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Eurico, o Presbítero - Saudade

"Cristo! ‑ dá‑me o perdão, dá‑me re­médio; que entre tão vário mal fraqueia a mente!"
Eugênio Toledano, Opúsculos ‑ XI.
Na Ilha Verde. Ao pôr‑do‑sol das calendas de abril da era de 749.

1

O mar estava tranqüilo, e o ar puro e diáfano. As costas de África fronteiras, lá na extremidade do horizonte, pareciam uma orla escura bordada no manto azul do firmamento.

A aragem do norte encrespava suavemente a superfície das águas; as ondas vinham espraiar‑se preguiçosas no areal da baía.

O barqueiro Ranimiro dormia na sua barca amarrada na foz do Palmônio. Uma saudade indizível atraía‑me para o mar.

Saltei na barca; o ruído que fiz despertou Ranimiro. ‑ "Ao largo" ‑ disse‑lhe eu. Empunhou os remos, e partimos.

- Para onde, presbítero? ‑ perguntou o barqueiro, depois de vogar alguns momentos em silêncio.

- Quero respirar o ar puro e fresco da tarde; mais nada repliquei. ‑ Leva‑me, para onde te aprouver.

- Se vos parece ‑ tomou Ranimiro ‑ rodearemos a Ilha Verde, entraremos no canal, e saltareis na margem. Pelo tempo que vai, ela estará agora esmaltada de verdura e boninas.

Calei‑me: o barqueiro tomou por aprovação o meu silêncio. Voltando a proa para poente, corremos ao largo da ilha e, rodeando a sua margem ocidental, abicamos em terra pelo lado da enseada que a separa do continente.

Ranimiro não se enganara: como uma tapeçaria riquíssima lan­çada ao som das águas, a superfície da ilha agitava‑se trêmula com a aragem da terra, que curvava brandamente as flores e as folhinhas lanceoladas da relva.

Assentado à sombra de uma rocha que formava um promonto­riozinho do lado do sul, lancei os olhos em volta até onde se des­cobria o horizonte. Lá, no extremo do Estreito para a banda do mar interior, viam‑se na ponta da África os cimos das torres de Septum, fronteiras aos cerros escalvados do Calpe. De Septum para o ocidente as costas africanas contrastavam nas suas ondulações suaves com a penedia áspera das ribas hispânicas, e, confrangido entre os dois continentes, o mar balouçava‑se resplandecente com os raios já inclinados do sol.

De roda de mim a atmosfera estava impregnada de um hálito perfumado: era a natureza que sorria afagada pela primavera. As aves aquáticas redemoinhavam nos ares ou pousavam sobre as águas, e pareciam, nos seus vôos incertos, ora vagarosos, ora rápidos, fol­garem com os primeiros dias da estação dos amores.

Uma melancolia suave se me erguia lentamente no coração, debaixo daquele céu puro, naquela atmosfera balsâmica, ante aqueles horizontes saudosos. As lágrimas rebentaram‑me involuntariamente dos olhos.

Era feliz neste momento, porque repousava de amarguras. Olhei para a barca: Ranimiro adormecera de novo à proa. Repousavam bem perto um do outro a matéria e o espírito.

Bem‑aventurado, pensei eu comigo, aquele em quem os afagos de uma tarde serena de primavera no silêncio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruído da vida!

E este pensamento trouxe‑me pouco e pouco à memória as tem­pestades do passado! Ai de mim! Logo se me enxugaram as lágri­mas, porque eram de consolação, e essa lembrança as estancou!
2

Por que não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmúrio das vagas sonolentas, ao sussurro da brisa do norte?

Porque mulher bárbara não entendeu o que valia o amor de Eurico; porque velho orgulhoso e avaro sabia mais um nome de avós do que eu, e, porque nos seus cofres havia mais alguns punha­dos de ouro do que nos meus.

As mãos imbeles de uma donzela e de um velho esmagaram e despedaçaram o coração de um homem, como os caçadores covardes assassinam no fojo o leão indomável e generoso.

E, todavia, este coração sentia a voz da consciência pregoar‑lhe largos destinos! Por que não emudeceu essa voz quando do pórtico do templo lancei ao mundo a maldição da despedida?

Por que me lembra com saudade, aqui, a estas horas, o tempo das minhas esperanças?

É porque o viver é o ecúleo do espírito: a alma estorce‑se como agonizante no meio dos mais incomportáveis tormentos, sem nunca poder expirar, e os seus afetos profundos são como ela; não lhes é dado o morrer.

Paz e esquecimento, ó meu Deus!
3

Os raios derradeiros do sol desapareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quase vencido pelo grande vulto da noite, que se ale­vanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, ó Hermengarda, se­melhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado.

E essa imagem é pura e sorri; orna‑lhe a fronte a coroa das virgens; sobe‑lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amículo alvís­simo da inocência, flutuando‑lhe em volta dos membros, esconde­‑lhe as formas divinas, fazendo‑as, porventura, suspeitar menos belas que a realidade.

É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz sau­dade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo um martírio.

Não eras tu emanação e reflexo do céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que nunca perece.

Hermengarda, Hermengarda, eu amava‑te muito! Adorava‑te só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos? Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.

Por que vens, pois, pedir‑me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensangüentada do calvário; quando a mão inexorável do sacer­dócio soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro passo além do limiar desta será a perdição eterna?

Mas, ai de mim! esta imagem que parece sorrir‑me nas solidões do espaço está estampada unicamente na minha alma e reflete‑se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou as lágrimas.

Tu, Hermengarda, recordares‑te?! Mentira!... Crês que morri, ou porventura, nem isso crês; porque para creres era preciso lembra­res‑te, e nem uma só vez te lembrarás de mim!

Lá, no tumulto dos cortesãos, onde o amor é cálculo ou sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar a teu pai o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço doméstico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro.

A isto chama prudência o mundo estúpido e ambicioso; a isto, que não é mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras sacrossantas.

Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante me tem feito vaguear louco pelas montanhas, uivando como o lobo esfaimado e tentando despedaçar os rochedos com as mãos, donde me goteja o sangue!

E tu folgas e ris! Oxalá nunca saibas quão imenso e atroz é o meu tormento, que devo velar diante dos homens debaixo de aspecto tranqüilo, como se, em vez de martírio, ele fosse um abominável crime.
4

E quem te disse, presbítero, que o teu amor não era um crime?

Tens razão, consciência! Quando aos pés do venerável Siseberto o gardingo Eurico jurou que abandonava o mundo, devia despir as paixões que do mundo trouxera.

A luz brilhante de afeições e esperanças a que vivia e que me povoava o coração de felicidade devia apagar‑se então, como a lâmpada do templo ao amanhecer; porque eu voltava‑me para o céu, buscando a luz do Senhor.

Mas o sol, apenas nasceu para mim, logo desapareceu no ocaso, e os que me crêem alumiado mal pensam que vivo em trevas!

As minhas paixões não podiam morrer, porque eram imensas, e o que é imenso é eterno.

E assim, nem ouso pedir a paz do sepulcro; porque para mim

não haveria paz, senão no aniquilamento.

O aniquilamento! Que mal te fiz eu, ó meu Deus, para não me deixares cá dentro mais que uma idéia risonha, mais que um desejo capaz de encher o abismo da minha desventura? Que mal te fiz eu para que esse desejo, essa idéia seja a que unicamente resta ao precito que se revolve em perpétuas angústias?

Mas para mim, como para ele, tal pensamento é vão e mentido! Eternidade, eternidade, a alma do homem está encerrada e cativa no ilimitado do teu império!

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sábado, abril 11, 2009 - 23:05

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