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Eurico, o Presbítero - A Aurora da Redenção

Desprezamos essa multidão de pagãos, e nenhum temor há em nós.

Sebast. de Salamanda: Chronicon.

O espetáculo que oferecia a caverna de Covadonga na noite ime­diata àquela que se despediu com os sucessos das margens do Sália era mui semelhante ao dessa outra noite em que Pelágio rece­bera a nova do cativeiro de Hermengarda; ‑ espetáculo semelhante, mas personagens, em parte, diversas. Na vasta lareira, próxima da entrada da gruta e a que servia de chaminé uma larga fenda dos rochedos superiores, ardiam alguns cepos de carvalho, que, repassa­dos de fogo durante longa noite de novembro e abrasados até à me­dula, davam apenas uma chama tênue e azulada, cujo fraco esplen­dor se perdia na claridade brilhante de cinco ou seis fachos, encos­tados pelas paredes irregulares da caverna. Do numeroso tropel de guerreiros que naquela memorável noite se tinham erguido à voz do moço duque de Cantábria, travando das armas, apenas se viam agora, estendidos nos grosseiros leitos formados das peles de animais bra­vios, dez cavaleiros, que no seu profundo sono, no transfigurado gesto e no desalinho dos trajos faziam antes lembrar o jazer de cadáveres, que o repousar de vivos. Perto do lar aceso, assentado em escabelo tosco e com a cabeça encostada ao braço firmado numa anfractuosidade do rochedo, via‑se, também adormecido, um guerreiro em cujo rosto os sulcos das rugas e o cavado das faces davam, porventura, mostra de mais dilatada vida do que, na realidade, era a sua. O sono parecia nele unicamente o entorpecimento das forças físicas exaustas e não o repouso do espírito; porque, de quando em quando, os membros se lhe agitavam por estremeção violento, ou se lhe descerravam os olhos, e moviam os lábios, como se tentasse falar: mas sussurrava apenas alguns sons inarticulados, e cala de novo em torpor, que não tardava em ser outra vez interrompido. Num recesso da gruta, formado pelos ressaltos das rochas e que ser­via como de câmara ao jovem capitão dos foragidos, parecia também jazer um vulto sobre telas mais delicadas que os despojos de animais silvestres, as quais eram, talvez, ainda restos do anterior luxo dos paços de Tárraco; talvez, vestígios da passada grandeza dos duques de Cantábria e da antiga civilização gótica. Um pano de púrpura franjado de ouro pendia da abóbada natural, preso nas estalactites seculares que dela desciam, semelhantes aos pendurões do teto de um templo normando‑árabe. A luz dos fachos mal alumiava aquele recanto afastado; mas nessa meia‑claridade branquejavam roupas alvas de mulher, que também parecia agitada por sonhos dolorosos, se é que o seu gemer de espaço a espaço, o soluçar contínuo, o agitar­‑se de instante a instante não eram antes indícios dessa modorra febril, dessa hesitação entre o dormir e a vigília, semelhante ao arquejar do moribundo que já perdeu a consciência da vida que vai fugindo. No meio desta cena de duvidosa quietação uma personagem velava. Era o moço Pelágio, que, atravessando a caverna a passos lentos e cautelosos, de um para outro lado, ora aplicava o ouvido aos movimentos irrequietos e ao respirar agitado do vulto branco, ora parava à entrada da gruta, fitando os olhos na escuridão exterior e escutando com todos os sinais de impaciência de quem espera alguém que tarda. Depois, dirigia‑se para o lado do vermelho brasido e, cruzando os braços, punha‑se a contemplar o torvo aspecto do cavaleiro do escabelo com um olhar de simpatia e compaixão, misturado do que quer que fosse de admiração e de terror involuntário.

Estes movimentos sucessivos do mancebo repetiram‑se umas pou­cas de vezes: por fim, a figura membruda e selvática do lusitano Gutislo assomou no arco irregular que servia de pórtico àquela habitação roubada pela desventura às feras.

‑ Voltaram? ‑ perguntou em voz baixa ao bárbaro do Hermínio o duque de Cantábria.

