Estrela da Manhã

Mergulhava os pés no aquário, porque tinha medo das piranhas que habitam águas distantes.
Um carrossel invisível rodava na sua cabeça, em voltas e voltas, cavalinhos coloridos, luzes, música e balões.
Vertigem.
Colou o nariz ao vidro liso, transparente.
Primeiro, o seu reflexo. Depois, os olhos redondos do peixe. Enormes, da ilusão de óptica que lhe transfigurava os sentidos.
Mergulhou a cabeça, esperando secretamente o aroma a maresia, algas e azul.
Cheirava a peixe. E a comida de peixe. Frustração.
Não era um carrossel real.
Na verdade, tinha batido com a cabeça numa trave do sótão, estupidamente baixa.
Com violência, foi ao chão. Consequência. Choque frontal com a realidade.
Nem o sono dos objectos lhe permitia voar.
Recolheu-se ao casulo, e aguardou a metamorfose.

Um luar imenso inundava de sombras o horizonte.
Recortava a copa das árvores, camuflava constelações.
O coração desta casa, guarda um tesouro.
Secreto baú, repleto de lendas imemoriais.
Catacumbas de um passado, ainda presente nos olhos vazios que pelas matas se passeiam, ou se dependuram nos ramos, em noites como esta.
Tropeçam no caminho, para lá do silêncio e da escuridão.
Reflexo do sonho que ficou.
Perfume esquecido, de um momento que passou.
Desfilam insectos pela parede da concha, onde guarda moedas de ouro e esqueletos de animais domésticos, que se entreteve a coleccionar.
Dos confins do deserto, percorre sete léguas por dia, por um café com sabor a café.
Gastou o tempo, em tantas viagens.
Sombras mortas, espaços vazios.
Abismos.

O sol tingia o horizonte e o aquário de cor-de-laranja e reflexos dourados.
Nadava com os peixes, a sereia de água doce, com olhos a arder de cloro.
Lenta mansidão de horas densas, pesadas, como um céu de trovoada.
O ar, abafado. Tontura inevitável.

Meu reino inatingível, invisível aos olhos.
Carrossel de imagens, palavras, e memórias.
Alucinação.

Se enlouquecesse de uma vez, deixariam de a procurar.
Se enlouquecesse para sempre, deixaria de acreditar.

De vez em quando, lembrava-se de limpar o pó aos sapatos de cristal.
Gostava de os ouvir retinir, um contra o outro, devagarinho.
Voltava a guarda-los em seguida, numa caixa blindada à prova de sonhos impossíveis, com memórias sepultadas, e lágrimas, e gritos, e recortes de jornal.
De um tempo em que era nova e linda, e ainda não tinha morrido por dentro.
Por tanto, tanto esperar
Um príncipe esquizofrénico, que fugiu depois do baile, nem ele sabia porquê…
Por tanto, tanto esperar
Que os morcegos se esquecessem de bater na sua janela, e parassem de a atormentar.

Lá fora, no caminho, há raízes feitas de mãos humanas mumificadas.
Ás vezes avança com cuidado, para não as pisar.
Outras, quase corre, para não as ver.
O perfume das rosas fermenta com o calor, numa estranha combustão atordoante que enlouquece os pássaros.
Ouviu música tocar no salão, ao fundo das escadas, e o coração descompassado.
Seria uma festa?
Com um brilho nos olhos, escolheu um vestido, penteou o cabelo, resgatou os sapatos.
Rodopiou encantada, pela magia do momento.
Desceu as escadas, com medo de acordar.
Tropeçou num degrau.
Estatelou-se no vazio.
Escuro e solidão.

Dorida na alma, arrastou o vestido e o corpo quebrado ate ao 1º andar.
Mãos vazias de histórias. Cabelo em desalinho.
Reparou que, na queda, lascara um sapato.
Só então soltou as lágrimas, e os laços, e os nós, e as convenções, num pranto torrencial.
Sentiu-se viva, pela primeira vez em muitos anos.
Porque a inércia, é a pior das prisões.
A mais cruel e permanente.
Auto-mutilação da existência dormente.
Vago acenar à madrugada.
Munida de uma coragem assustadora e desconhecida, queimou cartas e retratos, arrumou a casa e a mente.
Depois sorriu.
Fez uma lista de tudo o que ainda queria fazer.
Com estrelas a brilhar dentro dos olhos, despediu-se do peixe, e partiu.
Fora da porta e das grades, respirou fundo.
Contemplou o deserto à sua volta.
O silêncio inquebrável, e a estranha paz suspensa, descendo com o pôr-do-sol.
Sentou-se no chão, por momentos.
E docemente, adormeceu.
 

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Viernes, Abril 15, 2011 - 04:16

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