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Jorge Luis Borges - Ficções
Os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número de homens.
Os homens deste planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que se desenvolvem não no espaço mas sim de modo sucessivo no tempo.
Explicar (ou julgar) um facto é juntá-lo a outro.
O presente é indefinido, o futuro não tem realidade senão como esperança, presente e o passado não tem realidade senão como recordação do presente.
Já decorreu todo o tempo e a nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado de um processo irrecuperável.
A história do universo- e nela as nossas vidas e o pormenor mais ténue das nossas vidas- é a escrita que produz um deus subalterno para se entender com um demónio.
É clássico o exemplo de uma ombreira que perdurou enquanto a frequentava um mendigo e que se perdeu de vista à sua morte. Às vezes uns pássaros, ou um cavalo, já salvaram as ruínas de um anfiteatro.
Encantada pelo seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de xadrezistas, e não de anjos.
Não há exercício intelectual que por fim não seja inútil. Uma doutrina filosófica ao princípio é uma descrição verosímil do universo; passam os anos e é um simples capítulo- quando não um parágrafo ou um nome- da história da filosofia.
A glória é uma incompreensão, e quiçá a pior.
Pensar, analisar, inventar não são actos anómalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos , recordar com ingénua estupefacção o que o doctor universalis pensou, é confessar a nossa fraqueza de espírito ou a nossa barbárie. Todo o homem tem de ser capaz de todas as ideias e entendo que no porvir será.
(…) teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza.
Fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne mas por decisão da vontade.
Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma (…) Convinha-lhe o templo desabitado e desmantelado, porque era um mínimo de mundo visível.
Procurava uma alma que merecesse participar no universo.
Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árdua que tecer uma corda de areia ou de cunhar o vento sem cara.
(…) a lotaria é parte principal da realidade; até ao dia de hoje, pensei tão pouco nela como no comportamento dos deuses indecifráveis ou no do meu coração.
Naturalmente estas “lotarias” fracassaram; A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem. Unicamente à sua esperança.
A lotaria é uma interpolação do acaso na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é corroborá-lo.
Em muitos casos, o conhecimento de que certas facilidades eram simples obra do acaso, poderiam minorar a sua virtude.
(…) costumava argumentar que os leitores eram uma espécie já extinta. Não há europeu (arrazoava ele) que não seja um escritor, em potência ou em acto. Afirmava também que das diversas felicidades que pode fornecer a literatura, a mais elevada era a invenção. Já que nem todos são capazes dessa felicidade, muitos terão de se contentar com simulacros. Foi para esses “escritores imperfeitos”, cujo nome é legião…
No saguão da biblioteca há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito...
A Biblioteca existe ab aeterno.
O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de estantes, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
(...) Não acho inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem - um só que seja, há mil anos! o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e felicidade, que sejam para os outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno.
A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.
A Biblioteca é de tal forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima (…) cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula.
A Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um único disparate absoluto.
(...) Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores.
A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos.
Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana-a única -está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança.
Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente, o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em «César e Cleópatra» de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza. (...) Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo o tempo que transcorreu até nós desde o dia em que ele foi escrito. Por isso convém manter o culto do livro. O livro pode estar cheio de coisas erradas, podemos não estar de acordo com as opiniões do autor, mas mesmo assim conserva alguma coisa de sagrado, algo de divino, não para ser objecto de respeito supersticioso, mas para que o abordemos com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria.
Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo a minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti a sua presença em minha casa – eu senti-a como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que dispomos, nós, os homens. (...) O livro é lido para eternizar a memória.
Jorge Luis Borges: O Livro.
Prevejo que o homem se há-de resignar dia a dia a empresas cada vez mais atrozes; em breve não haverá senão guerreiros e bandidos.
Ao contrário de Newton e de Schopenhauer (…) não acreditava num tempo uniforme e absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Esta trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades.
Levava o orgulho até ao ponto de simular que fora benéfica a pancada que o havia fulmindo…
(…) ele havia sido o que são todos os cristãos: um cego, um surdo, um néscio, um desmemoriado (…) Dezanove anos tinha vivido como quem está a sonhar: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, quase tudo.
A verdade é que vivemos a adiar tudo o que é adiável; talvez todos saibamos profundamente que somos imortais e que mais tarde ou mais cedo todo o homem será todas as coisas e saberá tudo.
Dormir é distrair-se do mundo.
Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.
As razões que pode ter um homem para odiar outro ou para gostar dele são infinitas.
(…) reduzia a história universal a um sórdido conflito económico.
A um gentleman só podem interessar causas perdidas…
O que faz um homem é como se o fizessem todos os homens. Por isso não é injusto que uma desobediência num jardim contamine toda a humanidade; por isso não é injusto que a crucificação de um único judeu baste pra a salvar.
Shopenhauer porventura tem razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens.
Para mostrar que lhe era indiferente ser um cobarde físico, exaltava o seu orgulho mental.
Quincey especulou que Judas entregou Jesus Cristo para o forçar a declarar a sua divindade e a atear uma vasta rebelião contra o jugo de Roma.
Jesus, que dispunha dos consideráveis recursos que a Omnipotência pode oferecer, não precisava de um homem para redimir todos os homens.
O asceta, para maior glória de Deus, envilece e mortifica a carne; Judas fez o mesmo com o espírito. Renunciou à honra, ao bem , à paz ao reino dos céus, tal como outros, menos heroicamente ao prazer.
Judas procurou o Inferno, porque lhe bastava a felicidade do Senhor. Pensou que a felicidade, como o bem, é um atributo divino e que não devem usurpá-lo os homens.
Afirmar que Jesus foi homem e que foi incapaz de pecado contém uma contradição.
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