‑ Desmontam agora ‑ respondeu Gutislo: ‑ Vélido, o centenário, disse‑me viesse ver se repousavas.

- Repousar! ‑ replicou Pelágio, sorrindo tristemente e olhando para o sítio onde o pano de púrpura ocultava o vulto branco.

‑ Que venha: que venha já.

Gutislo desapareceu. Daí a alguns momentos, o centenário en­trava.

Era um guerreiro, cujos cabelos brancos, cujos meneios pausa­dos e cujo olhar penetrante davam testemunho de prudência e discrição. Parecia inquieto e assustado.

‑ Que novas nos trazes, Vélido? Qual caminho seguem os árabes?

‑ O que prouvera a Deus eles nunca houvessem encontrado. Ao amanhecer os cavalos africanos beberão as águas do Deva; os sons das trombetas agarenas ouvir‑se‑ão retumbar pelas encostas de Concana e ecoarão nos alcantis do Auseba. Vagueamos dispersos a tarde inteira e a maior parte da noite. Pelas alturas do sul e do oriente reluziam ao longe as armas dos infiéis, e depois as suas almenaras. Os pastores astúrios, que já nos esperavam no vale de Onis, onde todos os esculcas se ajuntaram à hora da terça noturna, nos relataram então o que, sumidos por entre as brenhas, tinham podido observar de perto...

‑ E quais foram as novas dos pegureiros? ‑ interrompeu vivamente Pelágio. ‑ São muitos ou poucos os inimigos? A que distância se acham?

‑ Pouco depois do amanhecer devem ter descido os últimos outeiros do Vínio, e quando o sol brilhar em todo o seu esplendor poderão pisar o solo, até hoje livre, do vale de Covadonga. Os pas­tores viram os nossos cavaleiros transporem o bália: viram des­penhar‑se o roble, e os infiéis recuarem espantados. Mas, esquadrões após esquadrões desciam das montanhas, e dentro em breve na margem do rio não descortinavam por grande espaço senão tropéis de árabes. Ao pôr do sol ainda as gargantas das serranias golfavam torrentes de infiéis, e as selvas retumbavam com os golpes de ma­chado. Antes de anoitecer, uma ponte espaçosa estava lançada sobre o Sália num sítio menos profundo, e os inimigos começavam a atra­vessá‑la. Entre os primeiros que passaram aquém, asseguram os zagais terem visto muitos cavaleiros que, pelos elmos e couraças, pelas cateias e franquisques, eram, sem dúvida, godos.

‑ São as tiufadias da Tingitânia: são os soldados réprobos do conde de Septum, que Deus conduz aos desertos das Astúrias para que os abutres e javalis tenham lauto banquete de cadáveres.

Pelágio e o centenário voltaram‑se: a voz que proferira estas palavras soara atrás deles. Era o cavaleiro do escabelo, que desper­tara às primeiras palavras do capitão dos esculcas e que, firmados os cotovelos sobre os joelhos e com a cabeça entre os punhos, escuta­ra todo o diálogo.

‑ Quê?! ‑ exclamou o mancebo ‑ ainda há pouco havíeis cerrado as pálpebras, e já despertastes, Eurico?

‑ Duque de Cantábria, desde muito que o sono é sempre breve para mim: há muito, que nestas veias ele não derrama consolação nem frescor. Adormecido ou desperto, o meu espírito vê sempre ante si imutável a realidade, e a realidade é medonha. Oxalá pudesse esta alma dormir!

‑ Bem o sei ‑ replicou o filho de Favila. ‑ A imagem da pátria, santa e melancólica, se misturava sanguinolenta nos vossos sonhos do dormitar. Algumas palavras soltas que proferieis...

‑ Ah! ‑ interrompeu o cavaleiro, pondo‑se em pé rapidamente, com um gesto de espanto. ‑ Eu falava?! Eram tão extravagantes os meus sonhos!... Que palavras me ouvistes? Delírios, loucuras!... dizei; não é assim?

E olhava inquieto para o mancebo, como se receasse que um segredo importante lhe houvesse fugido dos lábios.

