A morte não é só GAME OVER.

Acorda. Acorda. Acorda! Gritava consigo própria tentando fugir do seu pior pesadelo. Já o tinha há vários anos. Sempre o mesmo. Sempre a mesma excitação, o mesmo desespero, os mesmos sentimentos a engoli-la até ela perder a racionalidade e gritar enquanto o chão se projectava cada vez mais perto de si. Não sabia se o chão estava perto ou não; estava escuro como breu, era como se a própria luz soubesse que o fim estava próximo e preferia impedi-la de ver o seu fim; simplesmente tinha de esperar até que o sonho acabasse com um grito.

Normalmente assim que supostamente embatia o seu corpo leve e frágil no chão acordava de rompante , na cama a transpirar por todos os poros pensando ainda que tinha acabado de cair e estatelar-se. Acordava com medo, com a boca aberta num grito surdo. Era mais que um sonho, era uma promessa do que aconteceria. Todas as semanas o mesmo. Todas as semanas acordava alagada em lágrimas e suor, lágrimas de medo. Medo do que iria acontecer. Medo do escuro, medo de tudo.

Naquele sonho ela não via nada; não conseguia tocar em nada, sentia-se vazia. Muitas vezes associava isto à morte. Para ela a morta não era simplesmente aparecer no ecrã a dizer "GAME OVER, MORREU", não. Para ela era algo muito mais profundo. Muitas vezes se perguntava o que era a vida, qual o sentido da vida, para onde iríamos nós após a morte. Certamente não era só viver uns quantos anos, morrer e desaparecer. O que iria acontecer à nossa mente? Ao nosso espírito? Ao nosso pensamento? Iria desaparecer? Era isso? Simplesmente fechava os olhos e deixava de pensar. Zummm. a mente fechava-se?

Não conseguia, simplesmente não era capaz de o aceitar. Enchia-a de medo. Não podia ser. Tal como a aterrorizava o facto de algum dia algum familiar ou amigo próximo morrer. Não aguentava. Era.. impossível. Muitas vezes dava consigo a pensar na sua morte, ou na dos amigos e Na sua reacção com isso. Imaginava-se a chorar, a perder o mundo. E era isso que acontecia, chorava. E muito. Tentava então mudar de pensamento, para algo feliz. Mas não conseguia. Mais cedo ou mais tarde a sua mente voltava ao mesmo: à morte.

Acorda. Acorda. Acorda! Não conseguia. Naquele dia era diferente. Sentia o ar a passar por si à medida que descia, cada vez mais naquele precipício sem fundo. Mas.. tinha de ter fundo. Ou era assim a morte? Seria assim? Cair, cair, cair e nunca se levantar? Como seria a morte? Não queria saber. Queria parar aquele momento e que nunca mas nunca morresse ninguém seu conhecido. Não queria que o tempo passasse. Assustava-a-a pensar que dali a uns vinte anos os seus avós já ali não estariam; já não ralhariam com ela. Era aterrorizador.

O mais estranho de tudo.. Às vezes tinha uns pensamentos.. não, não eram pensamentos. Eram flashes, imagens. Imagens que a aterrorizavam, mas não as sabia identificar. Eram coisas assustadoras. Quando estava calada, silenciosa, tinha-as. Ou quando ia dormir. Não sabia o que eram. Eram.. coisas que a assustavam; identificava-as como morte também. Tinha medo.

Naquele dia era diferente porém. Ia descendo cada vez mais. A pouco e pouco imagens surgiram na sua mente. Amigos, colegas, conhecidos, o namorado, a família, os seus animais de estimação, os seus professores. A sua vida passava-lhe à frente dos olhos. Ia morrer? Não, não podia. Tinha uma vida à sua frente.

Tinha?

Não, não tinha. Já era idosa.

Era?

Não, era nova.

O que era ela?

Uma criança com mente idosa? Uma idosa com mente de criança?

Nada disso. Era ela mesma.

Acorda. Acorda. Acorda! E ela acordou. Abriu os olhos com força. Não! Ainda estava no sonho. Seria um sonho? Ou era a realidade? Começou a pensar. Nada. Não conseguia pensar. Mas sabia.. por dentro sabia que aquele sonho era muito grande, grande demais. Sentiu-se a parar, o ar à sua volta a estabilizar. Tinha parado, sozinha  naquela imensidão de ar vazio, escuro, indolor, inodor. Não aguentava. Gritou. Nada. Gritou. Um som surdo. Nada. Não conseguia gritar.

Fechou os olhos. Aquilo ia acabar. E .. lembrou-se.

