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Erasmo de Roterdão - Elogio da Loucura
Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais.
Com efeito, como no instante em que surge no céu a brilhante figura do sol, ou como quando, após um rígido inverno, retorna a primavera com suas doces aragens e vemos todas as coisas tomarem logo um novo aspecto, matizando-se de novas cores, contribuindo tudo para de certo modo rejuvenescer a natureza, assim também, logo que me vistes, transformastes inteiramente as vossas fisionomias. Bastou, pois, a minha simples presença para eu obter o que valentes oradores mal teriam podido conseguir com um longo e longamente meditado discurso: expulsar a tristeza de vossa alma.
Se, agora, fazeis questão de saber por que motivo me agrada aparecer diante de vós com uma roupa tão extravagante, eu vo-lo direi em seguida, se tiverdes a gentileza de me prestar atenção; não a atenção que costumais prestar aos oradores sacros, mas a que prestais aos charlatães, aos intrujões e aos bobos das ruas, numa palavra, a que o nosso Midas prestava ao canto do deus Pã.
Para dizer a verdade, não nutro nenhuma simpatia pelos sábios que consideram tolo e impudente o auto-elogio. Poderão julgar que seja isso uma insensatez, mas deverão concordar que uma coisa muito decorosa é zelar pelo próprio nome.
De fato, que mais poderia convir à Loucura do que ser o arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores? Quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma? Haverá, talvez, quem reconheça melhor em mim o que eu mesma não reconheço? De resto, esta minha conduta me parece muito mais modesta do que a que costuma ter a maior parte dos grandes e dos sábios do mundo. É que estes, calcando o pudor aos pés, subornam a lisonja de um orador, ou a fantasia de um poeta e paga para ouvir louvores, ou seja, puras mentiras. Mas o nosso homem vai-se pavoneando, vai levantando a crista, enquanto aduladores impúdicos comparam com os deuses aquela nulidade, apresentam-no, convencidos do contrário, como o modelo perfeito de todas as virtudes, enfeitam uma gralha com penas de pavão, fazendo do preto branco, transformando uma mosca num elefante. Assim, pois, sigo aquele conhecido provérbio que diz: Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo.
Não posso deixar, de manifestar um grande desprezo, não sei se pela ingratidão ou pelo fingimento dos mortais. É certo que nutrem por mim uma veneração muito grande e apreciam bastante as minhas boas ações; mas, parece incrível, desde que o mundo é mundo, nunca houve um só homem que, manifestando o reconhecimento, fizesse o elogio da Loucura.
Ingratos são para comigo esses homens que pertencendo embora à minha clientela, se envergonham do meu nome e com ele injuriam os outros.
Não julgueis que estas minhas palavras são falsas como é vulgar entre os oradores. Pois bem sabeis que quando eles proferem um discurso que lhes custou trinta anos de trabalho, e por vezes trabalho alheio, juram tê-lo escrito por prazer (…). Eu, não; sempre me foi grato dizer imediatamente o que me vem à boca.
Vedes que estou imitando os retóricos do nosso tempo que se julgam uns deuses pelo facto de serem bilingues como sanguessugas, e que julgam preclaro imiscuir no discurso latino algumas palavras gregas, compor um mosaico que nem sempre vem a propósito. À falta de palavras exóticas, vão buscar quatro ou cinco fórmulas arcaicas aos pergaminhos pútridos, ofuscando com trevas os olhos do leitor, para que assim os entendedores mais orgulhosamente se deleitem e para que os ignorantes tanto mais admirem quanto menos compreendam. Pois é bem certo que encontram prazer no que lhes é mais alheio e distante.
Sou filha do prazer e o amor livre presidiu ao meu nascimento.
Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a luz com o pranto, como quase todos os homens: mal fui parida, comecei a rir gostosamente na cara de minha mãe.
Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida? E quem, mais do que eu, contribui para a concepção dos mortais?
Vejamos, os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão próximos e afins dos deuses. Mostrai-me apenas um, dentre eles, que, mesmo sendo mil vezes estóico, nunca tendo feito a barba, distintivo da sabedoria (se bem que tal distintivo seja também comum aos bodes): precisará deixar o seu ar cheio de orgulho, assumir uns ares de fidalgo, abandonar a sua moral austera e inflexível, fazer asneiras e loucuras. Em suma, será forçoso que esse filósofo se dirija a mim e se recomende, se quiser tornar-se pai.
E porque, segundo o meu costume, não hei-de vos falar mais livremente? Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, como partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do género humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se lhe pode dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e os mortais.
Quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes, como costumam fazer em geral os filósofos, reflectisse bem nos incómodos que acompanham essa condição? Qual é a mulher que se submeteria ao dever conjugal, se todas conhecessem ou tivessem em mente as perigosas dores do parto e as penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao matrimónio e o matrimónio à Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me deveis. Além disso, uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do indissolúvel laço, e que anseia por tornar a passar por eles (…) Mas, pouco amiga seria eu da verdade, se, depois de vos provar que de mim tivestes o gérmen e o desenvolvimento da vida, não vos demonstrasse ainda que provêm da minha liberalidade todos os bens que a vida encerra.
Que seria a vida, que poderia dizer-se da vida sem os prazeres da volúpia? Aplaudis, meus amigos? (…) Podeis, pois, estar certos de que também os estóicos não desprezam a volúpia, embora astutamente se finjam alheios a ela e a ultrajem com mil injúrias diante do povo, a fim de que, amedrontando os outros, possam gozá-la mais frequentemente. Dizei-me se há, acaso, um só dia na vida que não seja triste, desagradável, fastidioso, enfadonho, aborrecido, quando não é animado pela volúpia, isto é pelo condimento da loucura. Tomo Sófocles por testemunho irrefragável, nunca bastante louvado. Oh! nunca se me fez tanta justiça! Diz ele, para minha honra e minha glória: “Quanto maior for a sabedoria, menos feliz a vida.”
Todos sabem que a infância é a idade mais alegre e agradável. Mas, que é que torna os meninos tão amados? Que é que nos leva a beijá-los, abraçá-los e amá-los com tanta afeição? Ao ver esses pequenos inocentes, até um inimigo se enternece e os socorre. Qual é a causa disso? É a natureza, que, ao proceder com sabedoria, deu às crianças um certo ar de loucura, para eles assim recompensarem os trabalhos e os cuidados dos que os educam. Ama-se a primeira juventude que se sucede à infância, sente-se prazer em ser-lhe útil, iniciá-la, socorrê-la. Mas, de quem recebe a meninice os seus atrativos? De quem, se não de mim, que lhe concedo a graça de ser amalucada e, por conseguinte, de gozar e de brincar? Quero que me chamem de mentirosa, se não for verdade que os jovens mudam inteiramente de caráter logo que principiam a ficar homens e, orientados pelas lições e pela experiência do mundo, entram na infeliz carreira da sabedoria. Vemos, então, desvanecer-se aos poucos a sua beleza, diminuir a sua vivacidade, desaparecerem aquela simplicidade e aquela candura tão apreciadas. E acaba por extinguir-se neles o natural vigor. Por tudo isso, observai, senhores, que, quanto mais o homem se afasta de mim, tanto menos goza dos bens da vida, avançando de tal maneira nesse sentido que logo chega à fastidiosa e incómoda velhice, tão insuportável para si como para os outros. E, já que falámos de velhice, não fiqueis aborrecidos se por um momento chamo para ela a vossa atenção. Oh! como os homens seriam lastimáveis sem mim, no fim dos seus dias! Mas, tenho pena deles e estendo-lhes a mão. Não raro, as divindades poéticas socorrem piedosamente, com o divino segredo da metamorfose, os que estão prestes a morrer. Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da sepultura, então, na medida do que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos. De onde o provérbio: Os velhos são duas vezes crianças. Perguntar-me-eis, sem dúvida, como o consigo. Da seguinte forma: levo essas caducas cabeças(…) e faço-as beber a grandes goles a água do Esquecimento. E é assim que dissipam insensivelmente as suas mágoas e recuperam a juventude. Alegar-se-á, contudo, que deliram e enlouquecem: pois é isso mesmo, justamente nisso consiste o tornar a ser criança. O delírio e a loucura não serão, talvez, próprios das crianças? Que é que, a vosso ver, mais agrada nas crianças? A falta de juízo. Um menino que falasse e agisse como um adulto não seria um pequeno monstro? Pelo menos, não poderíamos deixar de odiá-lo e de ter por ele um certo horror. Há muitos séculos, é trivial o provérbio: Odeio o menino de saber precoce. Quem, por outro lado, poderia fazer negócios ou ter relações com um velho, se este aliasse a uma longa experiência todo o vigor do espírito e a força do discernimento?
Mais vale que o velho delire, devendo-me a libertação de todas as fastidiosas aflições que atormentam o sábio. Não sente o tédio da vida que uma idade mais robusta suporta. Afirmo, pois, de acordo com esse raciocínio, que a felicidade da velhice supera a da própria infância. Não se pode negar que a infância é muito feliz; mas, nessa idade, não se tem o prazer de tagarelar, de resmunga , como fazem os velhos.
Outra prova do meu confronto é a recíproca inclinação que se nota nos velhos e nos meninos, e o instinto que os leva a manterem entre si boas relações, porque “os deuses comprazem-se em unir semelhantes”
De fato, essas duas idades têm uma grande relação entre si, e não vejo nelas outra diferença senão as rugas da velhice e o maior ou menor número de anos. Quanto ao restante, a brancura dos cabelos, a falta dos dentes, o abandono do corpo, o balbucio, a garrulice, as asneiras, a falta de memória, a irreflexão, numa palavra, tudo coincide nas duas idades. Enfim, quanto mais entra na velhice, tanto mais se aproxima o homem da infância, a tal ponto que sai deste mundo como as crianças, sem desejar a vida e sem temer a morte.
Se os mortais se abstivessem totalmente da sabedoria e só quisessem viver submetidos às minhas leis, é certo que não conheceriam a velhice e gozariam, felizes, de uma perpétua juventude. Observai, por favor, aquelas fisionomias sombrias, aqueles rostos torturados e sem cor, mergulhados na contemplação da natureza ou em outras sérias e difíceis ocupações: parecem envelhecidos antes de terminada a juventude, e isso porque um trabalho mental assíduo, penoso, violento, profundo, faz com que aos poucos se esgotem os espíritos e a seiva da vida. Reparai, agora, um pouco, como os meus tolos são gordos, lúcidos e bem nutridos, ao ponto de parecerem verdadeiros porcos acarnânios. Estes felizes mortais não sentiriam nenhum incômodo na velhice, se nenhum contacto tivessem com os sábios. Infelizmente, porém, isso acontece. Sofre assim a vida dos homens, porque eles não são perfeitos. Vê-se claramente que o homem não nasceu para gozar aqui na terra de uma felicidade perfeita. Tenho ainda em meu favor o importante testemunho de um famoso provérbio que diz: Só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude, embora fugacíssima, e de retardar bastante a malfadada velhice.
Se, portanto, concordais que não há nada mais precioso do que a juventude e mais detestável do que a velhice, posso concluir que reconheceis a dívida que tendes para comigo, sim, para comigo, pois que, para vos tornar felizes, sei prolongar tamanho bem e retardar um mal tão grande.
Bem vedes com que providência a natureza, esta mãe produtora do género humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura. Segundo a definição dos estóicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões que a da razão, de forma que a diferença entre ambas é pelo menos de um para vinte e quatro. Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão. Depois, ainda não satisfeito com isso, Júpiter uniu à razão, que está sozinha, duas fortíssimas paixões, que são como dois impetuosíssimos tiranos: uma é a Ira, que domina o coração, centro das vísceras e fonte da vida; a outra é a Luxúria, que estende o seu império desde a mais tenra juventude até à idade mais madura. Quanto vale a razão contra esses dois tiranos, demonstra-o bem a conduta normal dos homens. A razão grita contra os vícios a ponto de ficar rouca, e é tudo o que pode fazer; mas os vícios riem-se de sua rainha, gritam ainda mais forte e mais imperiosamente do que ela, até que a pobre soberana, não tendo mais fôlego, é constrangida a ceder e a concordar com os seus rivais.
De resto, tendo o homem nascido para o manejo e a administração dos negócios, era justo aumentar um pouco, para esse fim, a sua pequeníssima dose de razão, mas, querendo Júpiter prevenir melhor esse inconveniente, achou de me consultar a respeito, como, aliás, costuma fazer quanto ao resto. Dei-lhe uma opinião verdadeiramente digna de mim: — Senhor, — disse-lhe eu — dê uma mulher ao homem, porque, embora seja a mulher um animal inepto e estúpido, não deixa, contudo, de ser mais alegre e suave, e, vivendo familiarmente com o homem, saberá temperar com sua loucura o humor áspero e triste do mesmo. Quando Platão pareceu hesitar se devia incluir a mulher no género dos animais racionais ou no dos brutos, não quis com isso significar que a mulher fosse um verdadeiro bicho, mas pretendeu, ao contrário, exprimir com essa dúvida a imensa dose de loucura do querido animal. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a ideia de passar por sábia, só fará mostrar-se duplamente louca, procedendo mais ou menos como quem tentasse untar um boi, malgrado seu, com o mesmo óleo com que costumam ungir-se os atletas. Acreditai-me, pois, que todo aquele que, agindo contra a natureza, se cobre com o manto da virtude, ou afecta uma falsa inclinação, não faz senão multiplicar os próprios defeitos. E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se aborrecer comigo, pois também sou mulher, e sou a Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me o facto de eu as ter tornado mais felizes do que os homens. Antes de tudo, têm elas o atrativo da beleza, que com razão preferem a todas as outras coisas, pois é graças a esta que exercem uma absoluta tirania mesmo sobre os mais bárbaros tiranos.
Sabereis de que provém aquele feio aspecto, aquela pele híspida, aquela barba cerrada, que muitas vezes fazem parecer velho um homem que se ache ainda na flor dos anos? Eu vo-lo direi: provém do maldito vício da prudência, do qual são privadas as mulheres, que por isso conservam sempre a frescura da face, a subtileza da voz, a maciez da carne, parecendo não acabar nunca, para elas, a flor da juventude. Além disso, que outra preocupação têm as mulheres, a não ser a de proporcionar aos homens o maior prazer possível? Não será essa a única razão dos enfeites, do carmim, dos banhos, dos penteados, dos perfumes, das essências aromáticas, e tantos outros artifícios e modas sempre diferentes de vestir-se e disfarçar os defeitos, realçando a graça do rosto, dos olhos, da cor? Quereis prova mais evidente de que só a loucura constitui o ascendente das mulheres sobre os homens? Os homens tudo concedem às mulheres por causa da volúpia, e, por conseguinte, é só com a loucura que as mulheres agradam aos homens. Para confirmar ainda mais essa conclusão, basta refletir nas tolices que se dizem, nas loucuras que se fazem com as mulheres, quando se anseia por extinguir o fogo do amor. Já vos revelei, portanto, a fonte do primeiro e supremo prazer da vida.
Mas há pessoas, especialmente os velhos, que são mais amigos das bebidas do que das mulheres, e que encontram a suma volúpia no molhar da garganta.
Deixo indecisa a questão para alguns de saber se é possível um bom banquete sem mulheres. O que é certo é que mesa alguma nos pode agradar sem o condimento da loucura. E tanto isso é verdade que, quando nenhum dos convidados se julga maluco ou, pelo menos, não finge sê-lo, é pago um bobo mercenário, ou convidado um ridículo parasita que, com as suas piadas, suas brincadeiras, suas bobagens, expulse da mesa o silêncio e a melancolia. Com efeito, que nos adiantaria encher o estômago com tão sumptuosas e apetitosas iguarias, se os olhos, os ouvidos, o espírito e o coração não se nutrissem também de diversões, risadas e agradáveis conceitos? Ora, sou eu a inventora exclusiva de tais delícias.
Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais. Sem alegria, a vida humana nem sequer merece o nome de vida. Mergulharíamos na tristeza todos os nossos dias, se com essa espécie de prazeres não dissipássemos o tédio que parece ter nascido connosco.
Talvez haja pessoas que, à falta de tais passatempos, limitem toda a sua felicidade às relações com verdadeiros amigos, repetindo sem cessar que a doçura de uma terna e fiel amizade ultrapassa todos os outros prazeres, sendo tão necessária à vida como o ar, a água, o fogo. — Tão agradável é a amizade, — acrescentam, — que afastá-la do mundo eqüivaleria a afastar o sol; em suma, é ela tão honesta (vocábulo sem significado para mim) que os próprios filósofos não hesitam em incluí-la entre os principais bens da vida. — Mas, que se dirá, quando eu provar que sou também a única fonte criadora de semelhante bem:
Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da loucura? Beijar, num transporte, uma verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e pretender um pai que o filho zarolho tenha dois lindos olhos, não será isso uma verdadeira loucura?
Bradem, pois, quando quiserem ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é a única que cria e conserva a amizade. Falo aqui unicamente dos homens, dos quais não há um só que tenha nascido sem defeitos, e admitindo que, para nós, o homem melhor seja o que tem menores vícios. É por isso que os sábios, pretendendo divinizar-se com sua filosofia, ou não contraem nenhuma amizade ou tornam a sua uma ligação áspera e desagradável. Além disso, só costumam gostar sinceramente de raríssimas pessoas, de forma que nenhum escrúpulo me impede de asseverar que não gostam absolutamente de ninguém, pela razão que vou apresentar.
Quase todos os homens estão afastados da sabedoria, e não há nenhum que de qualquer modo não delire; ora, a semelhança é justamente o principal fundamento de toda estreita amizade. Quando, porventura, nasce entre esses austeros filósofos uma recíproca benevolência, decerto que não é sincera nem durável. Todos eles são de humor volúvel e intratável, além de serem penetrantes demais: têm olhos de lince para descobrir os defeitos dos amigos, e de toupeira para ver os próprios (não vêm o peso que trazem às costas). Portanto, como os homens estão sujeitos a muitas imperfeições (e podeis acrescentar a estas a diferença de idade e de inclinações, os numerosos erros, passos em falso e vicissitudes da vida humana), como poderia por um só instante subsistir entre esses o laço da amizade?
Servi-vos do amor para julgar da amizade, que é mais ou menos a mesma coisa. Não está Cupido, esse autor, esse pai de toda ternura, privado de visão, que lhe faz confundir o belo com o feio? Da mesma maneira que ”o que não é belo, belo lhe parece” assim acontece convosco, achar belo o que vos pertence, de forma que o velho é tão apaixonado por sua velha quanto a criança por sua boneca. Essas coisas se verificam em toda parte, mas em toda parte são motivo de riso. Pois são justamente essas coisas ridículas que formam o principal laço da sociedade e que, mais do que tudo, contribuem para a alegria da vida.
O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do matrimónio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se a união do homem com a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulação, pelas carícias, pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimónios, se o noivo prudentemente investigasse a vida e os segredos de sua futura cara metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da simplicidade! Ainda menos numerosos seriam os matrimónios duráveis, se os maridos, por interesse, por complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas. Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo querido da mulher, e a mulher do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família. Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo atencioso, fica a consolar a cara-metade, e a enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho, pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil?
Afinal de contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida, sem a minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o senhor o servo, nem a patroa a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc., se não se enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura.
