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Fabrica das gabardines

Existem imagens da minha infância que me foram construindo sonhos e amores.
Imagens que me deixam á nostalgia, espaços reservados e saudades de um tempo ausente.
Já aboli do vocabulário, expressões como: “no meu tempo”, ou, “Se deus quiser” e isto, porque não vivo na clausura do pretérito e há muito que não creio em deus.
Hoje, como aos Domingos de todas as minhas semanas monocórdicas e sem surpresas, decidi, depois da sesta em vigília forçada pelo volume da televisão, dar um salto à Amadora.
Costumava fazer este caminho a pé, com meia dúzia de “índios”, a atropelarem a paisagem em hinos á idiotice.
Porém hoje, á garupa do meu Renault já com idade para ir á tropa, ceguei nos semáforos.
Não ceguei de “branco” como o outro do Saramago…
Ceguei drásticamente de três enormes guindastes e uns quantos edifícios que não decorei a cor por estar cego em memórias de mil novecentos e troca o passo.
A Amadora cresceu imenso, como o meu amor por ela e a nostalgia do que já não é!
Aqueles três guindastes, a 100 metros da Venteira, parecem cobradores do fraque a exigir o pagamento, de uma dívida “ad eternum”, paga aos soluços com a construção de edifícios.
Ali onde ficava a “Fábrica das Gabardines”, de onde os pais da Sandra foram despedidos, de onde dezenas de operários foram despedidos, de onde se faziam em fome dezenas de Sandras que desmaiavam na carteira do liceu por não terem pão à mesa, está agora um guindaste com operários enforcados.
Eu cego, a obedecer ás buzinas que me chamam palerma, arranco no Renault adulto que desertou à inspecção, pisco na segunda à esquerda, na esquina do “Zé das Borrachas” e paro sem as quotas pagas em frente ao Grupo Desportivo Porto Santo.
O Grupo Desportivo Porto Santo, foi fundado no ano em que comecei a gatinhar.
Fica numa cave da Rua António Sardinha… e eu cego ao balcão a declarar-me a uma “mini”, ainda hoje ouvi fantasmas num brejeiro cantarolar das matines domingueiras onde dançavam os operários da “Fábrica das Gabardines”.
Saí, deixei o salão ás moscas que disputam os pasteis expostos para decoração.
Ainda ouvi a “dona Júlia”, a gritar lá da Damaia…
-”Filhos Da Puta…ao que isto chegou”…
…e desapareceu num fumo á afagar a angina de peito.
Entrei na Elias Garcia, outra vez, aquela que dizem ser a maior avenida de Lisboa, a maior da Amadora, a maior de Queluz, a maior do Cacem, a maior do mundo, para quem não sabe a dimensão deste... e segui…
Ao lado direito, na correnteza de prédios que vão dar ao Babilónia, continua em sentinela uma velha retrosaria onde o meu avô comprava os chapéus…ele andava sempre de chapéu e eu não era cego.
A Amadora era aquele género de entreposto comercial, onde se podia adquirir o que não havia ao tempo, nos satélites ao seu redor, era o sítio indicado na “drogaria do Carvalho” para comprar “apliques” de cozinha para pendurar os panos, parafusos de rosca esquerda para serviços especiais, chapéus de feltro para septuagenários, electrodomésticos de uso diário…e gabardines!
Era também o sítio onde se comprava tabaco ás escondidas e chamon ás claras, nunca aconselhado pelo “Carvalho”, mas ninguém ligava a isso.
Estacionei…
Um dos “índios” da meia dúzia, pede-me uma moeda numa festa apressada.
Trabalha ao pé dos comboios a disputar estacionamentos com parquímetros avarentos que não falam com ninguém.
Andou comigo no liceu…comigo e com a Sandra que desmaiava sem moedas para o pão.
Atravessei o subterrâneo da estação e subi as escadas até á Câmara Municipal…ergui a cabeça porque sempre o fiz de cada vez que subo as escadas da estação da Amadora.
Lembro-me que o fiz, até naquela noite em que eu mais a Sandra que não era a que desmaiava, mas era a outra que eu amava, fomos a uma comemoração do 25 de Abril ao edifício da Câmara onde estava o Artur Bual, o António Assunção, muita gente desconhecida e um casal de namorados.
Não havia Renault, só comboio e autocarros, que durante muitos anos me levaram á Amadora sem guindastes a cegar.
Foi na Amadora, por motivos que um pobre cego não consegue explicar, que apurei o meu espírito de classe.
Cidade de misérias e grandezas onde jazem trucidados operários de gabardine, esmagados por carruagens falidas na Sorefame.
Cidade onde eu e os “índios” íamos ver fitas de cowboys no “Plaza”, ou no “Lido”... que também era discoteca.
Cidade onde descobrimos um mundo feito de prédios altos, a tapar altas misérias com gabardines rotas.
Há trinta anos gostava mais da Amadora, há vinte gostava mais que há dez, há dez gostava mais que hoje…quando ceguei nos guindastes…
A Sandra já tem pão, já não desmaia na escola e já não vai à Amadora.
Há muito que aboli do meu vocabulário expressões quase vazias que me supõem futuros risonhos e me acalentam as esperanças vãs...
Mas se eu recuperar a vista, deus queira que no meu tempo e a dez anos deste Domingo, torne a ir á Amadora e chegue á conclusão que gostava mais desta cidade à uns dez anos atrás.
Quando ceguei nos semáforos...da Fábrica das Gabardines.

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segunda-feira, maio 3, 2010 - 22:53

Poesia :

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Lapis-Lazuli

imagem de Lapis-Lazuli
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Comentários

imagem de Henrique

Re: Fabrica das gabardines

Gostei do poema apesar de não conhecer a zona, mas julgo que nos brindaste com a imagem certa!!!

:-)

imagem de vitor

Re: Fabrica das gabardines

Bela descrição da Amadora, da dona Sandra, a drogaria do Carvalho, o Zé das Borrachas, o seu velho Renault e a gazeta à inspecção, o Grupo Desportivo de Porto Santo na cave Rua António Sardinha, os três guindastes a 100 metros da Venteira, o grito da dona Júlia e por mim o mais apreciado... e a cidade da Fabrica das Gabardines...

... e o talento do autor, estilo único, que todos os dias não pára de me surpreender.Por isso, e pelo seu grande génio vale a pena existir o WAF e poetas como tu.

Abraço.
Vitor.

imagem de Librisscriptaest

Re: Fabrica das gabardines

Q saudades Lapis...
Sempre q passo perto tb eu da la um pulinho p'ra espreita-la...
Raramente paro, so paro qd vou visitar os meus tios, mas deixo sempre um pouco de mim lá... Porque existe um pouco-muito de mim q pertence ali!
Beijinho grande em ti!
Inês

imagem de Ex-Ricardo

Re: Fabrica das gabardines

Lapis tens um estilo muito próprio na forma como descreves o mundo.

Como cada vez mais o mereces: aqui to digo.

Começo a ficar rendido às evidências: escreves bem, muito bem.

Escreves tão bem a Amadora como qualquer outro sentimento. :-)

imagem de Susan

Re: Fabrica das gabardines

Quantas imagens e recordações...
Assim é nossa mente quando menos esperamos surgem as lembranças , mais aí está um belo achado onde pude imaginar um pedacinho de Lisboa.
Parabéns
Abraços
Susan

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