Tinha tomado comprimidos para domir, queria descansar. Estava farta dos sonhos; queria ter um sono profundo sem sonhos. Tinha deixado a lareira acesa, posto muitos pedaços de lenha para não arrefecer. Sentara-se a ver um filme na sala, aquecida pela lareira. Adormecera. Ninguém em casa. Janelas fechadas, estava frio na rua.

Somou dois mais dois.

Acontecera. Finalmente. Sabia o que lhe tinha acontecido. Tinha razão, os sonhos eram um prenúncio. Porque se deixara levar por eles? Se não o tivesse feito... Mas, para quê criticar? Estava feito.

Sorriu. Não podia perder agora. Morrera. E ali estava ela.

Começou a sentir uma dor no peito. O que se passava? Ouviu gritos. Chamaram-na. Não quis ouvir, o silêncio era melhor. Sentiu-se a ser puxada para cima.

Não! Queria o fundo. Ouviu gritos mais altos. Novamente dor. Não! Queria o fundo! Queria silêncio! Não queria nada mais!

O ar começou a movimentar-se. Viu-se a ser puxada. Para cima. Para a superfície.

Fechou os olhos. Sentiu uma lágrima a escorrer-lhe pela cara até terminar nos seus lábios. Passou a língua pelos lábios ressequidos e pensou na sua família. Como desejava ouvir a sua voz mais uma vez. "A minha filha... não...". A sua imaginação já lhe pregava partidas. Era isto a morte? Imaginar constantemente a voz das pessoas que amava? Desejou estar com eles, vê-los a sorrir, e beijá-la uma vez mais. Faria tudo diferente. Seria melhor pessoa.

Enquanto pensava o seu corpo ia sendo puxado a pouco e pouco para cima, para a ténue luz que começava a brilhar cada vez mais. Começou a ouvir ruídos, pessoas, máquinas, choros, gritos, e finalmente um apito insurdecedor que começou a apitar constantemente em vez de um só apito.

Abriu os olhos. Estava a sonhar. Era a imaginação. Viu a sua mãe ao fundo. Até a morte lhe dava sonhos? Ela olhou para ela. Estava a chorar. Profundamente. "Porque choras mãe?" a sua voz era rouca. A sua mãe não a ouviu. Olhou para cima. Um homem branco sorriu. Seria Deus? Deus não usa toucas brancas.

"Finalmente. Não sabes que não deves dormir com a lareira acesa? Estávamos a perder a esperança"

"Eu estou morta"

A sua mãe ouviu Deus. Veio a correr e abraçou-a enquanto a beijava.

 

Comentem por favor; eu sei que é preferível simplesmente ler e nada dizer, mas é importante para mim ouvir o que têm a dizer, para assim conseguir melhorar. Obrigada

Maryaha/Myriam Yohahan *

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Domingo, Marzo 27, 2011 - 18:37

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Maryaha

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Comentarios

Imagen de Tiago Silva

Muito Bom

Gostei muito de ler. 

Imagen de AlvaroGiesta

A morte não é só GAME OVER.

Olá boa noite

Fiz há pouco um longo comentário que depois não consegui inserir.

Problemas da net.

Este vai ser mais curto. Gostei do que li.

Seu texto, sendo conto ou podendo dar origem a um romance, está escrito num português puro, de fácil leitura (pelos perídos curtos e excelente pontuação) e segue uma linha de raciocínio lógico prendendo o leitor até ao fim.

Não é daqueles textos de difícil entendimento pela liberdade de pontuação (ou ausência dela) como se vê muito por aí, dando liberdade a quem os lê de poder especular. Eu também escrevo muitos poemas sem pontuação e numa sequência circular, para permitir ao leitor  interpretá-los segundo a sua lógica de racicínio especulativo. Mas entendo que a prosa deve ser perfeitamente entendível na leitura, ainda que deva conter obrigatoriamente na narração aquele mistério que leva o leitor para lá dos limites do imaginário.

Imagen de cmcmachado

Comentários.

Menina, vai sair um lindo romance daí, lindo, Sabes me sentia assim , uma criança velha pois não tinha vivido tudo ainda! e uma e uma velha criança , com sonhos e renascendo, resurgindo, para a vida sim , abraços , somos parecidas, pinturas, animais , leituras, escritas e tudo mais , crianças, velhice , natureza e respeito acima  e tudo, vivas.

Imagen de RosaDSaron

Poetisa,deixaste-me

Poetisa,deixaste-me deslumbrada com teu escrito!

Parabéns e continue!

É lindo!

Abraços ternos!

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