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Fernando Pessoa- O livro do desassossego ( II )

Nos primeiros dias de Outono subitamente entrado, quando escurecer toma a evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso é que a noite é noite e a noite é sono, lares, livramento.

Somos todos escravos das circunstâncias extremas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café da viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abriga-nos mal na case sem portas de nós mesmos; um chegar de noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque que se abre lento, a consciência íntima de dever-se repousar.

Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão, é somente ser mudado de cela.
E, perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que é útil e exterior me sabe a frívolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais vivos e frequentes sonhos. Esses, para mim, são mais reais.

E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, é uma espécie de engano e loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quando fui e que vejo que afinal não sou.

E a minha sensação de mim é a de quem acordo depois de um sono cheio de sonhos reias, ou a de quem é liberto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.

Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.

A morte disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar.

A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida o cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.

Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio para nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado não se afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que não se afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência.
E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia – um dia sem tempo nem substância – se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós nos deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não ser.

Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.

Compreender é esquecer de amar.

Os meus hábitos são de solidão, que não dos homens.

Falar com gente dá-me vontade de dormir.

O artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho.

A beleza de um corpo nu só a sente as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.

Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.

Não se pode comer um bolo sem o perder.

Leio como quem abdica. Leio como quem passa.

Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.

É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em que construía.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém.

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma iguais.

Se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida.

Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entra matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.

Para um homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

Quanto mais deferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjectividade.

Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.

Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.

Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor, um momento como uma veste que deixa de roçar numa chaga.

Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estranho.

A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada de loucura latente.

Onde está Deus, mesmo que não exista?

A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma atividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico e metafísico cuja importância se sente ser nula.

Por mais que meditemos qualquer coisa, e meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância da meditação.

A superioridade do sonhar consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasta e muito mais variado do que o homem de ação.

Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixa-se de ser um sonho longínquo.

Não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram.

O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente.

Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os factos, e através das quais os factos, alterados para de acordo com elas chegam

Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repousaria porque a ideia de o obter nos cansa.

Vivo sempre no presente. O futuro não o conheço. O passado não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada.

A vida é para nós o que concebemos dela.

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido.

Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um facto significa não haver um facto. Pensar é não saber existir.

A vida pode ser sentida como uma náusea no estômago, a existência da própria alma como incómodo dos músculos. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz marés, de longe no corpo e dói por delegação.

Nunca amamos alguém. Amamos tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.

O onanista é abjecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.

Reina quem não está entre os vulgares.

Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente.

Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fetal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.

Já vi tudo que nunca tinha visto. Já vi tudo que ainda não vi.

A vida é uma sonolência que não chega ao cérebro.

Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê como o olhar.

Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes.

Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse afastar da lama todos os que merecem.
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domingo, outubro 28, 2012 - 12:55

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