Dizei-me por obséquio: um homem que se odeia a si mesmo poderá, acaso, amar alguém? Um homem que discorda de si mesmo poderá, acaso, concordar com outro? Será capaz de inspirar alegria aos outros quem tem em si mesmo a aflição e o tédio? Só um louco, mais louco ainda do que a própria Loucura, admitireis que possa sustentar a afirmativa de tal opinião. Ora, se me excluirdes da sociedade, não só o homem se tornará intolerável ao homem, como também, toda vez que olhar para dentro de si, não poderá deixar de experimentar o desgosto de ser o que é, de se achar aos próprios olhos imundo e disforme, e, por conseguinte, de se odiar a si mesmo.
A natureza, que em muitas coisas é mais madrasta do que mãe, imprimiu nos homens, sobretudo nos mais sensatos, uma fatal inclinação no sentido de cada qual não se contentar com o que tem, admirando e almejando o que não possui.
Mais uma vez repito: se vos desgostais de vós mesmos, persuadi-vos de que nada podereis fazer de belo, de gracioso, de decente. Roubada à vida essa alma, languesce o orador em sua declamação, inspira piedade o músico com suas notas e seu compasso, ver-se-á o cómico vaiado em seu papel, provocarão o riso o poeta e as suas musas, o melhor pintor não conquistará senão críticas e desprezo, morrerá de fome o médico com todas as suas receitas... Portanto, é necessário que cada qual se lisonjeie e adule a si mesmo, fazendo a si mesmo uma boa coleção de elogios, em lugar de ambicionar os de outrem.
(…)Finalmente, a felicidade consiste, sobretudo, em se querer ser o que se é. Ora, só o divino amor-próprio pode conceder tamanho bem. Em virtude do amor-próprio, cada qual está contente com seu aspecto, com seu talento, com sua família, com seu emprego, com sua profissão, com seu país, de forma que nem os irlandeses desejariam ser italianos, nem os trácios atenienses, nem os citas habitantes das ilhas Fortunadas. Oh surpreendente providência da natureza! Em meio a uma infinita variedade de coisas, ela soube pôr tudo no mesmo nível. E, se não se mostrou avara na concessão de dons aos seus filhos, mais pródiga se revelou ainda ao conceder-lhes o amor-próprio. Que direi dos seus dons? É uma pergunta tola. Com efeito, não será o amor-próprio o maior de todos os bens?
Que coisa se poderia imaginar de mais estúpido que a guerra? Dois exércitos que se batem (sabe Deus por que motivo) e da sua animosidade obtêm muito mais prejuízo do que vantagem.
Além disso, dizei-me: que serviço poderiam prestar os sábios, quando os exércitos se estendem em ordem de combate e reboam no espaço o rouco som das cornetas e o rufar dos tambores, ao passo que eles, definhados pelo estudo e pela meditação, arrastam com dificuldade uma vida que se tornou enferma pelo pouco sangue, frio e subtil, que lhes circula nas veias? São necessários homens troncudos e grosseiros, robustos e audazes, mas de muito pouco talento, sim, são necessárias justamente semelhantes máquinas para o mister das armas.
Podereis dizer-me que a guerra exige grande inteligência. Concordo convosco, mas somente quanto aos generais e feita a ressalva de que se trata apenas de uma inteligência militar e que nenhuma relação tem com a sabedoria filosófica. É por isso que os parasitas, os intrigantes, os ladrões, os sicários, os rústicos, os estúpidos, os falidos e, em geral, toda a escória social pode aspirar muito mais à imortalidade da guerra do que os filósofos que vivem dia e noite absorvidos na contemplação.
Como, pois, poderiam esses sábios sustentar o ferro e o fogo da guerra, se morrem de medo toda a vez que não se trata de combater apenas com a língua?
E, depois de tudo quanto dissemos, será possível decantar a célebre máxima de Platão, segundo a qual “as repúblicas seriam felizes se governadas pelos filósofos ou se os príncipes filosofassem”? Tenho a honra de vos dizer que a coisa é justamente o oposto. Se consultardes os historiadores, verificareis, sem dúvida, que os príncipes mais nocivos à república foram os que amaram as letras e a filosofia.
Os homens que se consagram ao estudo da ciência são, em geral, infelicíssimos em tudo, sobretudo com os filhos. Suponho que isso provenha de uma precaução da natureza, que dessa forma procura impedir que a peste da sabedoria se difunda em excesso entre os mortais.
Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta.
Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem, a tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras.
Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.
Que virtude, que poder já reuniu, no recinto de uma cidade, homens naturalmente rudes, indómitos e selvagens? Quem já pôde humanizar esses ferozes animais? A adulação. (…) É sempre com semelhante puerilidades que se faz comover a grande e estúpida besta que se chama povo.
Pode haver maior loucura que a de um candidato que adula suplicantemente o povo para conquistar honras e que compra o seu favor à custa de liberalismo? que a daquele que recebe servil e humildemente os aplausos dos mentecaptos? daquele que fica lisonjeado com as aclamações populares? daquele que se deixa carregar em triunfo, como uma estátua, para ser visto pelo povo, ou que é efigiado em bronze no foro? A todas essas loucuras, acrescentai a da adoção dos nomes e sobrenomes; acrescentai as honras divinas prestadas a um homem sem mérito algum; acrescentai, finalmente, as cerimónias públicas levadas a efeito para colocar no número dos deuses os mais celerados tiranos. Quem será capaz de negar que não há coisa mais tola?
Não bastaria um Demócrito para rir bastante disso. Mas, não será também verdade que a Loucura foi a autora de todas as famosas proezas dos valorosos heróis que tantos literatos eloquentes elevaram às estrelas?
É a Loucura que forma as cidades; graças a ela é que subsistem os governos, a religião, os conselhos, os tribunais; e é mesmo lícito asseverar que a vida humana não passa, afinal, de uma espécie de divertimento da Loucura.
Mas, passemos, agora, a falar das artes. Quem se não a sede de glória move o engenho dos mortais a instruir, desenvolver e transmitir tantas ciências que passam por excelentes? Acharam esses homens, na verdade bastante loucos, que não deviam poupar nem velas, nem suor, nem esforços de fadiga para conquistar não sei que imortalidade, a qual não passa, em última análise, de uma belíssima quimera. Deveis, pois, à Loucura as comodidades que hoje gozais; o que é muito agradável, mas devido à tolice alheia.
Se a prudência consiste no uso comedido das coisas, eu desejaria saber qual dos dois merece mais ser honrado com o título de prudente: o sábio que, parte por modéstia, parte por medo, nada realiza, ou o louco, que nem o pudor (pois não o conhece) nem o perigo (porque não o vê) podem demover de qualquer empreendimento. O sábio absorve-se no estudo dos autores antigos; mas, que proveito tira ele dessa constante leitura? Raros conceitos espirituosos, alguns pensamentos requintados, algumas simples puerilidades — eis todo o fruto de sua fadiga. O louco, ao contrário, tomando a iniciativa de tudo, arrostando todos os perigos, parece-me alcançar a verdadeira prudência. Homero, embora cego, enxergava muito bem essas verdades: “O tolo — disse ele — aprende à própria custa e só abre os olhos depois do facto”.
Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à acção. Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de nada e arriscar tudo.
Quero observar-vos, além disso, que os que preferem a prudência fundada no julgamento das coisas estão muito longe de possuírem a verdadeira prudência. Todas as coisas humanas têm dois aspectos, duas caras completamente opostas. Por isso é que, muitas vezes, o que à primeira vista parece ser a morte, na realidade, observado com atenção, é a vida. E assim, muitas vezes, o que parece ser a vida é a morte; o que parece belo é disforme; o que parece rico é pobre; o que parece infame é glorioso; o que parece douto é ignorante; o que parece robusto é fraco; o que parece nobre é ignóbil; o que parece alegre é triste; o que parece favorável é contrário; o que parece amigo é inimigo; o que parece salutar é nocivo…
Todos vós estais convencidos, por exemplo, de que um rei, além de muito rico, é o senhor dos seus súbditos. Mas, se ele tiver no peito um coração brutal, se for insaciável na sua cobiça, se nunca se mostrar satisfeito com o que possui, não concordareis comigo que é miserabilíssimo? Se ele se deixar transportar por seus vícios e por suas paixões, não se tornará um dos escravos mais vis? O mesmo se poderia dizer de tudo mais.
Se alguém se aproximasse de um cómico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? O gesto dele alterou de repente todas as aparências; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à-toa. Destruir a ilusão é destruir a arte; Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca das roupas e das fisionomias.
Toda a vida dos mortais não passa de uma comédia, na qual todos procedem conforme a máscara que usam, todos representam o seu papel, até que o contra-regra os mande sair de cena. Mas aqui o mesmo actor representa diversos papeis, de tal modo que ora aparece vestido de púrpura régia para reaparecer dentro dos trapos do escravo. Tudo no mundo é disfarce, e no teatro igualmente.
Se algum sábio caído do céu surgisse entre nós e se pusesse a gritar: “Não! Aquele que venerais como vosso deus e senhor não é sequer um homem, porque é dominado pelo impulso do instinto animal; é um escravo dos mais abjcetos, pois serve a tantos vis tiranos quantas são as suas paixões”, — se esse sábio, dirigindo-se a alguém que chorasse a morte do pai, o exortasse a rir, dizendo-lhe que esta vida terrestre não passa da imagem da morte e que, por conseguinte, seu pai só fez cessar de morrer; se, enfurecendo-se com algum vaidoso soberbo com brasão, o tratasse de ignóbil e de bastardo por estar totalmente afastado da virtude, que é a única e exclusiva fonte da verdadeira nobreza; e, se dessa maneira o nosso filósofo fosse falando de todas as outras coisas humanas, pergunto eu que resultado obteria ele de suas declamações. Passaria, decerto, para todos, por louco furioso. Portanto, ficai certos de que, assim como não há maior estupidez do que querer passar por sábio fora do tempo, assim também não há nada mais ridículo e imprudente do que uma prudência mal compreendida e inoportuna.
Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes. Pelo contrário, serás verdadeiramente prudente, vendo que és mortal, não querendo, convivendo ou errando de boa vontade com a universalidade dos homens.
E não será esta — indagam os sábios — outra espécie de loucura? — Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo.
Devo falar? Devo calar-me? E porque devo calar-me, se tudo o que quero dizer é mais verdadeiro do que a própria verdade? Vinde, pois, por um instante, oh filhas de Júpiter, pois quero provar que essa sabedoria tão gabada e que enfaticamente se chama o baluarte da felicidade, só é acessível aos que são orientados pela Loucura.
Antes de mais nada, sustento que, em geral, as paixões são reguladas pela Loucura. Com efeito, que é que distingue o sábio do louco? Não será, talvez, o facto do louco se guiar em tudo pelas paixões, e o sábio pelo raciocínio?
Que espécie de homem é um estóico? Quem poderá deixar de evitá-lo como a um monstro, de temê-lo como um fantasma? Eis o retrato fiel de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente o seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e julga-se o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Sem nenhum escrúpulo, chega a insultar os deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo o que se faz no mundo, ridicularizando todas as coisas. Vede o belo quadro desse animal que nos apresentam como o modelo acabado da sabedoria.
Dizei-me, por favor: se a questão pudesse ser posta a votos, que cidade desejaria semelhante magistrado? Que exército reclamaria um tal general? Quem o convidaria à sua mesa? Estou igualmente convencida de que não acharia, sequer, uma mulher ou servo que quisessem e pudessem suportá-lo. E quem, ao contrário, não preferiria um homem qualquer, tirado da massa dos homens estúpidos; que, embora estúpido, soubesse mandar ou obedecer aos estúpidos, fazendo-se amar por todos; que, sobretudo, fosse complacente para com a mulher, bom para os amigos, alegre na mesa, sociável com todos os que convivesse; que, finalmente, não se achasse estranho a tudo o que é próprio da humanidade? Mas, para falar a verdade, chego a ter nojo de falar dessa espécie de sábios.
Quando se reflete atentamtente sobre o género humano, e quando se observam como de uma alta torre, todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Quantos labores de juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramos, ainda uma vez, esse deplorável caminho. Que horrível e variada multiplicidade de males! Quantos desastres, quantos incómodos se encontram na vida! Enfim não há prazer que não tenha o amargor de muito fel.
Quem poderia descrever a infinita série de males que o homem causa ao homem, como sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc.? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias.
Quais foram os mais célebres desgostosos da vida que procuraram espontaneamente a morte? Não foram, porventura, os amigos mais próximos da sabedoria? Para não falar de Diógenes, Xenócrates, Catão, Cássio, Bruto, lembro apenas o famoso Quironte, que preferiu a morte à imortalidade.
Já sei que logo compreendereis quanto o mundo duraria pouco, se a sabedoria fosse comum entre os mortais. Sou mesmo de opinião que, em breve, haveria necessidade de uma nova argila e de um novo Prometeu .
Mas, também nesse caso, sou eu quem providencia, mantendo os homens na ignorância, na irreflexão, no esquecimento dos males passados e na esperança de um futuro melhor. Misturando as minhas doçuras com as da volúpia, eu amenizo o rigor do seu destino. Amam a vida não só quase todos os homens, como até aqueles cujo fio da existência está prestes a ser cortado pela morte, aqueles que devem deixar a vida depois de um bom número de anos. Eles não mostram nenhuma pressa de passar para o número dos mortos.
Quanto mais motivos têm os homens para viver contra a própria vontade, tanto menos se enojam da vida, evidenciando que não acham excessivamente longos os seus dias. São um efeito da minha bondade que vedes esses velhos alcançar a decrepitude e que de humano só possuem a figura. Por isso é que são gagos, delirantes, desdentados, encanecidos, calvos, ou, para descrevê-los melhor, com as palavras de Aristófanes, enrugados, corcundas, sem queixo sem nenhum resto de virilidade.
E, não obstante, amam com transporte a vida. Não se limitam esses velhotes insensatos aos prazeres da existência, mas esforçam-se ainda por imitar, o quanto podem, a juventude: um enegrece os cabelos brancos; outro esconde com uma cabeleira a cabeça calva; outro põe dentes tomados de empréstimo de algum porco; outro se apaixona loucamente por uma moça e faz por ela loucuras que envergonhariam um rapazinho. Estamos tão habituados a ver um homem todo curvado ao peso dos anos e que já não enxerga a terra em que está para descer, a vê-lo, casar-se com uma mocinha sem dote, e casar-se, certamente, mais para as delícias de outros do que para o próprio uso, que isso se torna quase um motivo de louvor.
Eis, porém, um quadro ainda mais divertido: aquelas velhas apaixonadas, aqueles cadáveres semivivos e já estão fedendo à carniça, ainda sentem arder o coração. Lascivas como cadelas no cio, só respiram uma porca sensualidade e dizem descaradamente que sem volúpia a vida não vale nada. Essas velhas cabras ainda fazem o amor, costumam remunerar com generosamente a repugnância que causam. Então, mais do que nunca, untam assiduamente o rosto, passam a vida diante do espelho, arrancam fios brancos de barba, ostentam dois seios flácidos e enrugados, com trémulo e langoroso ganido solicitam o desejo, bebem à grande, intrometem-se nas danças das moças, escrevem cartas amorosas, — eis os meios que essas velhas raposas empregam para dar coragem aos seus custosos campeões. Enquanto isso, a sociedade exclama: — Que velhas malucas! Que velhas malucas! — Mas, se a sociedade tem razão, elas se riem e, imersas nos prazeres, aproveitam a felicidade que lhes proporciono.
Eu desejaria que esses censores indiscretos soubessem dizer-me o que será mais estúpido: viver alegre e satisfeito, ou eternamente desesperado até se enforcar com uma corda. Poderão dizer-me que é uma verdadeira infâmia a vida desses velhos e dessas velhas. Não o nego; mas, que importa isso aos meus loucos? Ou são inteiramente insensíveis à desonra, ou então, quando a sentem, sufocam facilmente o remorso.
Os meus bons e fiéis súbditos têm uma filosofia especial, que lhes faz distinguir muito bem os males imaginários dos males reais. Cai-vos uma pedra na cabeça? Oh! isso, sim, é na realidade um mal! Mas, a desonra, a infâmia, as censuras, as maldições só nos fazem mal quando queremos sentir: desde que não pensemos nisso, deixam de ser um mal. Que mal pode fazer o que murmura a sociedade, quando é certo que intimamente vos aplaudis?
Ora, somente eu tenho a virtude de sublimar os homens a esse alto grau de perfeição, e é esse um dos meus maiores predicados. Parece-me, contudo, ouvir alguns filósofos dizerem que uma das maiores desgraças para um homem consiste em ficar louco, em viver no erro, na ilusão e na ignorância. Oh! como estão redondamente enganados! Respondo-lhes, ao contrário, que é justamente nisso que consiste ser homem. Confesso-vos que não sei explicar como podem tratar de infelizes os meus loucos, sendo a loucura, como é, património universal da humanidade, e quando todos os mortais nascem, educam-se e se conformam com ela. Parece-me bastante ridículo lastimar um ser que se acha no seu estado normal.
Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para voar como os pássaros, ou quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte armada de chifres como o touro? Lamentareis a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não ter aprendido gramática ou de não comer bem? Deplorareis um touro, pelo fato de não ser adestrado na palestra? Portanto, assim como o cavalo não é infeliz por ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é natural no homem.
Mas, os subtis disputadores meus antagonistas continuam a perseguir-me com novos sofismas. Dentre todos os animais — dizem eles — só o homem goza do privilégio de aprender as artes e as ciências, a fim de suprir com os seus conhecimentos às lacunas da natureza
(…)muito longe de contribuírem para essa felicidade que se pretende apresentar como razão de sua descoberta, as ciências são, ao contrário, extremamente nocivas. Digamos, pois, francamente, que a ciência e a indústria se introduziram no mundo com todas as outras pestes da vida humana, tendo sido inventadas pelos mesmos espíritos que deram origem a todos os males, isto é, pelos demónios, que por final tiraram da ciência o seu nome. Nada disso se conhecia no século de ouro, em que, sem método, sem regra, sem instrução, os homens viviam felizes, guiados pela natureza e pelo próprio instinto. Com efeito, que utilidade teria, naquele tempo, a gramática? Havia apenas a linguagem, e, ainda assim, só era falada para exprimir o pensamento. Não havia necessidade de lógica, porque, tendo todos os mesmos raciocínios, as divergências de opinião não provocavam discussão alguma. Não se conhecia a retórica naquela idade pacífica, em que não havia nem processos, nem conflitos, nem discursos. Nessa época, os legisladores eram inúteis, porque, reinando os bons costumes, não havia necessidade de leis. Além disso, aqueles mortais eram religiosíssimos, motivo por que não ansiavam por investigar com ímpia curiosidade os segredos da natureza. Convencidos de que a um pequeno insecto como o homem não é lícito ultrapassar os estreitos limites de sua capacidade, não quebravam a cabeça com a pesquisa das dimensões, dos movimentos, dos efeitos, das origens ocultas dos astros. Também não lhes passava pela imaginação a impertinente ideia de querer saber o que se acha além dos céus.