‑ As vossas palavras eram quase ininteligíveis ‑ respondeu Pelágio. ‑ Perdida para sempre; para sempre! ‑ Eis o que repetíeis muitas vezes; e depois: ‑ Não resta uma esperança!... Oh, tão formosa e gentil!... Homem infame, que tinhas em mais o ouro que a virtude e a glória, maldito sejas tu! ‑ E então os dentes vos ran­giam, e, entreabrindo os olhos, o vosso aspecto era terrível! Pensáveis, por certo, na Espanha, na formosa terra dos godos, e a indignação vos arrancava maldições, contra Opas e contra os que venderam pelo ouro dos árabes as aras de Cristo e a liberdade dos seus irmãos. Engariaram­‑vos, porém, os sonhos, cavaleiro! A esperança resta ainda, e a Espanha não se perdeu para sempre! Vós mesmo agora o dissestes. Abundante cevo de cadáveres humanos vão ter os abutres e javalis das montanhas.

‑ Tendes razão! ‑ replicou o guerreiro, deixando‑se cair de novo sobre o escabelo e voltando à postura anterior. ‑ Os meus lá­bios mentiram ao coração, se disseram que para a Espanha não havia esperança. Mas a mentir não tornarão eles, porque estes olhos só hão de cerrar‑se, já agora, em sono bem profundo, no qual não haja sonhar! Depois dos combates é que se dorme bem placidamente! É então que eu dormirei.

Era sinistro e lúgubre e, todavia, tranqüilo o modo com que ele o dizia. Pelágio, preocupado pelas novas que o centenário trouxera, não reparou no sorriso doloroso que enrugava as faces de Eurico e, voltando‑se para Vélido, prosseguiu:

‑ Oh! Abdulaziz busca a última guarida dos cristãos, os últimos aripenes de terra livre da Espanha; persegue‑nos como a bestas­‑feras?... Pois bem! Vai, e dize aos nossos cavaleiros que antes de romper a manhã estejam a cavalo com a lança em punho prontos a marcharem para a entrada do vale. Os fundeiros e mais bucelários de pé que se preparem para subir aos píncaros sobranceiros por ambos os lados do arraial. Dize‑lhes também, a uns e a outros, que sem demora eu serei com eles.

O centenário saiu.

Pelágio chegou‑se então aos que dormiam e, despertando‑os um a um, fê‑los aproximar da boca da gruta:

‑ Vede vós a estrela matutina que empalidece? ‑ disse, apontando para um breve espaço do firmamento, onde, através do portal irregular, se via fulgir o planeta Vênus. ‑ Não tarde muito que ela desapareça mergulhada na vermelhidão da aurora. Essa verme­lhidão tingirá em breve o céu, como o sangue há de hoje tingir a terra: mas confio em Deus que, também, como após ela há de surgir o sol envolto no seu fulgor glorioso, assim a cruz e o nome dos godos se alevantarão triunfantes, após o sangue vertido por esses dois objetos santos e queridos, que nos têm alimentado a energia da alma no meio dos trabalhos e perigos. Guerreiros! os árabes seguiram as vossas pisadas. Abdulaziz e Juliano, um insensato e um renegado, ousaram aproximar‑se ao antro dos leões de Espanha, e os leões hão de despedaçá‑los. O céu condenou‑os: diz‑me íntima voz que ele os condenou, inspirando‑me um estratagema a que os infiéis não poderão resistir.

No gesto de Pelágio, ao proferir estas palavras, estava estampada a expressão da confiança, do esforço e do entusiasmo; daquele en­tusiasmo que ele sabia comunicar aos que o ouviam e que, na situa­ção quase desesperada em que se achavam os foragidos das Astúrias, fizera com que lhe cedessem voluntariamente o mando supremo os mais velhos e experimentados guerreiros.

