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Mil torrentes V (A razão do viajante)
não podem esconder nem oprimir a vontade
de andar livres e soltos, sem pesos nem culpas,
mergulhando fundo num mundo às escuras!
O conhecimento de si e do mundo
nos dão um prazer revigorante e profundo!
As dores nos levam a reflexões sadias,
não matam: fortalecem-nos dia após dia!
Não fiquem parados esperando auxílio!
Libertem-se, saiam das prisões e asilos!
Transformem a servidão em liberdade!
Retirem as algemas: depois será tarde!
Os medos irracionais e as opressões
nos jogam em imaginários porões!
Os bons encontros e afetos concisos
nos lembram de que navegar é preciso!
Senhor de si mesmo, autor da própria história,
o homem sadio traça diversas rotas:
experimentando os diversos caminhos
afasta-se sempre de inférteis domínios.
Não perde tempo com vãos devaneios,
nem sonhos inúteis, nem meros anseios!
Nunca se deixa abater por missões
que buscam perpetuar superstições!
A razão do viajante é buscar novos ares,
sair de si mesmo, entrar em novos lares;
experimentar inéditas sensações,
vivenciar inesquecíveis emoções;
perder-se de si, esquecer de seu meio,
não saber aonde vai, nem lembrar de onde veio!
E mesmo sem sequer sair do lugar,
ir longe, tão longe quanto se pode pensar!
Ser fiel à si mesmo ininterruptamente
é ser livre de corpo, de alma e de mente!
Livrar-se das amarras de sua finitude
e lutar contra seu tempo: eis a virtude!
Coragem viajante! Explore este mundo
e todos os outros do universo profundo!
Lembre-se sempre: este mesmo universo
lhe é indiferente, nem bom, nem adverso!
A todo momento e em todo lugar,
nunca descanse sem antes lutar!
Coragem - para ensinar outros a ver;
humildade - para com outros sempre aprender!
Questione-se constantemente se aquela
é a melhor maneira de içar sua vela.
Espero que todos, mais cedo ou mais tarde,
não mais confundam servidão com liberdade!
E aqui compartilho a mais linda Mensagem
que, de uma Pessoa, ganhei, numa viagem;
encontrei Caeiro a guardar seus rebanhos
e nestas verdades mergulho e me banho:
'Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos...'"
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Comentários
Mil torrentes V (A razão do viajante)
Mais uma carta aberta aos companheiros viajantes, uma mensagem aos navegantes com o relato das conclusões a que o marinheiro solitário chegou depois de encontrar outro poeta com o qual compartilha muitas ideias.