Mas, aos poucos, foi desaparecendo a inocência do século de ouro, de forma que os maus gênios, como já disse, logo descobriram as artes, mas ainda em pequeno número e muito pouco exercitadas. Em seguida, a superstição dos caldeus e a ociosa leviandade dos gregos criaram mil outras, todas muito oportunas e excelentes para atormentar o espírito. Só a gramática é mais do que suficiente para nos aborrecer durante toda a vida.
De todas essas artes, são tidas em maior apreço as que mais proximamente acedem ao senso comum, isto é, à loucura. Mas, que vantagem proporcionam aos que delas fazem profissão? Morrem de fome os teólogos, definham os físicos, caem no ridículo os astrólogos, são desprezados os dialéticos. E só o médico faz fortuna. A principal vantagem da medicina está em que, quanto mais ignorante, ousado e temerário é quem a exerce, tanto mais estimado é pelos senhores laureados.
O que é fora de dúvida é que os filósofos, quase que por consenso unânime, ridicularizam os advogados e, com muita propriedade, qualificam essa profissão de ciência de burro. Mas, burros ou não, serão sempre eles os intérpretes das leis e os reguladores de todos os negócios. Ao passo que esses senhores estendem os seus latifúndios, o pobre teólogo, depois de ter revistado todas as arcas da divindade, é obrigado a comer favas e a viver numa eterna guerra com os insetos nojentos.
De tudo quanto dissemos acerca das disciplinas, pode-se concluir que as artes mais vantajosas são as que mais se relacionam com a loucura. Por conseguinte, são perfeitamente felizes os homens que, sem ter qualquer relação com as ciências especulativas e práticas, têm como único guia a natureza, a qual não possui nenhum defeito e nunca deixa que se percam os que seguem fiel e exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites da condição humana. A natureza é inimiga de todo artifício, e, de facto, vemos crescer mais felizes as coisas não contaminadas por nenhuma arte.
Não imaginais quanto perdem os pássaros da sua primitiva beleza, quando aprendem, nas gaiolas, os nossos cantos. E tanto isso é verdade, sob todos os aspectos, que as produções da natureza ultrapassam de muito as da arte.
Por tudo isso, nunca terei louvado bastante Pitágoras por se ter transformado em galo. Esse filósofo, em virtude da metempsicose, passou por todos os estados: filósofo, homem, mulher, rei, confidente, peixe, cavalo, rã e creio até que esponja. E, depois de todas essas transmigrações, declarou que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois todos os outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela natureza, enquanto só o homem se esforça por ultrapassá-los. Além disso, Pitágoras costumava antepor os loucos aos sábios e aos grandes. Tal era, também, a opinião de Grilo, um dos companheiros do sensato Ulisses, o qual, tendo sido transformado em porco pela bruxa Circe, preferia grunhir tranquilo e à vontade num chiqueiro a andar na pista de novos perigos e novas aventuras com o seu general.
Parece-me, também, que o próprio Homero, o célebre pai da mitologia, não diverge dessa opinião, pois que, em geral, considera miseráveis todos os mortais e diz que a morte os cerca por toda a parte.
Nem mesmo Ulisses, o seu famoso herói e modelo de sabedoria, constitui para ele uma exceção, pois chega a aplicar-lhe, várias vezes, o epíteto de infeliz. No entanto, não diz o mesmo de Paris, de Ajax e de Aquiles, que eram loucos.
Afirmo que os que se aplicam ao estudo das ciências estão muito longe da felicidade e são loucos, porque, esquecendo-se de sua condição natural e querendo viver como outros tantos deuses, fazem à natureza, com as máquinas de arte, uma guerra de gigantes. De tudo isso, infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos, sem empreenderem nada que esteja acima das forças humanas.
Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos insensatos e imbecís? Ah! como acho bonitos esses nomes! Quero dizer-vos uma coisa que, à primeira vista, talvez tomeis por extravagante e absurda. Mas, que importa? Apesar disso, não quero deixar de vo-la dizer, tanto mais quanto é superior a qualquer outra verdade. Respondei-me: é ou não exacto que os homens que se julgam privados de sentimento não têm nenhum medo da morte? Além disso, estão isentos dos terríveis remorsos da consciência; não temendo nem fantasmas nem trevas, não são atormentados pela perpétua perspectiva dos males; não são enganados pela vã esperança de futuros bens. Em suma os seus dias não são envenenados pela infinita série de cuidados a que está sujeita a vida. A desonra, o temor, a ambição, a inveja, o amor, a amizade, são coisas inteiramente estranhas para eles, pois gozam da incomparável vantagem de só na forma diferirem dos animais.
Consultai ainda uma vez mais o vosso íntimo, oh insensatos partidários da sabedoria! Ponderai, examinai atentamente quantas aflições do espírito vos atormentam dia e noite; reuni em bloco, sob os vossos olhos, todos os diversos males da vida; e julgai finalmente, por vós mesmos, quanto é grande a felicidade que proporciono aos meus insensatos.
Não gozam eles apenas de um contínuo prazer, rindo, jogando, cantando, e parece-me, além disso, que a alegria, o prazer, a chacota, o riso, seguem-lhes os passos por toda parte. Dir-se-ia que os deuses tiveram a bondade de misturá-los com os homens para edulcorar a tristeza da vida humana.
Eu desejaria que notásseis ainda um privilégio que honra muitíssimo os meus súbditos. Qualquer que seja as disposições do coração humano de indivíduo para indivíduo, quanto aos meus loucos (…) Não só não se encontra ninguém que se atreva a contrariá-los, como parece que até as próprias feras, por um natural sentimento da sua inocência, contêm diante deles a sua inata ferocidade. São sagrados para os deuses, para mim sobretudo, motivo porque é muito justo que todos usem para com eles do mesmo respeito.
Os maiores monarcas de tal forma concentraram neles as suas delícias, que muitos não podem nem jantar, nem passear, nem ficar longe deles por uma hora sequer. Que diferença não acharão, pois, entre os seus bobos e os sábios melancólicos, dos quais talvez mantenham um para lhes fazer as honras? E uma tal diferença, nada tem de misterioso nem de surpreendente, porque os sábios, em geral, só sabem dizer coisas melancólicas e, às vezes, confiando no próprio saber, permitem-se ofender os delicados ouvidos com pungentes verdades. Os meus loucos, ao contrário, têm uma vida totalmente oposta e observam, para com os príncipes, todas as maneiras que mais costumam agradar, divertindo os outros com mil chacotas e bobagens, com ditos satíricos, com caretas e disparates de fazer qualquer pessoa rebentar de riso.
Notai, de passagem, o privilégio que têm os bobos de poder falar com toda a sinceridade e franqueza. Haverá coisa mais louvável do que a verdade?
Se bem que, com Platão, o provérbio de Alcibíades diga que a verdade se encontra no vinho e nas crianças, contudo é a mim, particularmente, que convém esse elogio, porque, segundo o testemunho de Eurípedes, tudo o que o tolo encerra no coração ele o traz também impresso na cabeça e o manifesta nas palavras.
Mas, os sábios, segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a outra para falar conforme as circunstâncias: quando o querem, têm talento para fazer o preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma boca o calor e o frio e exprimindo com palavras exatamente o contrário do que sentem no peito.
Não posso deixar, aqui, de lastimar a sorte dos príncipes. Oh! como são infelizes! Inacessíveis à verdades, só contam com a amizade dos aduladores. Mas, ponderará alguém que eles não devem queixar-se senão de si mesmos. Porque será que os príncipes não gostam de prestar ouvidos à verdade? E porque pouco caso fazem dos sapientes? Ah! bem vejo que isso deve-se ao medo que têm os príncipes de encontrar algum petulante que se atreva a dizer o que é verdadeiro e não o que é agradável!
Reconheço que a verdade não tem o amor dos reis. Mas, é justamente essa razão o que mais honra os meus loucos. Nem mesmo dissimulam os vícios e os defeitos dos reis. Que digo eu? Chegam, muitas vezes, a insultá-los, a injuriá-los, sem que esses senhores do mundo se ofendam por isso ou se aborreçam. Sabemos que os príncipes, em lugar de ficarem indignados, riem-se de todo coração quando um tolo lhes diz coisas que seriam mais do que suficientes para enforcar um sapiente. Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por ela; ora, só aos loucos os deuses concederam o privilégio de censurar e moralizar sem ofender a ninguém.
Quase pela mesma razão é que as mulheres gostam dos loucos e dos bobos, e é por isso que esse sexo é tão inclinado ao riso e às frivolidades. Além disso, qualquer coisa que façam as senhorinhas com essa espécie de pessoas (e às vezes com toda espécie), parece-lhes uma brincadeira ou uma chacota, tão engenhoso e experimentado é o belo sexo em colorir e mascarar os seus pecadilhos.
Confrontai, agora, a condição de qualquer sábio com a de um tolo. Imaginai, um homem venerável, verdadeiro modelo de sabedoria, e observai como faz a sua passagem pela terra. Constrangido desde a infância a consagrar-se ao estudo, passa a flor dos anos nas vigílias, nas aflições, na mais assídua fadiga; e, mal sai dessa dura escravidão, acha-se ainda mais infeliz do que nunca. Por isso é que, devendo viver com economia, com moderação, com tristeza, com severidade, ele se torna cruel e pesado a si mesmo, incómodo e insuportável aos outros. Pálido, magro, enfermiço, ramelento, fraco, encanecido, velho antes do tempo, termina uma vida infeliz com a morte prematura. Mas, que importa ao sábio morrer moço ou velho, quando se pode afirmar, com toda a razão, que nunca viveu?
Há, portanto, duas espécies de insânia: Uma a que os infernos vomitam todas as vezes que as fúrias emitem as suas serpentes para acenderem no peito dos mortais o furor da guerra, insaciável e devoradora do ouro, o infame e abominável amor, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, o peso de consciência e todos os outros flagelos semelhantes de que se servem as fúrias para dar aos mortais uma amostra dos suplícios eternos.
Existe, porém, outra, um furor inteiramente oposto ao precedente, e sou eu quem o proporciona aos homens, que deveriam desejá-lo sempre como o maior de todos os bens. Em que pensais que consista esse furor ou loucura? Consiste numa certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incómoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites.
Esse homem era louco de todas as formas: desde manhã muito cedo até tarde da noite, ficava sentado sozinho no teatro e, imaginando que assistia a uma magnífica representação, embora na realidade nada se representasse, ria, aplaudia e divertia-se à grande. Fora dessa loucura, ele era, em tudo o mais, uma óptima pessoa: complacente e fiel com os amigos; terno, cortês, condescendente com a mulher; indulgente com os escravos, não se enfurecendo quando via quebrar-se uma garrafa. Seus parentes deram-se ao incómodo de curá-lo com heléboro; mal, porém, ele voltou ao estado que impropriamente se chama de bom senso, dirigiu-lhe esta bela e sensata apóstrofe: “Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto, mataram-me; para mim, acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que constituía toda a minha felicidade”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que, por meio da arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e agradável loucura, mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de heléboro.
Não quero dar o nome de insânia a qualquer erro dos sensos ou da mente. É que, em geral, dizemos ser louco todo aquele que, sendo curto de vistas, toma um burro por jumento, ou que, por ter pouco discernimento, considera excelente um mau poema. Quando um homem comete um estranho erro, não só de senso, mas também de inteligência, nele persistindo longamente, — por exemplo, quando, ao escutar o zurro de um burro, julga ouvir uma sinfonia ou, então, quando, embora pobre e de origem humilde, imagina ser o rei Creso, da Lídia — nesse caso, diz-se que o pobrezinho perdeu o miolo. Mas se essa loucura, como frequentemente acontece, se inclina para a alegria, provoca não medíocre deleite, tanto aos que a experimentam como àqueles que a presenciam e que são insensatos, mas de outra maneira.
Assim, essa espécie de loucura é bem mais espalhada do que em geral se pensa. Às vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele.
Mas, na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que não saia da espécie que me é peculiar e que é tão espalhada que eu duvido se haverá, em todo o género humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade.
Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas, quando um marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente o seu destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia, — ninguém acha que se trate de loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais natural deste mundo.
Nessa categoria, é preciso incluir também os que desprezam tudo em prol da caça, não concebendo maior prazer que o de ouvir o rouco som da corneta e os latidos dos cães. Creio mesmo que, ao sentirem o cheiro dos excrementos caninos, imaginam estar a cheirar canela. Trata-se de despedaçar uma presa? Oh! incomparável delícia! Degolar, esfolar, cortar um boi ou um carneiro? Ah! é um mister vil, digno somente da ralé! Mas, um bicho do mato? Oh! a honra de cortar um bicho do mato é reservada unicamente às pessoas de alta linhagem!
Ao fidalgo, com a cabeça descoberta e de joelhos, pega o facão sagrado para esse sacrifício e, empunhando o ferro com a mão direita, corta religiosamente determinados membros do animal, fazendo tudo com certa ordem e com cerimónias especiais. E, durante a pomposa operação, todo o bando de caçadores acerca-se do sacerdote de Diana, observando profundo silêncio e mostrando, ao assistir ao espetáculo mil vezes visto, a mesma surpresa que teria se fosse a primeira vez. Em seguida, aquele a quem cabe a sorte de provar um pedaço da caça julga ter conquistado ainda mais nobreza. Por fim, os caçadores, depois de levarem a vida perseguindo e comendo caça, não obtêm outro resultado do seu assíduo e fatigante exercício senão o de se terem transformado também em outros tantos animais selvagens. E, não obstante, intimamente, pensam ter uma vida real.
Outra espécie de homens semelhantes à que há pouco descrevi é constituída por aqueles que se sentem devorados pela mania de construir. Uma vez invadidos por essa irrequieta paixão, nunca se dão por satisfeitos, sendo a sua preocupação contínua a de fazer, edificar, destruir, até que, como Horácio, nessa tarefa de mudar o quadrado em redondo e o redondo em quadrado, acabam por ficar sem casa e sem pão. E com que ficam? Ficam com a doce lembrança de terem passado com prazer um grande número de anos.
Vejamos, agora, os alquimistas, que podem ser considerados os loucos por excelência. Têm a cabeça sempre repleta de novos e misteriosos segredos. O seu único fim é confundir, misturar, modificar a natureza, procurando por terra e por mar não sei que quintessência, que na realidade só se encontra em uma quimérica imaginação. Não julgueis, por isso, que se desgostem diante dos insucessos: ao contrário, cheios de louca e lisonjeira esperança, nunca se arrependem das despesas nem da fadiga, pois são engenhosíssimos em iludir-se a si mesmos e em tornar-se vítimas da própria obstinação.
Mas, qual é, em geral, o seu objetivo? Pensando enriquecer-se, gastam tudo, não lhes restando nem mesmo com que construir um pequeno lar. É verdade que esses sonhadores não deixam de ter belíssimos sonhos, tentando tudo quanto é meio imaginável para incitar os outros a correr atrás dessa felicidade. Finalmente, constrangidos pela miséria a dar um adeus às suas quiméricas esperanças, acham ainda uma grande compensação em se poderem gabar de ao menos terem formado tão glorioso e nobre projeto. Mas, ao mesmo tempo, censuram a natureza pelo fato de ter dado aos homens uma vida demasiado breve para levar a termo empresa de tamanha importância.
Sinto certo escrúpulo em introduzir em nossa sociedade os jogadores de profissão. Mas, decerto que é uma loucura, oferecendo um espetáculo ridículo os que, de tão apaixonados pelo jogo, sentem bater e saltar o coração dentro do peito, sempre que vêm cartas na mesa ou ouvem o barulho dos dados. Então, quando a enganosa esperança de recuperar o que perderam faz com que percam o resto dos seus bens e quando a sua nau se quebra contra o escolho do jogo, escolho não menos fatal que o terrível cabo de Maleu , ainda se julgam muitos felizes por se terem salvo nuzinhos em pêlo desse naufrágio. E o mais bonito é que essa espécie de gente prefere roubar a quem quer que seja, excepto ao que a despojou, pelo receio de passar à conta de pouco honesta.
Que deveria eu dizer desses velhos que, quase cegos de tanta idade, chegam a pôr os óculos para jogar e, tendo as mãos atacadas pela gota, pagam a alguém para que jogue os dados por eles? São tão loucos pelo jogo, e nele experimentam tão extremo prazer que sou levada a considerá-los como de minha atribuição. Mas, muitas vezes, o jogo se transforma em raiva e furor, e, então, me inclino a atribuí-lo mais às fúrias do que a mim.
Mas, eis que se adiantam algumas pessoas, que sem dúvida vivem sob as minhas leis: são os que se divertem ouvindo ou contando histórias de milagres e prodígios. Não acreditais? Pois esse bom gosto proporciona tal prazer que os sábios são indignos de experimentá-lo. É preciso, sim, é preciso ter nascido sob um particular auspício dos deuses para poder saborear tão doces quimeras. E o melhor é que nunca se fartam de ouvir semelhantes patranhas. Os milagres, os espectros, os duendes, os fantasmas, o inferno, e mil outras visões dessa natureza, são o assunto mais comum das conversas do vulgo ignorante, sendo que, quanto mais extraordinárias são essas coisas, com tanto maior prazer são elas ouvidas e facilmente acreditadas.
E não penseis que tais histórias se contem apenas para iludir as horas de aborrecimento: tornaram-se, na boca dos altos clérigos e dos pregadores, um meio de tirar proveito da crendice popular. A essa espécie podem agregar-se, a justo título, os ridículos e originais supersticiosos, os quais, toda vez que têm a sorte de ver alguma estátua de madeira ou alguma imagem de São Cristóvão, ficam convencidos de que nesse dia não poderão morrer. Soldados há que, depois de uma pequena prece diante da imagem de Santa Bárbara, ficam certos de que sairão ilesos da batalha. Alguns acreditam que, invocando Santo Erasmo em certos dias, com certas orações e à luz de certas lamparinas, seja possível fazer uma grande fortuna em pouco tempo…
Mas, porque não falar dos que julgam que, em virtude dos perdões e das indulgências, não têm nenhuma dívida para com a divindade?
Com a exatidão de uma clepsidra e da mesma maneira por que, matematicamente, sem recear erro de cálculo, medem os espaços, os séculos, os anos, os meses, os dias, - assim também, com essa espécie de falazes remissões medem eles as horas do purgatório.
Outra espécie de extravagantes é constituída pelos que, confiando em certos pequenos sinais exteriores de devoção, em certos palanfrórios, em certas rezas que algum piedoso impostor inventou para se divertir ou por interesse, estão convencidos de que irão gozar uma inalterável felicidade, conquistar riquezas, obter honras, satisfazer determinados prazeres, nutrir-se bem, conservar-se sãos, viver longamente e levar uma velhice robusta. E, como se isso não bastasse, ainda esperam poder ocupar no paraíso um posto elevado, sob a condição, porém, de só passarem ao número dos beatos tão tarde quanto possível.
Pensam, então, chegado o tempo de voar por entre as inefáveis e eternas delícias do céu, uma vez abandonados pelos bens da terra, a que se aferram de todo o coração.
Persuadidos dos perdões e das indulgências, ao negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos e tão puros dos seus numerosos roubos como quando saíram da pia baptismal. Tantos falsos juramentos, tantas impurezas, tantas bebedeiras, tantas brigas, tantos assassínios, tantas imposturas, tantas perfídias, tantas traições, numa palavra, todos os delitos se redimem com um pouco de dinheiro, e de tal maneira se redimem que se julga poder voltar a cometer de novo toda sorte de más ações.
