, quaes a Arabia
De Africa, e de Asia nos confins vapóra.
Porque farte o desejo aos navegantes,
Este imprevisto bem de outro é seguido:
O astro diurno aclara extensa costa,
Que, vária, os olhos assaltêa, encanta.
Rochas de um lado sobre o mar pendentes
A industria imitam, sem favor da industria.
Por mão da Natureza affeiçoadas
Em monstros, em gigantes, o murmurio
Geram de vozes cento: ali parece
Os povos d'este clima estarem juntos.
Equóreo movimento, abrindo as penhas
Em um, em outro assalto, entre ellas fórmam
O rispido fragor, que ás praias Ecco
Traz sobre as plumas dos loquazes ventos.
O outro lado do porto, aos nautas franco,
E flóreo, fructuoso amphitheatro;
De arêas de ouro se orla, onde aguas puras
De lindas conchas o atavio ostentam.
Mil pescadores para encher canôas
Nas ondas a colheita em vão não buscam.
De ferteis margens habitantes ledos,
Que terror vos infunde a esquadra nossa !
Pejadas redes d'entre as mãos vos fogem.
Em quanto, por ganhar vossa alma incerta,
Vos mostram dons, que vos destina o Chefe,
Elle as velas dirige ás praias vossas.
O prumo consultado abona o porto,
E, vogando sem custo a prôa ás margens,
Abre facil ingresso em fundo rio.
Verdes arbustos este asylo assombram
Arroios mil nas proximas collinas
Escorregando vêm de pedra em pedra.
Arte em nossos jardins pintar costuma
Estes brincos gentis da Natureza:
Lá por cascatas humedece as hervas
Deslizada corrente. As amplas cheias
Valles diversos na carreira abrindo,
Fecundos campos, e acceleram fructos,
Bem que no mesmo gráo do hisperio clima,
D'estes o estio inferteis os não torna:
Dos logares, que em fabulas se enfeitam,
Sois, oh ilhas, que eu canto, imagem viva.
O outono, que a miudo as annuvia,
Inundadas jámais as viu de chuvas;
Sem que aos olhos o dia apouque os lumes,
De nuvens brando véo tempéra as calmas.
Quando o ethereo cume o sol fervia,
Tutelares Favonios, adejando,
As fadigas do Ibero amaciavam.
Lança ferro, e cubica de repouso
Faz com que as aguas deixe, e salte em terra.
N'um visinho rochedo olhada turba
Lhes determina o passo, e pasma ao vêl-os.
O chefe, que a conduz, por cava senda
Vae dirigindo o pé. Da face as rugas,
As cãs dispersas, e avultados membros,
Sem arte, ou vestidura, o gráo lhe indicam
Melhor que inutil séquito pomposo:
A sua candidez encanta, e brilha
Mais que o ouro dos reis, que a Persia acata.
Se os trajes, as feições, e iberios lenhos
Attráem co'a novidade o velho agreste,
A voz da gente sua, e d'ella os gestos
Aos nossos europeus a vista assombram;
E egualmente admirado o vario povo
Se contempla entre si. Com alma ingenua,
Sem medo os indios a Colombo exprimem,
Apontando-lhe os céos, que o julgam vindo
Lá da estancia immortal das divindades.
O almirante caminha ao chefe inculto:
Moço europeu (que em ilha solitaria
N'aquelle mundo novo achado havia,
E na esquadra acolheu) de lingua serve.
Que dita inopinada ! (é crivei fosse
Divina permissão) Penetra o velho
A linguagem do interprete, que explica
Os desejos do herée n'esta substancia:
«Oh tu, que d'este povo o rei pareces,
(Se é a hospitalidade aqui virtude,
Qual teu rosto benefico denota,
Em quanto estes amenos, faustos campos
Com vista esperançosa observo, admiro)
Sabe que injusto, que invasor projecto
Aqui me não conduz por vastas ondas.
O infortunio me traz: sê meu refugio,
E além dos mares teus prometto em breve
Ir de teus beneficios, de, teu nome
Informar o universo.» A voz do chefe
Os espanhoes a reverencia uniam,
No campestre ancião fitando os olhos.
O indio dá puro credito ao que escuta:
Seu coração lavado ignora o medo,
Assim como as astucias desconhece.
A seus amigos diz (sómente amigos
Comitiva lhe são) — «Porque se agrade
Dos alimentos nossos o estrangeiro,
Exquisitos, gravissimos aromas
Dêm aos nossos liquores nova graça.»
No chão curva o joelho, assim fallando,
Quanto a caduca edade lh'o toléra;
Passo a passo depois Colombo arrosta.
«Ente divino (diz) que o mar talhaste
Sobre monstros alígeros, a terra,
Onde has baixado, te dará sem termo
Os bens de que a fornece a Natureza.
Reino aqui: meu desejo é contentar-te.
Segue-me aos valles nossos, vê, contempla
Tão dítosa morada; os teus sequazes
Terão lá, como tu, seguro asylo.»
Segue o chefe europeu do velho os passos;
Com elle vae o interprete, e apoz elles
Caminham Marcoussy, Morgan, Fieschi,
E os mais abalizados filhos do Ebro.
Toma tudo um ser novo ante seus olhos:
Os fructos, e animaes n'aquelles bosques,
Carregadas as arvores de incenso,
Nada tem que arremede os campos nossos;
O sol espraia ali fulgor mais vivo.
Se da planicie aérea o leve bando
Do alambre, e do rubi lá veste as côres,
Seus desabridos sons a orelha offendem,
Não sabem, philomela, o teu gorgeio.
Lá vive o colobri, lá tem seus ninhos
Ave, cuja plumagem em nossos climas
De Réaumur por arte inda é formosa.
Selvatico animal n'aquellas plagas
Do homem gosa o valor, feições, destreza;
O alóes em cada seculo florece
Com grande estrondo ali, e o povo indiano,
Que um leite nutritivo extrae do côco,
De uma folha em vapores a preguiça
Costuma embriagar. Serve á molleza
Do algodoeiro o fructo; entre os manjares
Saboroso cacáo lhe suppre o nectar.
O ananaz, o cajú, e o mangue, e o cedro
As brandas virações aromatizam:
Com mil nomes ali, não só com estes,
Deusa das flôres, Zéphyro embellezas.
Ledos os hespanhoes, de bosque em bosque