Pelágio expôs em breves palavras os seus desenhos para obter dos árabes um triunfo completo. O caminho que seguiam devia forçosamente trazê‑los às gargantas das serras. Colocados na entrada do vale, uma parte dos cavaleiros oferecer‑lhes‑iam débil resistência, cedendo pouco a pouco e retirando‑se para o topo daquela espécie de caldeira cortada nas montanhas: apenas aí chegados, abandonando os ginetes, precipitar‑se‑iam para a caverna, aonde já se teriam acolhido as mulheres, crianças e velhos dispersos pelas tendas do campo, e em cujo estreito e escarpado portal poucos pelejadores basta­vam para resistir à multidão dos inimigos. Então o grosso dos cava­leiros, em cilada nas selvas que se dilatavam para as alturas, à esquerda da garganta do vale, acometê‑los‑iam pelas costas, enquanto os bucelários, sumidos pelas penedias, lá no alto dos barrocais que formavam como um muro de ambos os lados do arraial, fariam chover sobre os infiéis as armas de arremesso, sem que a estes fosse possível repeli‑los, ignorando os caminhos que conduziam àqueles lugares, na aparência só acessíveis às águias e aos abutres, que ali tinham, de feito, a sua guarida solitária.

‑ Mas a vós, cavaleiros ‑ concluiu Pelágio ‑ que provastes extremos de esforço na correria a que devo a salvação de minha pobre irmã, a vós pertence o acabar a vitória que o Senhor nos vai dar. Há mais de um ano que as nossas mãos se têm calejado a aluir os penhascos que coroam o teto desta caverna; há mais de um ano que raro dia se passa sem que o suor das nossas frontes os ume­deça, ao arrastarmo‑los lentamente para a borda do despenhadeiro que se eleva a prumo sobre o ádito deste recinto. Aí, acompanhados dos meus robustos cantabros, e dos bárbaros do Hermínio, será o vosso pelejar: aí, quando os inimigos, apinhados ante aquele portal, se arremessarem contra os guerreiros que o hão de defender; quando as trombetas dos que os ferirem pelas costas soarem uma toada de morte, e os invisíveis bucelários fizerem chover sobre os infiéis os tiros de funda, as setas e os dardos, cumpre que esses rochedos que, lá no cimo, parecem embebidos na penedia, calam rapidamente e esmaguem os esquadrões cerrados dos inimigos da Espanha. Pelo caminho talhado na rocha sobre as nascentes subterrâneas do Deva, ireis assentar‑vos, no cume do Auseba, e o anjo do extermínio pairará junto de vós: sereis a inteligência que guie o duro braço dos canta­bros e dos lusitanos para lhes dirigir os golpes, para os reter quando, rareados, confundidos, esmagados os troços da serpente maldita que ousa colear junto de Covadonga, nós pudermos arremessar‑nos ao meio deles e fazer cair sobre a cabeça dos pagãos os golpes dos nossos franquisques, não menos destruidores que os rochedos despenhados.

‑ Como assim?! ‑ replicou Sancion, que por vezes estivera a ponto de interromper o mancebo. ‑ Nós, próceres e gardingos; nós que meneamos a acha de armas e a espada; nós que trajamos o ferro, combateremos, como os servos e vis, de longe e sem risco? Nós, que por tantas milhas através das serras demos as costas aos infiéis, não poderemos, embebendo‑lhes as espadas nos peitos, dizer­‑lhes enfim: ‑ Eis‑nos aqui! ‑ Pelágio, isso é impossível!

‑ Impossível! ‑ repetiram todos os outros cavaleiros apinhados ao redor de Sancion.

‑ Impossível é ‑ interrompeu o duque de Cantábria com gesto severo ‑ que haja guerreiros cristãos que recusem obedecer‑me, no momento em que se trata, não de ambições de glória, mas da re­denção da Espanha. Cavaleiros, o esforço de vossos corações vos engana! Exaustos pela correria da próxima noite, os braços vos desmentiriam o ânimo, e eu não consentirei jamais um sacrifício inútil, quando de outro modo podeis contribuir para salvarmos as Astúrias. Gutislo! ‑ clamou ele aproximando‑se da boca da caverna ‑ dize aos teus irmãos do Hermínio que venham aqui e ao qüin­gentário da minha tiufadia que vos siga com os soldados cantabros. Sancion, Gudesteu, Astrimiro, Ênecon, vós todos que me cercais, eis ali o vosso caminho! Parti.