Quem já terá visto homens mais tolos, ou melhor, mais felizes do que os devotos, os quais julgam que entrarão infalivelmente no reino dos céus, recitando todos os dias sete versículos, que eu não sei quais sejam, dos salmos sagrados? No entanto, foi um demónio quem fez tão bela descoberta; mas, um demónio tolo, que tinha mais vaidade do que talento, tanto assim que cometeu a imprudência de exaltar o seu mágico segredo com São Bernardo, que era muito mais esperto do que ele.
E todas essas coisas não serão, talvez, excelentes loucuras? Ah! como isso é verdadeiro! Até eu, que sou a Loucura, não posso deixar de sentir vergonha. No entanto, não é o público o único a aprovar tão completas extravagâncias. Sustentam a sua prática, dando o exemplo, os próprios professores de teologia.
E, já que viajo por esses mares, convém continuar a navegar. Digamos, assim, algumas palavras sobre a invocação dos santos. É curioso verificar que cada país se gaba de ter no céu um protetor, um anjo tutelar, de forma que, num mesmo povo, entre esses grandes e poderosos senhores da corte celeste, se encontrem as diversas incumbências do protectorado. Um cura dor de dentes, outro assiste ao parto das mulheres; aquele faz achar os objetos perdidos, este vela pela segurança e prosperidade do gado; um salva os náufragos, outro confere a vitória nos combates. Suprimo o resto, porque será um nunca mais acabar. Além desses, existem outros santos que gozam de um crédito e um poder universais, encontrando-se entre estes, em primeiro lugar, a mãe de Deus, a quem o vulgo atribui poder maior que o do seu próprio filho.
Ora, as graças que os homens pedem aos santos não serão, talvez, insinuadas também pela Loucura?
Ora, bem vedes que ninguém deu graças a Deus, ou à Virgem, ou a qualquer santo, por ter recuperado o juízo. A loucura tem tantos atrativos para os homens, que, de todos os males, é ela o único que se estima como um bem.
Uma palavrinha acerca de uma espécie de doidos, porque seria um grande mal não os pôr igualmente em cena, quando honram tanto o meu império. Quero referir-me aos ricos que, vendo chegar o fim dos seus dias, providenciam grandiosos preparativos para uma passagem magnífica ao túmulo. É com grande prazer que se observa como esses moribundos se aplicam seriamente às suas pompas fúnebres. Estabelecem, artigo por artigo, quantos círios e quantas velas devem arder nos seus funerais, quantas pessoas vestidas de luto, quantos músicos, quantos carpidores devem acompanhar o féretro, como se, depois de mortos, ainda pudessem conservar alguma consciência para gozar o espetáculo, ou soubessem ao certo que os mortos costumam ficar envergonhados quando os seus cadáveres não são sepultados com a magnificência exigida por seu próprio estado. Finalmente, parece que esses ricos consideram a morte como um cargo de edil, que os obrigue a ordenar festas populares e banquetes.
Não posso deixar em silêncio aqueles que nada distingue de um ínfimo plebeu e que se envaidecem com um inane título nobiliárquico. Não é raro encontrar, entre estes, os que, com ânimo abjeto e vilíssimas e plebeias inclinações, vos pasmem à força de repetir: “Sou um fidalgo”. Convém provar a antiguidade de suas estirpes? Um descende do piedoso Enéias; outro remonta ao primeiro cônsul de Roma; este procede, em linha reta, do rei Artur. Além disso, mostram as estátuas e os retratos dos antepassados: enumeram os bisavós e os tataravós; recordam os antigos sobrenomes e os feitos dos seus maiores. Enquanto isso, pouco diferem eles de uma estátua muda, e eu os diria mesmo quase inferiores às próprias figuras que vão mostrando.
Esses idiotas fazem um alto conceito de si mesmos e estão sempre cheios da estéril ideia de sua ascendência. O que é facto, porém, é que imbuídos dessa quimera, levam uma vida contente e feliz. Ora, o que contribui, em grande parte, para que em tão boa conta se tenha esse belo fantasma de nobreza, é justamente o respeito que o vulgo insano demonstra por eles, parecendo até enxergar nesse género de bestas, nesses nobres sem mérito, outras tantas divindades.
O amor-próprio do homem, por toda a parte produz muitos modos felicíssimos. Quantos meios surpreendentes não possuirá o meu caro amor-próprio, para impedir que o homem fique desgostoso de si mesmo? Olhai aquele rosto: não há macaco mais feio, nem mais disforme; no entanto, julga-se um lindo rapaz. E, perto dele, o outro que traça duas ou três linhas com exatidão, à força de compasso! Intimamente, já se aplaude, julgando-se um Euclides. E aquele que está cantando, ainda pior que um galo? Não importa: pensa ter uma voz paradisíaca. Todavia, também essa espécie de loucura é verdadeiramente agradável.
Alguns que não tendo dotes próprios, glorificam-se com os dos outros. Tal era, segundo Séneca, aquele rico duplamente feliz que, ao pretender contar alguma história, tinha sempre ao redor os escravos, que lhe auxiliavam a memória, sugerindo-lhe os vocábulos adequados, mesmo os mais comuns. Esse senhor, era, além disso, tão fraco que bastava um pequeno sopro de vento para levá-lo ao chão: isso, contudo, não impedia que estivesse sempre disposto a bater-se a socos, fiando-se na força dos escravos, como se esta fosse sua.
É inútil passar aqui em revista os que professam as artes, porque com razão podem ser considerados os prediletos, os favoritos do meu amor-próprio. Em geral, essas pessoas estão de tal forma fanatizadas por seu pequeno mérito que prefeririam ceder uma parte do seu património a confessar-se ineptas. Os cómicos, os músicos, os oradores, os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor-próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores.
Mas, não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra sequazes.
Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adopta com maior avidez. Perguntar-me-eis por quê? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos.
A ignorância tem, pois, dois grandes privilégios: um, que consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do género humano.
Por conseguinte, seríeis duas vezes ingénuos se quisésseis elevar-vos acima do nível comum, com toda a vossa ciência filosófica. Que pensais que obteríeis com isso? Podeis estar certos de que, além de vos custar muito caro semelhante propósito, chegaríeis ao ponto de não saberdes tolerar mais ninguém e de não poderdes por mais ninguém ser tolerados. Resultaria, enfim, que ninguém seria capaz de apreciar o vosso génio e de penetrar os vossos sentimentos.
Todo homem, ao nascer, recebe o seu amor-próprio como um dom da natureza. Mas, essa mãe comum não se limitou apenas ao homem, pois fez o mesmo presente à sociedade, de maneira que não se encontra uma única nação, uma única cidade que não tenha o seu gosto particular.(…) Cada nação se compraz em ser a única verdadeiramente civilizada e sem sombra de barbarismo. Finalmente, os alemães se pavoneiam por sua natureza gigantesca e por sua habilidade na ciência da magia.
Estais vendo, agora, se não me engano, como o amor-próprio difunde por toda parte grandes alegrias, quer nos indivíduos, quer nas nações.
Ao lado do amor-próprio, acha-se sempre a sua boa irmã — a adulação. Isto posto, respondei-me: em que consiste o amor-próprio? Não consistirá, porventura, em agradar, em satisfazer, em adular a si mesmo?
Pois bem: quando procedeis dessa forma em relação aos outros, isso se chama adulação.
Hoje a adulação passa por uma crise infame, especialmente entre aquelas pessoas que mais se comovem com as palavras do que com as próprias coisas. Dizem que a adulação não possa coadunar-se com a fidelidade. Ideia falsa! Pois os próprios animais não nos mostram o contrário? Em vão se procuraria animal mais cortesão e adulador do que o cão, e, não obstante, quem pode vangloriar-se de ser mais fiel do que ele?
Não ignoro que há perniciosa adulação, da qual costumam servir-se os maliciosos e os caçoadores para arrumar e ridicularizar míseros tolos e vaidosos.
A minha adulação provém do engenho, da benignidade e da candura. Reanima os espíritos abatidos, alegra os melancólicos, estimula os poltrões, desperta os estúpidos, restabelece os enfermos, acalma os furibundos, forma e mantém os amores. A minha adulação incita as crianças ao trabalho e ao estudo, e consola os velhos. Sob o manto do louvor, censura e instrui os monarcas, sem ultrajá-los. Enfim, minha adulação faz com que os homens, como outros tantos Narcisos, se apaixonem por si mesmos, dando origem à principal felicidade da vida.
Que afectuoso espectáculo é ver as mulas coçarem-se mutuamente!
A Adulação é uma grande parte da tão louvada eloquência, maior ainda É a esse mútuo auxílio na medicina e máxima na poesia. Devo acrescentar que a adulação é o mel, o condimento de toda a sociedade humana.
Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu, ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão — pergunto — as que perturbam o tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso. O ânimo do homem é de tal maneira esculpido que muito mais lhe agrada a ficção, do que a verdade. Quereis disso uma prova sensível e incontrastável? Ide assistir a um sermão, e vereis que, quando o cacarejador (oh! que injúria! enganei-me, desculpai-me), queria dizer, quando o pregador aborda o assunto com seriedade e apoiado em argumentos, o auditório dorme, boceja, tosse, assoa o nariz, relaxa o corpo, inteiramente enjoado. Se, porém, o orador, como quase sempre é o caso, conta uma velha fábula ou um milagre da lenda, então o auditório logo se agita, os dorminhocos despertam, todos os ouvintes levantam a cabeça, arregalam os olhos, prestam atenção. Nunca observastes que, ao celebrar-se numa igreja a festa de um santo poético ou fabuloso — por exemplo, de um São Jorge, de um São Cristóvão, de uma Santa Bárbara — em geral se costuma consagrar-lhe uma pompa e uma devoção bem maiores que a que se consagra a São Pedro e São Paulo, e ao próprio Nosso Senhor?
Quão pouco custa o acesso a esta felicidade!
A mínima ciência, como a gramatica, adquire-se à custa de grande esforço; mas a opinião forma-se facilmente. A opinião, é concebida sem esforço, insinua-se por si mesma no coração e contribui também, talvez mais do que a evidência e a realidade das coisas, para a felicidade da vida.
Se um esfomeado come carne podre, cujo fedor obrigaria um outro a tapar o nariz, se ele a come com tanto gosto como se se tratasse do alimento mais fino, eu vos pergunto se por isso deve ser considerado menos feliz. Ao contrário, se um enfastiado comesse excelentes iguarias e, em vez do seu gosto, sentisse náuseas, onde estaria, nesse caso, a sua felicidade? Para um homem que tem uma mulher feíssima, mas na qual vê perfeitamente a sua bela, não é o mesmo que se tivesse desposado uma Vênus? O tolo que possui um mau e miserabilíssimo quadro, mas acredita possuir uma pintura de Zeuxis ou de Apeles, não se cansando de comtemplá-lo e admirá-lo, não será incomparavelmente mais feliz que o outro que, tendo comprado por elevado preço um quadro desses excelentes pintores, não experimente igual prazer ao contemplar as obras? De um homem que tem a honra de trazer o meu nome, eu sei que, pouco depois das núpcias, deu de presente à sua mulher brilhantes falsos. Sendo ele um engraçado tratante, convenceu a mulher de que as pedras eram preciosas, tendo lhe custado uma grande soma. Ora, nada faltava ao prazer da esposa. Ela gostava de se enfeitar com aqueles pedaços de vidro e não se cansava de admirá-los, satisfeitíssima de possuir o imaginário tesouro, como se este fosse real. Ao mesmo tempo, o marido poupara uma despesa apreciável e estava contente com o engano da mulher, que lhe agradecia da mesma forma por que o teria feito se ele lhe tivesse dado um magnífico presente.
Merecem ser incluídos nessa categoria os habitantes da caverna de Platão. Ao verem, os tolos, as sombras e as aparências de diversas coisas, admiram-nas e nada mais procuram, dando-se por satisfeitos. Já os sapientes, por estarem fora da caverna, não só observam os mesmos objetos como lhes investigam os mistérios. Não terão uns e outros o mesmo prazer? Se o remendão Micilo , de que fala Luciano, tivesse podido passar o resto dos seus dias no belíssimo sonho em que se embalava quando o despertaram, poderia ele desejar felicidade maior?
Não haveria, pois, diferença alguma entre os sábios e os loucos, se não fossem mais felizes estes últimos. Sim, porque estes o são por dois motivos: o primeiro é que a felicidade dos loucos não custa nada, bastando um pouquinho de persuasão para formá-la; o segundo porque é uma felicidade que todos podem fruir em comum.
Ora, sabemos que não há felicidade completa que não seja compartilhada. Os sábios são em número tão escasso que nem vale a pena falar deles, e eu desejaria saber mesmo se é possível descobrir algum.
Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me prestam (…)Considero-me tão satisfeita pelo facto de em toda a parte, e por toda a gente ser tão imitada, que os ânimos me possuem, os costumes me refelectem, as vidas me representam.(…) De resto, porque hei de exigir um templo, se possuo um tão vasto e tão belo, que é a terra inteira? Não me faltam ministros, nem sacerdotes, salvo nos lugares onde não existe nenhum homem.
Deuses imortais! Que bela e ridícula comédia não resultará de todos os movimentos dos loucos? Um apaixona-se perdidamente por uma mulherzinha, e, quanto menos correspondido, tanto mais acesa se torna sua paixão amorosa; outro casa-se com o dote e não com a moça; outro prostitui a própria mulher vendendo-a ao primeiro que encontra; outro, finalmente, agitado pelo demónio do ciúme, espia como um Argos a conduta da esposa. E que coisas estranhas não se dizem e fazem quando morre um parente próximo? Chega-se ao ponto de pagar a pessoas que finjam chorar e gesticulem como cómicos. Quanto maior é a alegria experimentada pelo coração, tanto maior é a tristeza que o rosto aparenta, o que deu origem ao provérbio grego: Chorar na sepultura da madrasta. Este tira o quanto pode, seja de onde for, e dá tudo de presente à própria barriga, com o risco de morrer de fome depois de satisfeita a gulodice; aquele põe toda a sua felicidade no ócio e no sono; há alguns que, preocupados sempre com os negócios alheios, descuram inteiramente dos próprios interesses; vêem-se os que contraem dívidas para pagar as dos outros e, quando se julgam ricos, verificam que estão falidos; há os que, vivendo pobremente, não conhecem felicidade senão a de enriquecer os seus herdeiros; outros, ávidos de riquezas, percorrem os mares em busca de um ganho incerto, confiando às ondas e aos ventos uma vida que nenhum ouro do mundo poderia resgatar; outros, sedentos de sangue, preferem tentar a sorte no meio dos perigos e dos horrores da guerra a passar seus dias, cómoda e tranquilamente, no seio da família; enfim, gabam-se de uma gorda herança, quando conseguem apoderar-se do ânimo de algum velho que está para morrer sem herdeiros, ou quando têm a fortuna de cativar a graça e o favor de uma rica velhota. Mas, depois, como se riem os deuses, ao verem esses pescadores de dinheiro nas próprias redes! Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos actores da vida humana: não há coisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra, exercem-na da maneira mais porca. São, em geral, perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores. No entanto, devido à sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar frades aduladores, particularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a corte e publicamente lhes dão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar uma parte dos mal adquiridos tesouros. Vêem-se, também, alguns seguidores de Pitágoras, que adoptando a opinião desse filósofo, segundo a qual todos os bens são comuns, usurpam conscientemente tudo o que podem, como se conseguissem uma herança legítima. Outros, imaginando-se ricos, arquitetam belíssimas quimeras de fortuna e vivem felizes nas suas esperanças. Alguns querem passar por ricos, embora às vezes lhes chegue a faltar o necessário. Um apressa-se a esbanjar todos os seus bens, enquanto outro está sempre preocupado em acumular, tudo o que pode. Há os que anseiam por obter um cargo, e os que, acima de tudo, preferem viver ociosamente sentados a um canto do lar. Enfurecem-se as partes com a demora do processo, parecendo apostar qual das duas tem mais a possibilidade de enriquecer um juiz venal e um advogado prevaricador, cujo intuito não é senão prolongar a demanda, que só para eles traz vantagens. Os homens agitados e sediciosos andam sempre atrás de novidades, enquanto os inquietos meditam grandes empresas. Alguns empreendem uma romaria a Jerusalém, a Roma, a São Tiago, onde não têm nada que fazer, enquanto deixam abandonados em casa a mulher e os filhos, que tanto necessitam de sua presença. Se, finalmente, pudésseis observar, do mundo da lua, como o fez Menipo, as inúmeras agitações dos mortais, decerto acreditaríeis estar vendo uma densa nuvem de moscas ou de mosquitos brigando, insidiando-se, guerreando-se, invejando-se, espoliando-se, enganando-se, fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Não podeis sequer imaginar os horrores e as revoluções com que enche a terra esse animalzinho, tão pequeno e de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem. Frequentemente numa breve guerra ou numa pestilenta procela perecem aos milhares. Mas, eu própria seria profundamente estúpida e mereceria que Demócrito se risse de mim a valer, se pretendesse descrever todas as extravagâncias e loucuras do vulgo.
Passemos, pois, a falar dos que conservam, entre os homens, uma aparência de sabedoria e possuem, como dizem eles esse ramo de ouro de Virgílio.
Entre esses, ocupam o primeiro posto os gramáticos, os pedantes! Essa espécie de homens seria decerto a mais miserável, a mais aflita, a mais malquista pelos deuses, se eu não tivesse o cuidado de mitigar os incómodos de tal profissão com géneros especiais de loucura. Sempre famélicos e sujos nas suas escolas, ou melhor, nas suas cadeias ou lugares de suplícios e de tormentos, no meio de um rebanho de crianças, envelhecem de fadiga, tornam-se surdos com o barulho, ficam tísicos com o fedor e a imundície. No entanto, quem o diria? Graças a mim, os pedantes julgam-se os primeiros homens do mundo. Não podeis imaginar o prazer que experimentam fazendo tremer os seus tímidos meninos com um ar ameaçador e uma voz altissonante. Armados de chicote, de vara, de correia, não fazem senão decidir o castigo, sendo ao mesmo tempo partes, juízes e carrascos. Parecem-se mesmo com o burro da fábula, o qual, por ter às costas uma pele de leão, julgava-se tão valoroso como este. A sua imundície afigura-se-lhes asseio; o fedor serve-lhes de perfume; e, acreditando-se reis em meio à sua miserabilíssima escravidão parece-lhes realeza.
O que, sobretudo, contribui para torná-los felizes é a ideia de possuírem uma nova doutrina.. Embora não façam senão meter palavras insignificantes e insulsas frivolidades na cabeça das crianças confiadas aos seus cuidados — santo Deus! — julgam-se superiores. Nem mesmo sei com que meios conseguem lisonjear as estúpidas mães e os idiotas pais dos alunos, ao ponto de serem realmente considerados como os ilustres homens que eles próprios se inculcam.