A voz consultam do Nestor que os guia.
Era meio de seus fructos, aves, sombras,
De tão novos objectos, e tão varios
Elle a virtude, os prestimos ensina
Ao pasmado europeu, que o ouve, e o segue:
Se o velho devagar dirige os passos,
O que exprimindo vae resume o tempo.
De altos pinhos á sombra emfim se avista
A porta da selvática vivenda.
De enfadosos insectos ignorada
Esta aprazivel gruta, aos olhos deixa
Gostar sem turbação calados somnos.
De Apollo os raios pelo cimo aberto
Dos muros no alabastro a luz desparzem.
Este amplo abrigo os seculos cavaram;
A equidade, a candura, a paz o escudam,
E unico esmalte é ser gentil donzella,
Que ao velho amavel a existencia deve.
Nua, qual Eva está: sua innocencia,
Egual á de Eva, sem pudor aos olhos
Off'rece encantos seus, lhe é véo mimoso:
As Graças não conhece, e estão com ella.
Outro atavio algum lhe não consentem
Do que a plumage azul com que lhe abrangem
A candida cintura: é mais formoso
Este adorno, porém, que o de Acidalia:
O objecto, em que reluz, seu preço ignora.
Livres madeixas mollemente ondeam
No seio virginal, por onde apenas
Os thesouros de amor vem apontando,
Que ainda não crestára o patrio clima.
Dos hespanhoes o numero, a presença
No tenro coração lhe infunde assombro,
Nos olhos divinaes lhe pinta o medo,
E as delicadas mãos, que elegem fructos,
Um momento, a tremer, suspensas ficam.
«Não temas (diz o pae) Zamá, não temas.
Filhos dos céos, dos mares, ou do acaso,
Estes entes, que vês, sem perturbar-nos,
Hão de participar d'esses manjares
Que para mim dispões com arte, e gosto.
«Eis de palmeiras em tecida casca
A seccos peixes acompanham aves;
Torquazes pombos vem, e os dons de Ceres
Tu, fecunda banana, ali compensas.
A indiana mocidade, o velho, a filha,
E a turba dos ibéros, assentados
De pavilhão grosseiro á grata sombra,
No banquete frugal têm todos parte,
E n'abundancia a precisão se alegra.
A reinar começava entre os convivas
Amiga confiança, o bem que apura
Depois de longo tracto os gostos nossos.
Apenas a vital necessidade
Seus desejos fartou, sempre admirado,
O bom pae de Zamá, o ancião benigno,
Que pelo hospede seu de si se esquece,
C 'os olhos em Colombo, assim lhe falla:
(O interprete ao heróe diz o que escuta.)
«Caro estrangeiro, cujo nobre aspecto,
Cuja doce eloquencia me annuncia
Que a tua geração provém dos numes;
Vendo que ás precisões da humanidade
Te submetto o destino, eu me atrevêra
Dos homens entre o numero a contar-te,
Se acaso nossos paes por seus maiores
Não soubessem que, sós em todo o mundo,
Os unicos senhores somos d'elle.
«Gerados pelo Sol no terreo seio,
Dia, e dia apressamos seu regresso
Com votos, e com supplicas; sentimos
Que só por seu fulgor tudo respira.
Acatam-lhe o poder da noute os lumes,
A luz dos raios seus absorve os astros.
Ethereas flammas, que nos ares vemos
Tantas vezes caír, foram, por dita,
Principio de teu ser? Vens d'esses mundos,
Aonde por incognitos caminhos
A morte nos conduz, e onde sem conto
Mulheres divinaes o gosto encantam ?
Os fructos, as delicias, os liquores
D'aquelles formosissimos logares,
Dando-te por ventura essencia nova,
Entre nós as feições tornou discordes?
Expõe-me os fados teus, dize que meios,
Que assombros, que mysterios te hão guiado
Por entre o ares á terrena estancia ?
Tua sabedoria, e teus desastres
Me commovem, me attráem; recente affecto
Me interessa por ti, por teus destinos.»

Submited by

Domingo, Noviembre 1, 2009 - 19:03

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

Bocage

Imagen de Bocage
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 14 años 2 semanas
Integró: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Bocage

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXXV 0 779 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXXVI 0 1.117 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXXVII 0 1.137 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXII 0 1.195 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXIII 0 1.280 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXIV 0 1.313 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXV 0 976 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXVI 0 1.339 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXVII 0 1.420 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXVIII 0 904 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXIX 0 1.362 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXX 0 2.161 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXI 0 1.009 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXII 0 851 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXIII 0 1.496 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXIV 0 1.126 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LXXIV 0 1.209 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS XLIX 0 896 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS L 0 1.653 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LI 0 1.435 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LII 0 1.332 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LIII 0 1.176 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LIV 0 1.475 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LV 0 1.117 11/19/2010 - 15:55 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPIGRAMMAS LVI 0 1.496 11/19/2010 - 15:55 Portuguese