E apontava para um lado da gruta, onde quem chegava ao perto via, lá em cima, o céu estrelado, por uma espécie de clarabóia natu­ral, e, quase debaixo dos pés, um como sorvedouro escuro, em cujas profundezas se percebia o ruído das nascentes do Deva. Na circun­ferência daquele abismo, desde o chão da caverna, os foragidos, apro­veitando as escabrosidades das paredes circulares, tinham formado uma escada tosca, ora cavada na pedra, ora firmada sobre troncos de árvores fixos nas fendas e cavidades da rocha, e, que, lançada em espiral, saía perto do cimo calvo do Auseba. Assim, quando o vale fosse ocupado dos sarracenos, os cristãos poderiam defender‑se por largo tempo, obtendo por esse caminho oculto os socorros dos montanheses.

Entre os cavaleiros a quem Pelágio dirigira aquelas palavras houve alguns instantes de hesitação, e um murmúrio de descontenta­mento; mas, por fim, Sancion, pegando em um dos fachos, encami­nhou‑se para a escada subterrânea, e os outros seguiram‑no. Os quase selvagens filhos do Munda, vestidos de peles de alimárias, e os cantabros, cujas feições e trajos também revelavam a sua origem céltica, não tardaram a entrar na caverna. Pelágio então lhes orde­nou obedecessem aos guerreiros que os haviam precedido, e em breve o som das passadas daquele tropel desordenado, alongando‑se pelo abismo, morreu em silêncio total.

Eurico parecia indiferente ao que se passava ao pé dele, assen­tado no escabelo e com os olhos cravados no cepo candente que se consumia no afumado lar. Pelágio voltou‑se para ele, e disse‑lhe:

- Vós, Eurico, ficareis aqui: vós que salvastes minha irmã, sereis o seu guardador. Quem melhor vigiaria por Hermengarda do que esse homem que nela tem um testemunho perene do mais indizível esforço, da mais pura e generosa lealdade? Desejaria ver junto de mim no combate o melhor guerreiro de Espanha: ter‑vo‑lo‑ia, até, pedido quando o mistério em que vos envolvieis nos fazia suspeitar a todos que vós, o cavaleiro negro, éreis um ente privilegiado e não um mortal como nós. Agora, porém, depois que no transe horroroso das margens do Sália, nos revelastes quem sois, quando, resolvido a morrer, pedíeis apenas algumas lágrimas para a vossa memória àqueles que vos sobreviviam, pedir‑vos‑ei eu, também, que não quei­rais encontrar o primeiro ímpeto dos sarracenos. Se na defensão desta nossa triste morada, aonde cumpre atraí‑los, for necessário o auxílio do vencedor dos vascônios, do mais ilustre dos tiufados de Vítiza, ou se a cólera de Deus ainda não está satisfeita, e devem hoje perecer os últimos homens livres da Espanha, vireis vós morrer co­nosco. Entretanto, continuai a ser o anjo da guarda da pobre filha de Favila. Ela parece mais tranqüila, e o monge Baquiário, em cuja ciência têm achado alívio tantos de nossos irmãos, recomendou o repouso como o melhor remédio para a febre que a devora. Retarda­rei quanto puder o instante de se acolherem aqui as mulheres, as crianças e os velhos inúteis para o combate. Fazei, entretanto, que nestes lugares reine profundo silêncio.

Silêncio guardava o cavaleiro: no seu olhar incerto e cintilante descobria‑se que lá, naquela alma, tumultuavam paixões violentas e opostas. Não respondeu; nem Pelágio lhe dera para isso tempo. Crendo ler no seu gesto perturbado a mesma repugnância que tinham mostrado os outros guerreiros em não assistir ao primeiro recontro dos infiéis, o duque de Cantábria atravessou apressado a boca da gruta e desceu a senda tortuosa que conduzia ao fundo do vale. Daí a pouco, sentiu‑se o galopar de um cavalo à rédea solta, que se confundiu, por fim, no sussurro longínquo do arraial que se agitava, preparando‑se para o temeroso dia que pouco tardaria a nascer.

Eurico estava, enfim, só.

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sábado, abril 11, 2009 - 23:16

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AlexandreHerculano

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