Acrescentemos a isso outro género de prazer por eles experimentado toda vez que conseguem descobrir, num velho papelucho todo sujo e comido de traças, o nome da mãe de Anquises ou alguma palavra geralmente desconhecida, — bubsequam, por exemplo, bovinatorem, manticulatorem — ou quando têm a sorte de encontrar um pedaço de lápide antiga, na qual se encontrem caracteres truncados. Ah! por Júpiter imortal! que tripúdio, que triunfo, que aplausos! É indizível a alegria experimentada por esses pedantes, quando, ao lerem de porta em porta os seus versos gelados e insulsos, encontram por acaso algum admirador. Logo se julgam novos Virgílios. Oh! como é bonito vê-los trocar, entre si, elogio por elogio, admiração por admiração, lisonja por lisonja! Se acontece que um homem da arte erra em alguma sintaxe e outro mais penetrante do que ele o percebe — santo Deus! — que cenas, discussões, que injúrias, que invectivas!
Já os poetas não me devem tanto, se bem que pertençam à minha facção. Há muito tempo que se diz que “os poetas e os pintores formam uma nação livre”. Os poetas fazem consistir toda a sua arte em impingir meras ninharias e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos. Isso não impede que, apoiados nessas ridicularias, se gabem de obter uma divina imortalidade e ainda a prometam aos outros.
O amor-próprio e a adulação são os seus conselheiros indivisíveis, e eu não tenho adoradores mais fiéis nem mais constantes do que eles.
Os oradores também pertencem à minha seita. Devo, porém confessar-vos que não são os meus súditos mais fiéis, pois assemelham-se, até certo ponto, aos filósofos. Apesar disso, além de serem igualmente cheios de amor-próprio e de vaidade, não deixam de ser fecundos em frivolidades, sendo que os mais célebres chegaram a escrever a sério extensos tratados sobre a maneira de gracejar.
Segundo esses escritores, a loucura tem uma força maior do que a razão, porque, muitas vezes, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com uma chacota.
Outra espécie de pessoas mais ou menos da mesma laia é constituída pelos que ambicionam uma fama imortal publicando livros. Todos esses escritores têm parentesco comigo, sobretudo os que só publicam coisas insípidas, meras bagatelas.
Quanto aos autores que só escrevem para poucos, isto é, para pessoas de fino gosto e perspicazes, confesso-vos ingenuamente que merecem mais compaixão do que inveja. Imersos numa contínua meditação, pensam, tornam a pensar, acrescentam, emendam, cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem, riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam às vezes nove e dez anos, antes do manuscrito ser impresso.
Oh! como me causam piedade tais escritores! Nunca estando satisfeitos com o seu trabalho, que recompensa podem esperar? Ai de mim! um pouco de incenso, um reduzido número de leitores, um louvor incerto. Mas, respondei-me francamente: compensarão essas ténues bagatelas o sacrifício do sono, mais doce do que tudo, da tranquilidade, dos prazeres, numa palavra, de todas as doçuras da vida? É preciso acrescentar ainda que esses sonhadores que andam em busca de imortalidade arruínam a saúde, tornam-se pálidos, magros, ramelentos e, às vezes, até cegos. São sempre miseráveis, invejados, não têm prazer algum e, como resultado, só conseguem apressar a velhice e a própria morte. Malgrado tudo isso, o nosso sábio considera suficiente, como remédio a tantos males, a aprovação de um ou dois ramelentos da sua espécie.
Mas, falemos, agora, de um autor que escreva sob os meus auspícios e do qual seja eu a Minerva. Não conhecendo a meditação, nem a tortura do cérebro, nem as vigílias, escreve tudo o que sonha, tudo o que lhe vem à cabeça. Tudo lhe parece surpreendente e divino. A pena mal pode acompanhar a velocidade da imaginação, e dos pensamentos. Não despendendo mais do que um pouco de papel, escreve um mundo de disparates e de impertinências, convencido de que, publicando bobagens, granjeará mais facilmente os aplausos da maioria, isto é, de todos os tolos e de todos os ignorantes. E quem poderá negar que esse homem seja verdadeiramente feliz?
Responder-me-eis que, assim parecendo, é preciso renunciar completamente à esperança de ser aplaudido pelos verdadeiros doutos!
Que lhe importa a reprovação de dois ou três doutos que porventura o leiam? De que valeria a opinião de tão poucos sapientes perante a turba imensa dos que a aplaudem?
Mais sapientes são ainda os que editam obra alheia por sua. Os plagiários que com suas facilidades se apropriam das obras alheias, gozando da glória que aqueles dos quais eles a roubaram conseguiram com imensa dificuldade! Não ignoram esses impudentes que, mais dia menos dia, será descoberto o furto, mas, em compensação, esperam aproveitar-se dele por algum tempo. É um prazer doido ver como se pavoneiam quando elogiados; quando, ao passar por um lugar, são apontados e ouvem dizer: — Olhe, aquele ali é um homem verdadeiramente admirável; quando vêem seus livros bem juntinhos e bem expostos na loja de algum livreiro. (…)Às vezes, esses generosos campeões injuriam-se reciprocamente, a fim de aumentarem pela emulação a própria fama.
Entre os eruditos, os advogados revindicam o primeiro lugar, pois não há gente mais vaidosa. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime o laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência.
Podemos unir a esses, com toda a honra, os dialéticos e os sofistas, que fazem mais barulho do que todo o bronze dodóneo, sendo que cada um deles poderia superar em tagarelice mais de vinte mulheres, mesmo dentre as que costumam distinguir-se pelo falatório. Não obstante, ainda seria de desejar que não tivessem outro defeito a não ser o de falar demais; mas, por desgraça nossa, são sempre discussões de lana-caprina, e, à força de discutir para sustentar a verdade (como pretendem eles), perdem de vista, o mais das vezes, a própria verdade. Esses eternos discutidores estão sempre contentes consigo mesmos e, armados de três ou quatro silogismos, sempre dispostos a desafiar para a controvérsia quem quer que seja e sobre qualquer argumento. A obstinação serve-lhes de espada, invencível, pois não cedem nunca.
Seguem-se-lhes, os veneráveis filósofos, respeitáveis pela barba e pela túnica. Gabam-se de ser os únicos sábios e acreditam que todos os outros homens não passem de sombras móveis. Rasguemos esse véu de orgulho e de presunção, e vejamos o que são os filósofos. Não passam, também, de ridículos loucos: quem poderá conter o riso ao ouvi-los sustentar seriamente a edificação de mundos inumeráveis? O sol, a lua, as estrelas, todos esses globos são por eles conhecidos tão bem como se os tivessem medido palmo a palmo ou com um fio. Sem duvidar de nada, eles vos dizem a causa do trovão, dos ventos, dos eclipses e de todos os outros mistérios físicos. Na verdade, ao ouvi-los falar com tanta convicção, qualquer os julgaria membros do grande conselho dos deuses ou testemunhas oculares da natureza quando tudo saiu do nada.
Mas, a despeito disso, a natureza, essa hábil produtora do universo, parece zombar das suas conjecturas. Basta, com efeito, reflectir-se sobre a estranha diversidade dos seus sistemas, para se dever confessar que eles não têm nenhuma ideia segura, pois que, enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em nada. Mas como nada sabem, pretendem tudo saber: ignoram-se a si próprios, e não vêem o fosso ou a pedra óbvia, ou por debilidades visuais ou por peregrinações da alma. Estragando a vista na contemplação meticulosa da natureza e com o espírito sempre distante, vangloriam-se de distinguir as ideias, os universais, as formas separadas, as matérias primas, os quid, os ecce, em suma, todos os objetos que, de tão pequenos, só poderiam distinguir-se, se não me engano, com olhos de lince.
Em nenhuma outra ciência se despreza tanto o vulgo profano como nas matemáticas, que consistem em triângulos, quadrados, círculos e outras figuras geométricas semelhantes, que se sobrepõem uma às outras, confundindo tudo como um labirinto. Por fim, atordoam os idiotas com diversas letras dispostas como um exército em ordem de batalha e subdivididas em várias companhias.
Mas, não esqueçamos os astrólogos, aos quais o céu serve de biblioteca e os astros servem de livros. Graças a esse estudo, compreendem tudo muito bem e revelam o futuro, predizendo maiores prodígios do que os magos. E o mais bonito é que ainda têm a fortuna de encontrar crédulos.
Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria, tão grande é o perigo de tocar em semelhante erva infecta. Esses supersticiosos intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furibundos, mordem-vos e não vos largam senão depois de vos terem obrigado a fazer a vossa palinódia com uma série infinita de conclusões; mas, se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. E, mostrando essa cólera, chamando de herege, de ateu, conseguem fazer tremer os que não concordam com eles.
Embora não haja ninguém que, tanto como eles, dissimule os meus favores, não é menos verdadeiro que me devem muito. Eis porque impus ao meu amor-próprio favorecê-los mais do que a todos os outros mortais, e de fato são eles os meus maiores predilectos. É por isso que, do alto da sua elevação e à maneira de tantos anjos que habitam o terceiro céu, consideram o resto dos homens como outros tantos animais bajuladores e têm piedade deles. Cercados de uma série de magistrais definições, conclusões, corolários, proposições explícitas, em suma, de tudo o que compõe a malícia da escola sacra, usam de tantos subterfúgios que o próprio Vulcano não conseguiria embrulhá-los, mesmo empregando a rede de que se serve para mostrar aos deuses os seus cornos nascentes. Não há nó que esses senhores não saibam desfazer de um golpe com a mais que tenédia bipene do distinguo: bipene formada de todos os novos vocábulos sonoros e empolados que nasceram no seio da subtileza escolástica.
Observemo-los, repito, a interpretar a seu talante os ocultos mistérios da salvação e por que motivo foi criado e ordenado o mundo. Trata-se de saber por que canais passou à posteridade a mancha do pecado original? Trata-se da Encarnação e da Eucaristia? Ah! tais mistérios são muito batidos e dignos apenas de teólogos noviços! Eis as questões dignas dos grandes mestres, dos mestres iluminados, como dizem eles, os quais, ao tratar desses argumentos, se agitam e tomam fôlego: — Houve algum instante na geração divina? — Jesus Cristo tem muitas filiações? — É possível esta proposição: — Deus padre odeia o seu filho? — Ter-se-ia Deus tornado a uma mulher, o diabo, um burro, uma abóbora, a uma pedra? — No caso de Deus se ter unido à natureza de uma abóbora, como fez com a natureza humana, de que maneira essa beata e divina abóbora teria pregado, feito milagres e sido crucificada na cruz? — Como teria ela consagrado São Pedro, se este tivesse dito missa quando o corpo de Jesus Cristo estava pregado na cruz? — Poder-se-ia dizer, então, que o Salvador era um verdadeiro homem? — Será permitido comer e beber depois da ressurreição? (Essa dúvida existe no íntimo dos nossos reverendos, que muito satisfeitos ficariam com uma resposta a essa pergunta).
Mas, não consiste somente nisso o armazém teológico; há ainda inúmeras outras argúcias, não menos frívolas e subtis do que as supracitadas. Tais são, por exemplo, o instante da geração divina, as noções, as relações, as formalidades, os quid, os ecce, e tantas outras quimeras de natureza semelhante. Duvido que alguém seja capaz de descobri-las, a não ser que tenha uma vista tão penetrante que lhe permita distinguir, através de densas nuvens, objectos inexistentes.
Acrescentemos a tudo isso a sua moral estranha e contraditória. Sustentam, por exemplo, que concertar o sapato de um pobre em dia de domingo é um pecado maior do que estrangular mil pessoas; que seria preferível deixar cair o mundo no nada de onde veio a proferir a menor mentira, etc. Além disso, contribuem para subtilizar ainda mais essas subtilíssimas subtilezas todos os diversos subterfúgios dos escolásticos; Em todas as facções, são tantas as erudições e tantas as dificuldades, que, se os próprios apóstolos descessem à terra e fossem obrigados a discutir com os teólogos modernos sobre essas sublimes matérias, sou de opinião que teriam necessidade de um novo Espírito Santo totalmente diverso daquele que, em seu tempo, lhes dava a possibilidade de falar.
São Paulo tinha fé, mas não deu uma definição da fé bastante magistral quando disse:” A fé é a substância das coisas esperadas e a prova que não é apreendido pelos sentidos”. No mesmo apóstolo ardia o fogo da caridade, mas ele não se mostrou bom lógico ao omitir a definição e a divisão dessa virtude no capítulo XIII da sua primeira epístola aos coríntios.
Os apóstolos consagravam com devoção e com piedade o sacramento da Eucaristia: se tivessem, porém, de explicar como Deus pode passar de um lugar para outro por meio da consagração; como se dá a transubstanciação; como um mesmo corpo pode encontrar-se ao mesmo tempo em vários lugares; que diferença existe entre o corpo de Jesus Cristo no céu, na cruz e na Eucaristia; em que momento se verifica a transubstanciação…
Tiveram os apóstolos, é verdade, a sorte de conviver com a mãe de Jesus, mas nenhum deles a conheceu tão bem como os nossos teólogos, que provaram geometricamente ter sido a Virgem fecunda preservada da mancha do pecado original.
São Pedro recebeu as chaves das próprias mãos do Homem-Deus, sendo de supor-se que este não tivesse tido a intenção de colocá-las em más mãos; mas, não sei se o beato pescador conhecia bem o significado daquelas místicas chaves. Nós, porém, sabemos, com certeza, que ele nunca perguntou a Deus seu mestre como poderia um grosseiro e ignorante pescador ter as chaves da ciência.
Os apóstolos baptizavam continuamente, mas, apesar disso, nunca ensinaram a causa formal, material, eficiente e final do baptismo, nem fizeram menção do caráter delével e indelével do mesmo. Esses fundadores da religião cristã adoravam a Deus, mas a sua adoração apoiava-se neste princípio fundamental do evangelho: Deus é um espírito puro e é preciso adorá-lo em espírito e verdade.
Parece, igualmente, não ter sido revelado aos apóstolos que o culto, nas escolas chamado latria, possa prestar-se tanto a Jesus Cristo em pessoa como às suas imagens rabiscadas na parede com carvão, bastando que representem o filho de Deus dando a bênção com os dois dedos, índice e médio, da mão direita levantada, e com a cabeça ornada por uma longa cabeleira e um tríplice círculo de raios.
Os apóstolos costumam falar da graça, mas não distinguem a graça gratuita da graça gratificante; exortam às boas obras, mas não distinguem a obra operante da obra operada; inculcam a caridade, mas não separam a infusa da adquirida, além de não explicarem se essa amável e divina virtude é substância ou acidente, criada ou incriada; detestam o pecado, mas eu quisera morrer se eles já foram capazes de definir cientificamente o que chamamos de pecado.
Se São Paulo, pelo qual devemos julgar todos os outros apóstolos, tivesse tido uma boa teoria do pecado, teria ele condenado com tanta insistência as polémicas, as contendas, as querelas, as discussões em torno de palavras? Digamos, pois, com franqueza, que São Paulo não conhecia as argúcias e as qualidades espirituais que distinguem os modernos, tanto mais quanto as controvérsias surgidas na primitiva Igreja não passavam de pueris mesquinharias diante do refinamento dos nossos mestres, que, em matéria de sutileza, ultrapassaram de muito o próprio sofista Crisipo
Façamos, porém, justiça à sua modéstia, pois não condenam o que os apóstolos escreveram com pouco acerto e precisão, mas limitam-se a interpretá-lo de modo favorável, para usar de certa consideração para com a venerável antiguidade e para com o apostolado. Não seria, aliás, razoável pretender que os apóstolos tratassem dessas difíceis matérias, quando o seu divino mestre nunca lhes disse uma palavra a esse respeito.
(…)Os nossos teólogos novos(discutidores) em lugar de adorarem a impenetrável obscuridade dos nossos mistérios (que justamente por isso são mistérios), pretendem explicá-los. E de que maneira? Com uma linguagem imunda e argumentos não menos profanos que os dos gentios. Arrogam-se insolentemente o direito de definir e discutir verdades incompreensíveis, profanando assim a majestade da teologia com as palavras e sentenças mais insulsas e triviais. No entanto, esses insignificantes faladores envaidecem-se com sua vazia erudição e experimentam tanto prazer em ocupar-se dia e noite com essas suavíssimas nênias que nem tempo lhes sobra para ler ao menos uma vez o evangelho e as cartas de São Paulo. E o mais bonito é que, enquanto assim cacarejam em suas escolas, imaginam-se os defensores da Igreja, que cairia na certa, se cessassem um momento de sustentá-la com a força dos seus silogismos, exatamente como Atlas, segundo os poetas, sustenta o céu com as costas.
Contam ainda os nossos discutidores com outro grande motivo de felicidade. Formam e reformam as letras arcanas, em suas mãos, como um pedaço de cera, pois costumam dar-lhes a forma e o significado que mais correspondam ao seu génio. Pretendem que as suas conclusões acerca das sagradas escrituras, uma vez aceitas por alguns outros escolásticos, devam ser mais respeitadas do que as leis de Sólon e preferíveis aos decretos dos papas. Erigem-se em censores do mundo e, se alguém se afasta um pouquinho das suas conclusões, diretas ou indiretas, obrigam-no logo a se retratar, sentenciando como oráculos: Essa proposição é escandalosa, esta aqui é temerária, aquela cheira à heresia, aquela outra soa mal. Dessa forma, nem o evangelho, nem o baptismo, nem Paulo, nem Pedro, nem Jerónimo, nem Agostinho, nem o próprio Tomás de Aquino, embora aristotélico fanático, saberiam fazer um ortodoxo sem o beneplácito desses bacharéis, tão necessário é a sua subtileza para bem decidir da ortodoxia. Quem viria a saber que para eles não é cristão aquele que julga idênticas estas duas orações: “Penico fede” e “Penicos fedem”?
Como se teria purgado a Igreja de tantos erros, se não tivesse podido distingui-los antes de ter sido aplicado o grande sigilo da universidade às proposições condenadas? Não considerareis felicíssimas essas pessoas? Mas, prossigamos ainda um pouco. Quantas lindas lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo eterno, e das diversas incumbências dos demónios, discorrem, finalmente, com tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da mesma durante muitos anos.
Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam o trabalho de criar ainda novos mundos, como o mostraram formando o décimo céu, por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até jogando a péla quando tivessem vontade.
Os nossos finos pensadores têm a cabeça tão cheia, tão agitada por essas bobagens, que decerto não estava mais cheia a cabeça de Plutão quando, ao querer parir Pallas, implorou o socorro do machado de Vulcano. Não vos admireis, pois, ao vê-los aparecer nas defesas públicas com a cabeça cuidadosamente cingida com tantas faixas, pois não fazem senão procurar impedir, por meio desses respeitáveis liames, que ela arrebente de todos os lados em virtude da porção de ciência de que o seu cérebro se acha sobrecarregado.
Rio por ver como eles estabelecem a sua superioridade teológica. Os que falam mais barbara e grosseiramente e os que balbuciam de modo que ninguém os possa entender, julgam atingir o cume quando o público não os pode seguir. Gabam-se disso, chamando-lhe agudeza e dizendo com arrogância que não falam para o vulgo profano; e acrescentam que a dignidade das santas escrituras não permite subordiná-las às regras gramaticais.
Admiremos a majestade dos teólogos! Somente a eles é permitido falar incorretamente e, quando muito, se concede que o vulgo lhes dispute essa prerrogativa.
Finalmente, os teólogos colocam-se imediatamente depois dos deuses e quando, por uma espécie de religiosa veneração, se ouvem chamar nossos mestres, imaginam ver nesse título alguma coisa daquele inefável nome composto de seis letras e tão adorado pelos judeus. Nessa presunção, querem que se escreva MESTRE NOSSO, com letras maiúsculas
Próximo da felicidade dos teólogos está a daqueles que o vulgo chama religiosos e monges, se bem que seja falsíssimo o cognome, porque na maior parte estão longe da religião e encontram-se em todos os lugares mais frequentados.
São de tal forma odiados que, quando por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não impede que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se considerem personagens de alta importância.
A sua principal devoção consiste em não fazer nada, chegando ao ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os salmos, já se julgam demasiados doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro, imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado rebanho, alguns se encontram que se gabam da própria imundície e da própria mendicidade, indo de casa em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Albergues, lojas, carros, diligências, todos, em suma, são por eles importunados, com grande prejuízo dos verdadeiros necessitados.
É dessa forma que pretendem ser, como dizem eles, os nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua ignorância, toda a sua grosseria, todo o seu descaramento.
Nada mais ridículo do que a ordem exacta e precisa que observam em todos os seus actos: tudo é feito por eles a compasso e à medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito de tal forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além disso, devem comer a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de alimento, dormir somente tantas horas, etc.
Ora, todos podem compreender muito claramente que é impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita variedade de opiniões e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade que os monges encontram argumento para desprezar os que eles chamam de seculares. Muitas vezes, dá causa a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto dessas santas almas que se vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem mutuamente. E porque? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada da roupa.
Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas evitam que se veja a finíssima camisa que trazem por baixo; outros, ao contrário, trazem externamente a camisa e a roupa de lã sobre a pele.
Os mais ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro, como se se tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as mulheres. Não podeis, enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns dos outros. Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos.
Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados, os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho; estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos.
Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes parece um prémio muito modesto para os seus méritos.
No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no dia do juízo final, apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é peixe; em vão lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão sustentarão que arrumaram a barriga com uma única refeição; em vão produzirão uma porção de práticas fradescas, capazes de carregar pelo menos sete navios; em vão se gabará este de ter passado sessenta anos sem tocar em dinheiro, a não ser com dois dedos muitos sujos; em vão mostrará aquele o seu hábito tão sórdido que até um barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro de ter vivido cinquenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja; em vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este que a longa solidão lhe perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a língua.
Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria um nunca mais acabar), Jesus Cristo porá fim a tantas glorificações: De que país vem esta nova raça de judeus? Pois não dei aos homens uma lei única? e somente essa eu reconheço como verdadeiramente minha. E estes malandros não dizem sequer uma palavra a respeito da minha lei?
Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem, um céu aparte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos.
— Qual não será a consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros?
No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha bondade para com eles.
Não posso deixar de vos dar, aqui, um conselho salutar: nunca desprezeis esta vaga geração bastarda, os mendigos, sobretudo, embora lhes sejam alheias as coisas públicas. É que os frades, por meio do canal que se chama a confissão, estão ao par de todos os mais íntimos segredos das pessoas. Não se pode dizer que ignorem ser um delito capital a revelação das coisas ouvidas no tribunal da penitência. Isso, porém, não impede que o façam em diversas circunstâncias, sobretudo quando, alegres e esquentados pelo vinho, querem divertir-se contando histórias engraçadas. É verdade que, para isso, usam das maiores cautelas, pois em geral não citam os nomes das pessoas.
Desgraçado daquele que irritar esses zangões da sociedade! A vingança vem pronta como um raio do céu. Subitamente, no primeiro discurso ao povo, lançam os seus dardos contra o inimigo, tão bem pintado pelo padre pregador com suas caridosas invectivas que seria preciso ser cego para não saber a quem visam atingir. E o mastim só deixará de ladrar quando lhe taparem a boca com fogaças.
Já que falamos desses bons apóstolos no púlpito, dizei-me se não é verdade que abandonaríeis qualquer charlatão, qualquer saltimbanco, para ouvir os seus ridículos discursos. Bem poderiam eles chamar-se, com toda a honra, os macacos dos retóricos, tal é o prazer que experimentam ao imitar as regras estabelecidas pelos retóricos sobre a arte de falar. Santo Deus! observai como gesticulam, como são mestres em modular a voz, como cantam, como se remexem, como ficam senhores do assunto, como fazem retumbar toda a igreja com os seus socos e os seus berros.
É no silêncio do claustro que eles apreendem essa veemente maneira de evangelizar, que passa de um fradeco a outro como um segredo de suma importância. Principiam sempre as suas mixórdias com uma invocação tomada de empréstimo aos poetas, e fazem um exórdio sem relação alguma com o assunto que devem abordar. Devem, por exemplo, pregar a caridade? Começam pelo rio Nilo. Devem pregar sobre o mistério da cruz? Começam pelo Belo, o fabuloso dragão da Babilónia. Devem pregar o jejum quaresmal? Começam pelas doze constelações do zodíaco. Devem pregar a fé? Começam pela quadratura do círculo. E assim por diante.
Eu mesma, que vos falo, já ouvi uma vez um desses pregadores, homem de uma loucura consumada, queria dizer de uma doutrina consumada. Esse homem devia explicar o impenetrável mistério da Trindade, mas, para patentear a sublimidade do seu engenho e para contentar os ouvidos dos teólogos, não quis seguir o caminho habitual. E que estrada tomou? Era mesmo preciso um homem da sua envergadura para fazer a escolha. Começou o discurso pelo alfabeto e, depois de ter, com prodigiosa memória, recitado exatamente o A B C passou das letras às sílabas, das sílabas às palavras, das palavras à concordância do sujeito com o verbo e do substantivo com o adjetivo. Enquanto isso, todo o auditório estava suspenso e não poucos perguntavam qual poderia ser o objetivo de tantas frioleiras. Mas, o padre pregador tirou logo a dúvida dos ouvintes mostrando que elementos da gramática eram o símbolo e a imagem da sacrossanta Trindade. E o mostrou com evidência igual à que mal poderia conseguir um geómetra nas suas demonstrações.
É preciso confessar, aliás, que essa demonstração de sublime eloquência custara uma imensa fadiga ao nosso non plus ultra dos teólogos, pois empregou em sua tarefa nada menos de oito bons meses. O pobre homem, porém, ressentiu-se, e os extraordinários esforços feitos por tão bela obra-prima tornaram-no mais cego do que uma toupeira, atraída que foi por seu espírito toda a agudeza da vista. Mas, quem o diria? Muito pouco é o seu desgosto por ter perdido a vista, e até lhe parece ter adquirido a glória por bom preço.
Tive ainda o prazer de escutar outro pregador da mesma têmpera. Era venerável teólogo de oitenta anos, mas miseravelmente corrompido na teologia. O bom velho subira ao púlpito para explicar o adorável mistério do Santíssimo Nome de Jesus. Ah! saiu-se às maravilhas! Demonstrou o orador, mas com uma subtileza imperceptível, que tudo quanto se podia dizer para glorificar o Salvador, tudo se achava nas letras componentes do seu augustíssimo nome. Sabeis todos, senhores, a língua latina? Se houver alguém que não a saiba, poderá dormir um pouquinho. Em primeiro lugar, fez observar o velho catedrático que o substantivo Jesus só tem em sua declinação três casos diferentes: o nominativo, o acusativo e o ablativo. Rara e curiosa doutrina! Como lamento a ignorância dos que não podem saboreá-la! Mas, que significam esses três casos? E isso é coisa que se pergunte? Pois não se vêem neles, claramente expressas, as três divinas pessoas da mesma natureza? Mas, ainda há outra coisa! O primeiro desses três casos, reflecti bem, termina em s, Jesus; o segundo em m, Jesum; e o terceiro em u, Jesu. Grandes mistérios, meus irmãos! Essas três letras finais significam que o Salvador é ao mesmo tempo o Sumo, o Médio e o Último. Restava, porém, resolver uma dificuldade mais espinhosa que todos os problemas de matemática, e, não obstante, ele o conseguiu de forma surpreendente. O velho bajoujo teve a felicidade de separar o vocábulo Jesus em duas partes iguais: Je-Su. Mas, que faremos daquele s que, tendo perdido o companheiro, está surpreso de se achar sozinho? Um pouco de paciência e logo repararemos o mal. Os hebreus, em lugar de s, pronunciam syn: ora, em bom escocês, syn quer dizer pecado. Pois bem! — exclamou o pregador — quem será tão incrédulo ao ponto de negar que o Salvador tirou os pecados do mundo? Com essa explicação tão profunda quanto imprevista, todos os ouvintes, sobretudo os teólogos, foram tomados de total surpresa.
Os nossos doutíssimos frades, acreditariam passar por maus retóricos se o preâmbulo, como dizem eles, tivesse a menor conexão com o resto do argumento, não pondo os ouvintes na necessidade de perguntar: Aonde irá ele chegar por esse caminho?
Também propõem, em forma de narração, algum trecho do Evangelho, mas superficialmente e de fugida, e, se bem que devesse ser esse o seu principal dever, eles o tratam de passagem, quase que incidentalmente. De seguida, como se representassem uma nova personagem, levantam uma questão teológica, que embora não se coadune muito com o assunto, é por eles julgada tão necessária que lhes pareceria um pecado contra a arte a não inclusão dessa digressão. É nessas passagens que os nossos pregadores franzem soberbamente as teológicas sobrancelhas e atordoam os ouvidos do auditório com magníficos epítetos dedicados aos seus doutores: solenes, subtis, subtilíssimos, seráficos, santos, irrefragáveis, etc., etc. É também nessas passagens que, como uma saraivada, descarregam uma tempestade de silogismos, de maiores, de menores, de consequências, de corolários, de suposições; e, como bons intrujões, impingem essas insípidas e insolentes bagatelas da sua escola a uma multidão de ignorantes.
Eis-nos chegados, ao acto final da comédia, no qual, mais do que nunca, é mister que se mostrem valentes na arte. Desentranham, então, do armazém da sua memória, alguma estranha e portentosa fabulazinha, provavelmente tirada do Espelho Histórico ou dos Feitos Romanos, e a vão remendando e interpretando no sentido alegórico, tropológico, anagógico, até que, dessa maneira, terminam o discurso, o qual, com muita propriedade, pela surpreendente variedade de suas partes, se poderia chamar de verdadeiramente monstruoso.
Façamos, agora, em conjunto, o exame dos seus sermões. Os nossos reverendos aprenderam, não sei dizer de quem, que a introdução do discurso deve ser feita devagar e em voz baixa. Em virtude dessa regra, falam tão baixinho no exórdio que sou capaz de apostar que nem mesmo eles ouvem o que dizem, como se se dispusessem a falar para não serem entendidos por ninguém. Além disso, ouviram dizer que, para despertar as emoções, o orador deve empregar, de vez em quando, a veemência da exclamação. E assim é que, como fiéis, mas maus observadores desse preceito, quando todos os julgam muitos tranquilos, eles, de repente e sem nenhuma razão, começam a gritar como verdadeiros maníacos. É com toda a sinceridade que vos digo que, ao se mostrarem assim mais doidos do que pregadores, bem se poderia prescrever-lhes uma boa dose de heléboro, pois bem se pode considerar louco aquele que grita por gritar.
Ao mesmo tempo, convencidos de que o orador deve animar-se com o desenvolvimento do discurso, dizem pausadamente os primeiros períodos de cada parte, mas, logo depois, sempre sem haver razão para isso, levantam a voz com tanta força que, ao terminarem, a impressão é de que vão desmaiar. Finalmente, sabendo que as regras da retórica prescrevem que, de vez em quando, se despertem os ouvintes com alguma engraçada pilhéria, esforçam-se os nossos pregadores por motejar, mas — santo Deus! — como o conseguem maravilhosamente! Fazem justamente como o burro da fábula, ao querer tocar a lira.
Às vezes, esses cães da Igreja também sabem morder, mas sem fazer mal, porque mais parecem beliscar do que ferir.
De duas uma: ou os charlatães aprenderam retórica com os nossos pregadores, ou os nossos pregadores estudaram eloquência com os charlatães. Apesar de tudo, nunca faltam os ouvintes. Os que mais concorrem para ouvi-los são as mulheres e os negociantes, cujo afecto os bons pregadores procuram conquistar. Os negociantes, vendo-se adulados e justificados, prestam-lhes de bom grado uma porção de benefícios imerecidos, pois encaram tais donativos como uma espécie de restituição. Quanto às mulheres, têm elas vários motivos secretos para amar os religiosos, quando mais não fosse por encontrarem neles um bálsamo e um consolo contra os desgostos e o enjôo do laço conjugal.
Parece que já demonstrei suficientemente quanto me devem essas cabeças encapuzadas que, com vãs devoções, com cerimônias ridículas, com berros e ameaças, exercem sobre o povo uma particular tirania, na ânsia de serem comparados aos Paulos e aos Antônios. Mas, percebo que já falei muito sobre esses cómicos ingratos, que sabem tão bem dissimular os meus favores como fingir-se sinceramente religiosos. Deixo-os, pois, com muito prazer.
Já é tempo de dizer alguma coisa sobre os príncipes e os grandes, que são justamente o oposto dos velhacos e impostores de que acabei de falar, pois prestam-me o seu culto sem nenhuma reserva e com a franqueza própria do seu estado. Se esses felizes semideuses tivessem na cachola meio grama apenas de cérebro, que haveria no mundo de mais triste e miserável que a sua condição? Quem quer que se desse ao trabalho de refletir atentamente sobre os deveres de um bom monarca, bem longe de querer usurpar uma coroa com o falso juramento, o parricídio, o liberticídio, em suma, com os mais execrandos delitos, tremeria ante o aspecto de um cargo tão enorme.
Com efeito, observemos em que consistem as obrigações de um homem que é posto à testa de uma nação. Deve dedicar-se dia e noite ao bem público e nunca ao seu interesse privado; pensar exclusivamente no que é vantajoso para o povo; ser o primeiro a observar as leis de que é autor e depositário, sem desviar-se nunca de nenhuma delas; observar, com firmeza e com os próprios olhos, a integridade dos secretários e dos magistrados; ter sempre presente que todos têm os olhares fixos na sua conduta pública e privada, podendo ele, à maneira de um astro salutar, influir beneficamente sobre as coisas humanas, ou, como um infausto cometa, causar as maiores desolações. Não deve esquecer-se nunca de que os vícios e os delitos dos súbditos são infinitamente menos contagiosos que os do senhor, e repetir diariamente, a si mesmo, que o príncipe se acha numa elevação, razão por que, quando dá maus exemplos, a sua conduta é uma peste que se comunica rapidamente, fazendo enormes estragos; refletir que a fortuna de um monarca o expõe continuamente ao perigo de abandonar o justo caminho; resistir aos prazeres, à impureza, à adulação, ao luxo, pois nunca estará suficientemente preparado para reprimir tudo o que pode seduzi-lo. Deve, finalmente, conservar sempre na memória que, além das insídias, dos ódios, dos temores, de todos os males a que o príncipe se acha exposto a cada momento por parte dos seus súbditos, deverá ele, mais cedo ou mais tarde, apresentar-se perante o tribunal do Rei dos reis, no qual lhe serão pedidas contas exatas de todos os seus menores actos, sendo ele julgado com rigor proporcional à extensão do seu domínio.
Repito, pois, mais uma vez, que, se um príncipe refletisse bem sobre tudo isso, como o teria feito se fosse um pouquinho sábio, decerto não poderia comer nem dormir tranquilamente um só dia em sua vida. Mas, não vos arreceeis, pois consegui um remédio para isso. Com o favor da minha inspiração, os príncipes descansam tranquilos sobre o seu destino e sobre os seus ministros, vivendo na ociosidade e só mantendo relações com pessoas que possam contribuir para diverti-los de qualquer aflição ou aborrecimento.
Acham eles que cumprem bastante os deveres de um bom rei divertindo-se diariamente nas caçadas, possuindo belíssimos cavalos, vendendo em benefício próprio os cargos e os empregos, servindo-se de expedientes pecuniários para devorar as energias do povo e engordar à custa do sangue dos escravos. Não se pode negar que usem de cautela na aplicação dos impostos, pois alegam sempre títulos de necessidade, pretextos de urgência, e, embora essas exacções não passem, no fundo, de mera ladroeira, esforçam-se, todavia, por encobri-las com o véu do interesse público, da justiça e da equidade. Dirigem ao povo belas palavras, chamando de bons, fiéis, afeiçoadíssimos os seus súbditos, e, enquanto furtam com uma das mãos, acariciam com a outra, prevenindo assim os seus lamentos e acostumando-os, aos poucos, a suportar o jugo da tirania.
Dito isso, quero fazer uma suposição: imaginai no trono (coisa que, aliás, acontece frequentemente), imaginai no trono, dizia eu, um homem ignorante das leis, quase inimigo do bem público, que só tem em mira o seu interesse pessoal, escravo dos prazeres, menosprezador das ciências, que despreza a verdade, que não pode escutar uma linguagem sincera, que tem a felicidade dos escravos como último dos prazeres, que não segue senão suas paixões, que mede cada coisa pela própria utilidade. Colocai nesse homem a gargantilha de ouro, ornamento que significa o complexo e a união de todas as virtudes; colocai-lhe na cabeça a coroa enriquecida de pedras preciosas, o que o adverte de estar na obrigação de superar todos os outros em toda sorte de heróicas virtudes; ponde-lhe o ceptro na mão, ceptro que é o símbolo da justiça e de uma alma perfeitamente incorruptível; vesti-o, finalmente, com a minha púrpura, que denota um vivo amor ao povo e um ardentíssimo zelo por sua felicidade. Se o príncipe comparasse todas estas insígnias com a sua vida, coraria, não poderia deixar de sentir vergonha, e recearia sempre que um malicioso intérprete transformasse todo este culto trágico numa comédia hilariante.
O que direi dos grandes da corte, dos cortesãos? Não há escravidão mais vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de homens, que, não obstante, costuma ganhar para si, de alto a baixo, o resto dos mortais.
Convenhamos, porém, que são modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o ouro, as pedras, a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem facilmente aos outros o cuidado da sabedoria e da virtude.
Para eles, a maior felicidade consiste em ter a honra de falar ao rei, de chamá-lo de Senhor e Mestre absoluto, de fazer-lhe um breve e estudado cumprimento, de poder prodigalizar-lhe os títulos faustosos de Vossa Majestade, Vossa Alteza Real, Vossa Serenidade, etc. etc.
Toda a habilidade dos cortesãos consiste em trajar-se com propriedade e magnificência, em andar sempre bem perfumados e, sobretudo, em saber adular com delicadeza. Quanto ao espírito e aos costumes, são verdadeiros Feáceos, verdadeiros amantes de Penélope, a esse respeito, sabeis o que diz Homero, e, melhor do que eu, vo-lo repetirá a ninfa Eco.
O vil escravo do monarca, quando não deva fazer a corte ao senhor (pois nesse caso se levantaria ao primeiro canto do galo), costuma dormir até ao meio-dia, e, mal desperta, o mercenário capelão, que já esperava por esse momento, resmunga-lhe às pressas uma missa. Em seguida, passa a cuidar do almoço, e daí a pouco, do jantar, ao qual sucedem imediatamente os jogos de dados e de xadrez, os bobos, as cortesãs, os divertimentos inconvenientes e todos os outros prazeres chamados passatempos. Esses devotos exercícios não se fazem sem uma ou duas merendas; depois, vem a ceia, e se passa a noite no meio das garrafas. E assim, sem pensar que se nasce para morrer, a vida passa rapidamente. As horas, os dias, os meses, os anos, os lustros transcorrem para eles sem nenhum aborrecimento, como um relâmpago.
O que a esses indivíduos mais agrada é terem pesadas correntes de ouro à volta do pescoço, ostentando assim mais a robustez do que a virtude.
Êmulos dos príncipes, os sumos pontífices, os cardeais e os bispos quase os superam.
Imaginai, agora, que um bispo, por divertimento, se pusesse a considerar o seu cortejo e ornamentos pontificais. Mas se algum reflectisse que a sua veste de linho, branca como a neve, significa uma vida completamente imaculada; que a mitra bicórnia, cujas extremidades se unem em um nó, denota profundo conhecimento do Velho e do Novo Testamento; que as mãos enluvadas exprimem um coração depurado de todo contágio mundano na administração dos sacramentos; que a cruz dos sapatos o adverte de que deve velar continuamente pelo rebanho sob a sua guarda; que a cruz prelatícia que lhe pende do peito é sinal de vitória completa sobre as paixões humanas, — se o nosso prelado, repito, reflectisse sobre todas essas belas coisas e muitas outras que eu suprimo, não será verdade que se tomaria magro, pensativo, macilento, hipocondríaco? Chegaria a causar piedade!
Mas, não, não duvideis, eu remediei tudo. Aconselhei a esses pretensos sucessores dos apóstolos que seguissem um caminho inteiramente oposto, e ninguém jamais soube aproveitar melhor os meus conselhos.
Com efeito, o principal objetivo dos nossos Ilustríssimos e Reverendíssimos consiste em viver alegremente, e, quanto ao rebanho, que dele cuide Jesus Cristo. Aliás, já não possuem os arcediagos, os vigários gerais, os confessores, os frades e mil outros fiéis mastins, que estão sempre em guarda contra o lobo do inferno?
Os bispos chegaram a esquecer que o seu nome, tomado ao pé da letra, significa trabalho, zelo, solicitude pela redenção das almas. Mas — por Baco! — nunca se esquecem das honrarias e do dinheiro, abrindo então os olhos.
Gabam-se os veneráveis cardeais de descenderem em linha reta dos apóstolos, mas eu desejaria que filosofassem um pouco sobre os seus hábitos, e fizessem a si mesmos esta apóstrofe: “Se eu descendo dos apóstolos, porque não faço, então, o que eles fizeram? Não sou dono, mas simples distribuidor das graças espirituais, e muito breve terei de prestar contas da minha administração. Que significa esta nívea candidez do meu vestido, se não uma suma pureza de costumes? Que quer dizer esta sotaina de púrpura, se não um ardente amor a Deus? Que denota esta capa da mesma cor (tão ampla e espaçosa que bastaria para cobrir não somente a mula do eminentíssimo, mas até um camelo junto com o cardeal), se não uma caridade ilimitada e sempre pronta a socorrer o próximo, isto é, a instruir, a exortar, a acalmar o furor das guerras, a resistir aos maus princípios, a dar de boa vontade o próprio sangue e as riquezas pelo bem da Igreja? Para que tantos tesouros? Aqueles que pretendem representar o antigo colégio dos apóstolos não deveriam, antes de tudo, imitar a sua pobreza?”
Afirmo que, se os cardeais fizessem a si mesmos semelhante apóstrofe, reflectindo seriamente sobre todos esses pontos, de duas uma: ou não ambicionariam o lugar que ocupam e de boa vontade o deixariam, ou levariam uma vida solícita e laboriosa, justamente como faziam os primeiros apóstolos da Igreja.
Prosternemo-nos, agora, aos pés do Sumo Pontífice, e beijemos-lhes religiosamente as santas pantufas. Os papas dizem-se vigários de Jesus Cristo, mas, se procurassem conformar-se à vida de Deus seu mestre; se sofressem pacientemente os seus padecimentos e a sua cruz, mostrando o mesmo desprezo pela vida; se reflectissem seriamente sobre o belo nome de papa, isto é, de pai, e sobre o santíssimo epíteto com, que são honrados, —quem seria mais infeliz do que eles? Quem desejaria comprar, com todos os haveres, esse cargo eminente, ou quem, uma vez elevado ao mesmo, desejaria, para sustentar-se nele, empregar a espada, os venenos e toda sorte de violências? Ai! quantos bens perderiam eles se a sapiência se apoderasse por um instante do seu ânimo!
A sapiência?! Bastaria que tivessem um grãozinho apenas daquele sal de que fala o Salvador. Perderiam, então, aquelas imensas riquezas, aquelas honras divinas, aquele vasto domínio, aquele gordo património; aquelas faustosas vitórias, todos aqueles cargos, aquelas dignidades e aqueles ofícios de que participam; todos aqueles impostos que recebem, quer nos próprios Estados, quer nos alheios; o fruto de todos aqueles favores e de todas aquelas indulgências, com as quais vão traficando tão vantajosamente; aquela numerosa corte de cavalos, de mulas, de servos; aquelas delícias e aqueles prazeres de que gozam continuamente. Observai, observai quantas coisas precisariam perder, sendo que isso é apenas uma sombra da felicidade pontifícia. Todos esses bens seriam logo sucedidos pelas vigílias, pelos jejuns, pelas lágrimas, pelas preces, pelos sermões, pelas meditações, pelos suspiros e mil outros trabalhos de natureza semelhante.
Acrescentemos ainda que tantos escritores, tantos copistas, tantos notários, tantos advogados, tantos promotores, tantos secretários, tantos banqueiros, tantos escudeiros, tantos palafreneiros, tantos rufiões (silêncio neste ponto, pois é preciso respeitar os ouvidos castos), em suma, toda aquela prodigiosa turba de pessoas de toda classe, que arruínam (que honram, queria eu dizer) a sé de Roma, — sim, digamos também que toda essa turba só poderia esperar morrer de fome. Seria o mais bárbaro, o mais abominável, o mais detestável de todos os delitos querer reduzir à sacola e ao bastão os supremos monarcas da Igreja, os verdadeiros luminares do mundo.
Dizem eles que a Pedro e a Paulo competia viver de esmolas, ficando com todo o peso do pontificado, mas eles podem comodamente sustentá-lo, reservando-se eles, para si, somente o que no mesmo existe de esplendoroso e voluptuoso.
Agora, pergunto: não fazem muito bem? Graças a mim, por conseguinte, é que nunca houve um papa que vivesse no ócio e na moleza. Como as funções episcopais consistem em ornamentos misteriosos e quase teatrais, em cerimónias, em títulos faustosos de beatíssimo, reverendíssimo, santíssimo, em bênçãos e maldições, julgam eles que já fazem bastante a vontade de Jesus Cristo, sem suspeitarem o que lhes poderá este dizer-lhes um dia.
Agora não é mais necessário fazer milagres; instruir o povo dá muito trabalho; ensinar as escrituras cheira à escolástica; para pregar, seria preciso tempo; chorar convém somente às mulheres; ser pobre, oh! que coisa feia! deixar-se vencer é vergonhoso demais e indigno de um homem que mal admite que lhe beijem o beatíssimo pé os reis mais poderosos; finalmente, morrer, oh! é a mais amarga de todas as coisas! ser crucificado — irra! — é uma infâmia horrível!
Restam-lhe só como armas as doces bênçãos de que falou São Paulo, as anatematizações as pinturas vingadoras e aquele terribilíssimo castigo pelo qual um beatíssimo padre pode mandar à vontade qualquer alma para o inferno.
Os nossos santíssimos padres em Cristo e vigários de Cristo empregam ainda com maior zelo esse espantoso castigo do no caso daqueles que, à instigação do demónio, tentam diminuir ou danificar o património de São Pedro. (Se bem que ele, bom apóstolo dizia ao seu Mestre: — Deixamos tudo para seguir-te.) É por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e rececebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões.
Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem derramar o sangue cristão. — Mas, que importa? — respondem os papas — Estamos defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando tivermos vingado a esposa (Igreja) de Jesus Cristo contra os seus inimigos.
Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos. Além disso, assim como a Igreja cristã foi fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para protegê-la e sustentá-la.
A guerra é, por natureza, tão cruel, que muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente, tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral. Isso não impede que alguns pontífices abandonem todas as funções pastorais para consagrar-se inteiramente a esse flagelo da humanidade. Entre esses papas guerreiros, encontram-se até velhos que agem com todo o vigor da juventude, que nenhuma consideração têm pelo dinheiro alheio, que suportam corajosamente a fadiga e não têm o menor escrúpulo em fazer subverter as leis, a religião e a humanidade.
Mas, não faltam eruditos aduladores para dar a esse manifestíssimo delírio o nome de zelo, piedade, valor. E acham razões para provar que desembainhar a espada e cravá-la no coração de um irmão não é absolutamente infringir o grande mandamento da caridade para com o próximo.
(…)chegam a sustentar que é dever de um bispo entregar a alma a Deus para defender a honra da sua dignidade. Os padres também estão, em geral, animados pelo mesmo espírito, não querendo de modo algum degenerar da santidade dos prelados. Assim, não podeis imaginar com que coragem empunham as armas toda a vez que se trata dos seus dízimos: espadas, fuzis, pedras, nada lhes escapa.
Esses ministros do altar não cabem em si de alegria quando descobrem, nas obras dos antigos, alguma passagem com que possam aterrar as consciências e provar ao vulgo que lhes deve ainda muito mais do que os dízimos.
Não há mais perigo de que lhes entre na cabeça o que leram em muitíssimos lugares sobre os seus deveres para com o povo. Deveriam ao menos lembrar-se de que a tonsura significa a obrigação de viverem livres de qualquer paixão humana, para se consagrarem totalmente às coisas do céu.
Muito longe de fazerem tais reflexões, incidem em toda a sorte de volúpia e julgam cumprir plenamente os seus deveres e as obrigação de praticar o bem, como dizem eles, quando murmuram, às pressas e entre os dentes, o ofício divino.
Santo Deus! aposto que não há nenhuma divindade que queira escutá-los e, muito menos, que possa compreendê-los. Nenhuma divindade?! Estou convencida de que nem eles próprios se entendem entre si quando zurram em coro.
Mas, tanto os sacerdotes como os profanos sabem muito bem quais são os seus direitos e os seus emolumentos. O que é incómodo os senhores padres costumam, prudentemente, descarregar sobre as costas alheias, numa devolução recíproca (…) os ministros dos santuários costumam, modestamente, descarregar sobre o povo o peso da devoção e da piedade, e o povo, por sua vez, passa-o aos que denomina pessoas religiosas, como se não tivesse nenhuma relação com a Igreja e não tivesse feito nenhum voto no batismo. (…)finalmente, todos se põem de acordo e pretendem que a devoção pertença aos mendicantes, que acabam por enviar a bola aos cartuxos, em cujo retiro se pode afirmar, efectivamente, que a piedade está sepultada, de tal forma se esforçam eles por viverem escondidos do mundo.
Conduta semelhante têm os generais da milícia clerical. Os papas, sempre ativos e incansáveis em sua tarefa de receber dinheiro, descarregam sobre os bispos tudo o que há de incómodo no apostolado; os bispos sobre os párocos; os párocos sobre os vigários; os vigários sobre os frades mendicantes; e os mendicantes, finalmente, enviam as ovelhas aos pastores espirituais, que sabem tosquiá-las e tirar-lhes proveito da lã.
A sabedoria só pode inspirar temor, o que faz com que a condição de um verdadeiro filósofo chegue a causar piedade aos homens de bom senso. Com o cérebro repleto de belíssimas e sólidas especulações, quer físicas, quer morais, sente o estômago doer de fome e nem sequer sabe onde encontrar o necessário. Além disso, é abandonado, desprezado, odiado, evitado por todos, enquanto os tolos, verificando que o precioso metal que os anima constitui o móvel maior da sociedade civilizada, são elevados aos empregos públicos e em tudo favorecidos pela fortuna.
Eis porque os que se consideram felizes quando acolhidos pelos grandes não têm necessidade alguma da sabedoria, que é a coisa mais detestada nas cortes e nos paços.
Quereis enriquecer-vos no comércio? Renunciai à sabedoria, porque, do contrário, como poderíeis fazer um falso juramento sem vos sentirdes dilacerar por um horrível remorso? Como poderíeis deixar de enrubescer quando surpreendidos numa mentira? Como sufocaríeis os ásperos e tormentosos escrúpulos que sentem os sábios pelo furto e pela usura? Como poderíeis deixar de travar convosco uma contínua guerra íntima?
Ambicionais as dignidades e os bens eclesiásticos? Um burro e uma besta poderiam consegui-los mais facilmente que um filósofo. Amais a volúpia? As mulheres que a têm como principal alvo procuram de alma e coração os tolos e fogem dos sábios como dos escorpiões.
Quem, finalmente, deseje gozar os prazeres da vida, deve cortar qualquer relação com os sábios e preferir tratar com a escória popular.
Em suma, para resumir tudo numa única ideia, voltai-vos para todos os lados, e vereis que os papas, os príncipes, os juízes, os magistrados, os amigos, os inimigos, os grandes, os pequenos, todos, sem exceção, agem em virtude do ouro sonante. E, como o filósofo, fora do estritamente necessário, considere como esterco esse metal, não é de admirar que todos desprezem a sua intimidade.
Horácio: É um grande prazer ser louco quando se deseja sê-lo.
Cícero: Todas as coisas estão cheias de loucura.
Eclesiastes, capítulo I: o número dos loucos é infinito.
Jeremias: Todos os homens tornaram-se loucos à força de sabedoria. E atribui a sabedoria somente a Deus, deixando aos homens a loucura como predicado. Um pouco antes, diz ele: O homem não deve gabar-se da sua sabedoria. Mas, porque dizeis isso, oh santo, oh divino oráculo do futuro? É porque (assim me parece ouvi-lo responder) o homem não tem nenhuma ideia da sabedoria.
Voltemos ao Eclesiastes. Quando Salomão, esse grande monarca iluminado do céu, faz aquela patética exclamação moral: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade! — não vedes, senhores, que, sem gaguejar, ele declara que a vida humana, como também eu já vos disse tantas vezes, não é outra coisa senão um divertimento da Loucura?
E quando o citado Eclesiastes diz ainda que o louco muda como a lua e o sábio é estável como o sol, — que imaginais que isso signifique? Não significará, talvez, que todos os homens são loucos e que somente a Deus pertence o título de sábio? Com efeito, por lua entendem os intérpretes a natureza humana, e por sol a fonte da verdadeira luz, que é Deus. Também o Salvador apoia essa verdade quando diz, no Evangelho, que o epíteto de bom só cabe a Deus. Ora, segundo os estóicos, sábio e bom são dois sinónimos; portanto, todos os homens, sendo maus, são também, por uma consequência necessária, todos malucos.
Diz ainda Salomão no capítulo XV: A tolice é a alegria do tolo, o que significa que, sem a loucura, nada se acha de agradável na vida. E em outra passagem: Progredir na ciência é o mesmo que progredir na dor, e, onde há muito sentimento, há também muita contrariedade. Não repetirá esse mesmo excelente pregador, no capítulo VII, o mesmo pensamento? — A tristeza — diz ele — mora no coração do sábio, e a alegria no do tolo. Não contente de ter conhecido a fundo a sabedoria, teve ele o desejo de conhecer também a loucura. Pensais que eu esteja gracejando? Ouvi o oráculo, capitulo I: Apliquei-me ao conhecimento da prudência e da doutrina, dos erros e da loucura. É preciso notar que, nessa passagem, sou citada em último lugar, a fim de me ser conferida a honra que mereço, como posso prová-lo. De facto, foi o Eclesiastes que o escreveu: ora, na ordem eclesiástica, segundo o cerimonial em uso, o primeiro em dignidade é o que ocupa o último posto, de acordo com o preceito de Cristo.
Que a loucura é realmente superior em dignidade à sabedoria prova-o, à evidência, o autor do Eclesiastes, seja ele quem for, no capitulo XLIV : O homem que esconde a própria loucura é melhor que o que esconde a própria sabedoria.
Dizei-me, por favor, o que será melhor ocultar: as coisas raras e preciosas, ou as vis e triviais. Como, não respondeis? Porque permaneceis imóveis como se não passásseis de estátuas? Mas, não será o vosso silêncio que me fechará a boca. Os gregos responderão por vós e dirão que a bilha se deixa sem receio à porta, ao passo que as coisas preciosas se conservam escondidas. Receando, porém, que profaneis essa sentença, rejeitando-a, acho conveniente advertir-vos que é de Aristóteles, o deus dos nossos mestres.
Continuemos: haverá aqui alguém bastante louco que, de bom grado, seja capaz de abandonar na rua o seu dinheiro e as suas jóias? Não o creio, naturalmente! Todos vós, ao contrário, me pareceis, se não me engano, desses homens que costumam ocultar muito bem tudo o que possuem de precioso e que só se descuidam das coisas que pouco ou nada importa perder. Assim, pois, exigindo a prudência que se escondam as coisas de valor e que não se deixem expostas senão as coisas de pouca valia, a minha causa venceu, triunfou!
O Eclesiastes ordena que se manifeste a sabedoria e se oculte a loucura.
Mas, isso não basta. As sagradas escrituras atribuem ainda ao louco a candura de ânimo, da qual não é susceptível o sábio, embora se julgue sempre melhor do que os outros. É, pelo menos, como interpreto a seguinte passagem do Eclesiastes, capítulo X: Ao passear, o louco supõe que todos os que encontra sejam loucos como ele.
Quem pode deixar de admirar essa candura e essa sinceridade? Naturalmente, todos os homens fazem um alto conceito de si mesmos, mas a loucura torna o homem tão humilde que procura dividir a sua virtude com todos os outros homens e comunicar-lhes a glória do seu mérito. Salomão julgava ter chegado a tanta perfeição, dizendo no capítulo XXX: Eu sou o mais louco de todos os homens. São Paulo, esse evangelista, esse apóstolo das gentes, não passou sem atribuir-se o meu nome, pois disse aos coríntios: Falo como fora de mim, ou ainda mais(de tal maneira considerava ele vergonhoso ser superado em loucura).
São Paulo falando de si mesmo, diz: Suportai pacientemente os tolos... Considerai-me também um tolo... Não falo segundo Deus, mas como se fosse tolo... Somos tolos por Jesus Cristo. Que glória para mim é o facto de um autor de tanto peso referir-se tão favoravelmente à Loucura! No entanto, o mesmo São Paulo, não contente com isso, passa a recomendar a loucura como coisa sumamente necessária à salvação. Aquele, dentre vós que quiser parecer sábio, deve tomar-se louco, para poder fazer-se sábio. Não chamou Jesus Cristo loucos, em São Lucas, àqueles dois discípulos com os quais se encontrou na estrada, depois da ressurreição?
Não obstante, isso não me causa tanta surpresa como o que disse o apóstolo São Paulo: A loucura de Deus é melhor que a loucura dos homens.
Ora, de acordo com a interpretação de Orígenes, não se pode aplicar essa loucura à opinião dos homens. Do mesmo género é esta passagem: O mistério da cruz é uma loucura para os que perecem. Mas, porque hei de me cansar invocando tantos testemunhos? Cristo já nos salmos místicos, diz ao Pai,: Conheces a minha loucura? Não é, pois, sem motivo, ou melhor é visivelmente por essa razão que os loucos são os prediletos de Deus. Nesse particular, o Ser Supremo assemelha-se aos príncipes da terra que em geral, não gostam nada das pessoas sensatas e honestas. No entanto, apreciaam muito os estúpidos, os simples e os imbecis. Cristo, igualmente, condena sempre e detesta os sábios que só confiam na própria prudência.
São Paulo disse nítida e claramente: Deus elegeu o que, para o mundo, ou ainda: Deus quis salvar o mundo pela loucura E assim o fez, decerto, porque não teria podido fazê-lo com a sabedoria. O próprio Deus diz pela boca do profeta Isaías: Eu confundirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes. E a humanidade de Jesus dá graças a si mesmo por ter ocultado aos sábios o mistério da salvação, para revelá-lo aos pequenos, isto é, aos maluquinhos, com toda a força e energia do vocábulo grego… Pela mesma razão, podemos explicar ainda a contínua guerra que, segundo o evangelho, fez o Salvador aos doutores da lei, aos escribas e aos fariseus, ao mesmo tempo que tomava o partido do vulgo ignorante. Desgraçados de vós, ó escribas e fariseus! Não significará essa imprecação o mesmo que desgraçados de vós, ó sábios? Finalmente, o Senhor do universo só costumava conversar com os meninos, as mulheres e os pescadores. Também Jesus Cristo preferia, entre tantas espécies de animais, os que mais se afastavam da sagacidade da raposa: escolheu um burrinho para o seu carro de triunfo, quanto teria podido cavalgar um soberbo leão. O Espírito Santo da Santíssima Trindade, desceu não em forma de águia ou de gavião, mas de pomba. Além disso, as sagradas escrituras falam frequentemente de animais que têm um instinto muito limitado, que são os veados e os cordeiros. E não é de ovelhas que Jesus Cristo chama os que são eleitos para gozar com ele do reino dos céus? Ora, onde haverá animal mais estúpido do que a ovelha? Antigamente, por desprezo e injúria, costumava-se dar esse nome às pessoas estúpidas e idiotas. Ainda mais: em virtude da comparação dos eleitos com as ovelhas, Jesus Cristo vangloria-se do título de pastor e gosta muitíssimo do nome de Cordeiro. De fato, é com esse nome que São João Batista o faz conhecer, quando diz: Eis o Cordeiro de Deus! E sob essa forma é ele igualmente representado em diversas visões do Apocalipse.
Mas, quais são as nossas conclusões do que aqui fica dito?
Ei-las: Todos os mortais são loucos, até mesmo os pios.
Jesus Cristo, que é a sabedoria do Pai, procede como tolo ao unir-se à natureza humana da forma por que o fez, isto é, tornando-se pecador para redimir o pecado. Observai como o Salvador executou dignamente o seu projeto. Tendo estabelecido, em seus decretos, que salvaria os homens com a loucura da cruz, utilizou nessa tarefa apóstolos grosseiros e idiotas,
recomendando-lhes calorosamente que evitassem a sabedoria e seguissem a loucura, e indicando-lhes o exemplo das crianças, dos lírios, e dos passarinhos, seres sem nenhum artifício e sem inquietações que só se orientam pelas leis da natureza e pelo mecanismo do instinto.
Não quer que sejam solícitos, no caso de terem de responder perante os tribunais; não quer que se preocupem com os cuidados do tempo e do momento; não quer que confiem na prudência, mas que lhes confiem inteiramente as almas.
E foi por essa razão que o grande Arquiteto do universo proibiu que o primeiro e lindo par de esposos, por ele feitos e unidos em matrimónio, provassem o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, sob pena de sua desgraça e morte. É a melhor prova de que a ciência é o veneno da felicidade.
São Paulo rejeita abertamente a ciência, como perniciosa e causadora de vaidade, e creio que São Bernardo exprimiu o mesmo sentimento desse apóstolo, ao chamar monte do saber àquele monte no qual o soberbo Lúcifer fixou sua morada.
Não me parece que deva silenciar sobre o sumo crédito de que a loucura goza no céu, pois que aí facilmente se obtém o perdão com o meu nome, ao passo que não é favorável o da sabedoria.
Pecou um homem com conhecimento de causa? Não penseis que procure alegar suas luzes, pois pode considerar-se feliz quando pode cobrir-se com o manto da loucura.
É por isso que Aarão, no livro XII dos Números, se não me engano, querendo implorar o perdão para si e para a sua mulher, exclama: Rogo-vos, Senhor, que não nos condeneis por esse pecado que cometemos por loucura!
O mesmo fez Saul, para desculpar-se com David: Logo se vê que agi como louco! O próprio David procurando evitar a vingança divina, exclamou: Senhor! Suplico-vos que canceleis a iniquidade da partida do vosso servo, pois agimos como loucos! Bem vedes que não podia esperar ser favorecido, se não aduzisse como desculpa a sua tolice e a sua ignorância.
Mas, de todas as provas, a mais decisiva é a prece do Salvador na cruz pelos seus crucificadores: — Perdoai-lhes, Pai, — disse ele, e o Deus moribundo não aduziu em favor deles outra desculpa senão a da loucura, acrescentando: porque não sabem o que fazem.
Disse São Paulo a Timóteo: Deus usou de misericórdia para comigo porque a minha incredulidade era efeito da minha ignorância. Mas, que significa essa ignorância? Não significará mais estultice do que malícia? Qual é o sentido destas palavras: Deus usou de misericórdia para comigo porque, etc? Não será, talvez, o de demonstrar claramente que, sem o crédito e a recomendação da loucura, São Paulo não teria obtido nenhuma misericórdia? O místico salmista mostrou-se, igualmente, da minha opinião naquela passagem que eu me esqueci de pôr no seu lugar: Dignai-vos Senhor, esquecer os delitos da minha juventude e das minhas ignorâncias. Escusa-se por dois títulos: um, pela juventude, idade de que sou a fiel e inseparável companheira; outro, pela ignorância, e notai que exprime a sua ignorância no plural, o que mostra a força imensa da sua loucura.
Para terminar logo uma enumeração que por natureza não acabaria nunca, quero vos fazer ver, sucintamente, que a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria. Como essa proposição pareça um verdadeiro paradoxo, não serei tão irrazoável que pretenda me acrediteis baseados apenas em minha boa fé. Vamos, pois, às provas.
Em primeiro lugar, vemos os que, com maior solicitude, intervém nos sacrifícios e outras cerimónias de culto, não são as pessoas mais sensatas, mas as crianças, os velhos as mulheres e os ignorantes. E de onde lhes vem o desejo de se aproximarem tanto do altar e o transporte que experimentam pela devoção? Vem de um impulso totalmente mecânico da natureza.
Em segundo lugar, os fundadores da religião cristã, fazendo profissão de uma maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais declarados do estudo das ciências.
Finalmente, é impossível achar loucos mais extravagantes que os que se abandonam inteiramente ao ardor da piedade cristã. Jogam fora o dinheiro como a água, desprezam as injúrias, deixam-se enganar, não fazem distinção entre os amigos e os inimigos, sentem horror pela volúpia: a abstinência, as vigílias, as lágrimas, os padecimentos, os ultrajes, eis todas as suas delícias; além disso, odeiam a vida e desejam a morte, ao ponto de parecerem absolutamente privados de senso comum, não passando de corpos sem alma e sem sentimento. Que nome lhes daremos, se o de loucos não lhes fica bem?
Não devemos, pois, estranhar que os judeus tenham considerado os apóstolos como ébrios de vinho doce. O juiz Festus não teria razão ao tomar São Paulo por um extravagante.
Sustentemos, diante dessa ilustre sociedade de loucos, uma tese inteiramente nova e inesperada. Sim, meus caros senhores, quero mostrar-vos que a felicidade dos cristãos, essa felicidade almejada com tantas penas e tantos trabalhos, não é senão uma espécie de loucura.
Como! vós me olhais de soslaio e com desdém?
Devagar, devagar: não nos apeguemos às palavras, que não passam de sons articulados e arbitrários. Limitemo-nos ao exame da coisa.
Entro no assunto: O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha aquela dos platónicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da máquina orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. É por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam a nossa alma das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os órgãos do corpo de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas, quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade, então diz-se em estado de loucura.
Quando essa desordem provém de enfermidade ou alteração dos órgãos, dão-lhe por unanimidade o nome de loucura. Vemos então esses felicíssimos loucos que predizem o futuro, que conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que mostram ter em si mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio?
Creio não haver dúvida de que provém da alma, que, tornando-se um pouco mais livre da servidão do corpo, começa a utilizar sua força natural. Creio provir igualmente dessa causa a faculdade que têm os moribundos de dizer coisas prodigiosas, como que inspirados.
O amor e o zelo da piedade produzem também essa alienação dos sentidos, que não parece ser, o mesmo género de loucura, mas desta se aproxima de tal forma que em geral se lhe dá o mesmo nome.
Com efeito, quem não trataria como loucos, e como loucos em último grau, aqueles homenzinhos que levam uma vida totalmente diversa da dos outros mortais? E aqui vem muito a propósito a ideia de Platão. Imaginou ele uma caverna repleta de pessoas presas, da qual conseguiu fugir um dos prisioneiros. Este, depois de levar muito tempo vagando sem destino, voltou e gritou em altas vozes aos companheiros: — Meus caros amigos! Como me inspirais piedade! Só vedes sombras e fantasmas, em suma, sois verdadeiramente tolos. Bem diversa é a minha situação, pois só vi coisas sensíveis existentes, reais. — Então, do seu canto, os encarcerados, que nunca mais saíram do subterrâneo, entreolhando-se com surpresa, exclamaram: — Que nos quer dizer com isso esse louco? Com certeza perdeu o juízo e expulsam-no.
O mesmo acontece com o vulgo. Estão ligados às coisas corporais, e julgam que só elas existem;
os pios, pelo contrário, desprezam tudo quanto se refere ao corpo, e estão encantados com a contemplação das coisas invisíveis.
A principal ocupação dos primeiros (vulgo) é acumular sempre riquezas e contentar em tudo e por tudo o próprio corpo, pouco ou nada se importando com a alma, cuja existência, por ser ela invisível, muitos chegam mesmo a pôr em dúvida.
Já as pessoas inflamadas pelo fogo da religião seguem um caminho totalmente oposto e depositam toda a sua confiança em Deus, que é o mais simples de todos os seres: depois dele e dependendo dele, pensam na alma, como sendo a coisa que mais próxima; não pensam no corpo e não só desprezam os bens da fortuna como até os recusam; E quando, por dever, são obrigados a tratar destas coisas, procedem contra a vontade e experimentam um vivo pesar, porque têm como se não tivessem e possuem como se não possuíssem;
Existem ainda muitos outros graus de diferença entre os que se ocupam somente com o corpo e os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma. Para melhor distinguirmos esses graus, estabeleçamos um princípio incontestável. Embora todos os sentimentos da alma tenham uma correspondência necessária com o corpo, há contudo duas espécies: uns são materiais, como o tato, a audição, a vista, o olfato e o paladar; outros têm menor relação com os órgãos, como sejam a memória, o intelecto e a vontade. Disso resulta que a alma tem maior ou menor forca à proporção que se aplica mais ou menos a esses diversos sentimentos.
Raciocinemos, agora, sobre essa suposição. Assim como os que se abandonam totalmente à piedade se tornam o quanto podem superiores aos sentidos do corpo, mortificando-o a tal ponto que acabam perdendo toda sensibilidade, — como São Bernardo, por exemplo, que, segundo a lenda, bebia azeite por vinho sem perceber, — assim também o vulgo tem um grande vigor de ânimo pelos sentidos do corpo e uma fraqueza extrema pelos da alma.
Além disso, há algumas paixões que afetam o corpo mais de perto, como o amor, a fome, a sede, o sono, a cólera, a soberba, a inveja, contra as quais movem os verdadeiros devotos, se é que os há, uma perpétua guerra, ao passo que os adeptos da natureza acham que não podem viver sem essas coisas.
Existem ainda outras que têm um lugar intermédio e são consideradas naturais, como sejam: amar a pátria, os parentes, os filhos diletos, os vizinhos, os amigos. Quase todos os homens possuem algo dessas paixões, mas as pessoas pias fazem tudo para extirpar do ânimo, ou a a erguê-los à mais pura região da alma. Amam o progenitor, não como progenitor, porque ele só gerou o corpo, que por sua vez deve ao Deus pai; Ama o progenitor como um homem em quem resplende a imagem daquela suprema inteligência que é o bem supremo e fora da qual nada existe de amável nem de desejável.
É também com essa regra que as pessoas de mortificação misturam todos os deveres da vida, de modo que, quando não desprezam em geral todas as coisas visíveis, pelo menos as põem infinitivamente abaixo das invisíveis. Chegam mesmo a dizer que, nos sacramentos e nas outras funções do culto, não existiria a matéria sem o espírito. Nos dias de jejum, acreditam que seja quase nada a abstinência das carnes e da ceia, se bem que a maioria faça consistir nesses dois pontos toda a obrigação do preceito. Os devotos dizem-vos que é preciso jejuar com o espírito, dominar as próprias paixões, suprimir a cólera e o orgulho, a fim de que a alma, mais desembaraçada da massa do corpo, possa melhor gozar dos bens do céu. O mesmo acontece em relação à missa: — Se bem que não desprezemos — dizem eles — tudo o que é visível nesse sacrifício, todavia, os sinais não seriam menos inúteis que as cerimónias, quando não perniciosos, se não fosse o socorro do espirito. Representando esse mistério a paixão do Salvador, faz-se mister que a representem também os fiéis, dominando, extinguindo e sepultando suas paixões, a fim de ressurgirem numa nova vida e se unirem a Cristo e aos seus membros. Os devotos costumam assistir à santa missa com a referida disposição, mas o mesmo não acontece com a maior parte dos homens, que, não reconhecendo nesse sacrifício senão a obrigação de comparecer, contentam-se em olhar, ouvir, prestar atenção ao canto e às cerimónias.
Mas, não é só no que diz respeito às coisas que acabo de vos referir a título de exemplo que os anjos mortais rompem toda relação com os corpos e com a matéria: para se elevarem aos bens eternos, e invisíveis e espirituais, fazem o mesmo com tudo o que acontece no curso da vida. Vós mesmos não podereis negar, quando eu vo-lo tiver brevemente demonstrado, que a infinita recompensa desejada que buscam com tanta ansiedade não é senão uma espécie de loucura.
Imaginai que Platão teve um sonho semelhante quando escreveu: O furor dos amantes é a felicidade mais perfeita. Com efeito, um amante apaixonado não vive mais em si mesmo, mas na pessoa que se apoderou do seu coração, e, quanto mais sai de si mesmo para transfundir-se no objeto do seu amor, tanto mais sente redobrar-se o seu prazer. Não teremos igualmente razão de qualificar com o nome de loucura o próprio estado de uma alma devota que arde de desejo por alcançar a perfeição evangélica e que não procura senão sair do seu corpo pelo desprezo dos sentidos? Trazei à vossa memória os modos de dizer frequentemente usados: Está fora de si... Voltou a si... Caiu em si... Além disso, segundo a ideia de Platão, pelo grau de amor é preciso medir a grandeza do furor (loucura) e da felicidade.
Qual será, pois, a vida dos beatos no paraíso, vida pela qual suspiram as almas devotas com tanto transporte? Como, naquele estado de gozo perfeito e sempre novo, a alma vitoriosa e triunfante absorverá o corpo, resulta que esse absoluto domínio, bem longe de causar o menor sofrimento, torna-se natural, e o espírito se achará como no seu reino e gozará o fruto dos esforços feitos para reduzir o corpo a uma perfeita escravidão. Além disso, a alma verá de maneira incompreensível, como que absorta naquela suprema inteligência por que é infinitamente superior.
E assim é que o homem ficará fora de si e não será feliz senão quando, não se achando mais em si mesmo, receber uma inexprimível felicidade daquele supremo Bem que tudo atrai a si. Mas, como essa felicidade só pode ser destruída pela união da alma com o corpo, e sendo a vida dos santos na terra uma contínua meditação e uma sombra das alegrias inefáveis do paraíso, resulta que principiam a gozar antecipadamente, neste mundo, a recompensa que lhes é prometida. É bem verdade que, em confronto com a felicidade eterna, não passa de uma gota e de uma sombra a que experimentam os devotos nesta terra. Não obstante, essa gota, essa sombra é incomparavelmente superior a todos os prazeres dos sentidos, mesmo que se pudessem gozar todos ao mesmo tempo, porque todas as coisas espirituais superam infinitamente as materiais e os bens invisíveis ultrapassam de muito os visíveis. É, aliás, o que promete um profeta, quando diz: Os olhos não viram, os ouvidos não escutaram, o coração do homem não pressentiu o que Deus prepara para os que o amam. É esse género de loucura que, bem longe de se perder quando se passa da terra ao céu, alcança, ao contrário, seu último grau de perfeição.
Para vos falar novamente daqueles aos quais Deus, por um favor todo especial, concede a graça de gozar antecipadamente as delícias da beatitude dir-vos-ei que são eles em número muito reduzido e que, além disso, estão sujeitos a certos sintomas que muito se assemelham aos da loucura: suas palavras são desconexas e fora do uso humano, ou, mais claramente, não sabem o que dizem; sua fisionomia transforma-se a cada momento, e ora estão alegres, ora melancólicos; choram, riem, suspiram, numa palavra, estão inteiramente fora de si. Quando regressam a si protestam que positivamente não sabem de onde vêm nem se existem somente na alma ou também no corpo, nem se estarão acordados ou dormindo. E de tudo depois que viram, ouviram, disseram, ou não se recordam ou fazem uma ideia tão confusa como se tivessem sonhado.
Só sabem de uma coisa: que se acham felicíssimos no seu delírio. Eis porque sofrem a convalescença do cérebro e tudo sacrificariam de bom grado para serem perpetuamente loucos nessas condições. No entanto, toda essa felicidade não passa de uma tenuíssima migalha da mesa celeste: imaginai, agora, o que não será o eterno banquete!
Provérbio dos gregos: Muitas vezes, também o homem louco raciocina bem a não ser que pretendais que, nesse provérbio, não estejam incluídas as mulheres.
Esperais um epílogo do que vos disse até agora? Estou lendo isso em vossas fisionomias. Mas, sois verdadeiramente tolos se imaginais que eu tenha podido reter de memória toda essa mistura de palavras que vos impingi. Em lugar de um epílogo quero oferecer-vos duas sentenças. A primeira, antiquíssima, é esta: Odeio o convívio de boa memória. E a segunda, nova, é a seguinte: Odeio o ouvinte que nada esquece. Posto isto adeus. Aplaudi, vivei, bebei, ó amigos celebérrimos da Loucura.
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