Ruas perfuradas

Rompe a alvorada e soltam-se os acordes
que o acordeonista molda com o seu sentido.
Num pedaço de rua
há culpados de prematura ejaculação
há sonhos individuais
que são melodias rudemente repetitivas.
Nem toda a experiência sonora pulsa
e a quem já nada na rua
as gentes
parecem não saber convidar para um soluço suave
a quem hidrata excessivamente um receio sentado no muro.

Em nenhuma esquina
mora aquilo que quero tocar sem esganar
em nenhures
reaparece a casa miraculosa
aquela passada da mulher que dá à luz um morcego.
Ao andar devagar escorrem-me corridas
tento desviar-me de um pneu desgovernado sentindo algo alguidar
ou ter nos quiosques fechados um exalador de calor.
Os que puxam do bolso corporal
e ao mesmo tempo largam o isqueiro da mente
dizem-me às vezes
que há uma mão para lá do rebentamento dos canos
que a insónia é casada na tribo da rua paralela.
Pela perna do segredo grotesco
passo para escutar unhas na campa
para tirar partido do que é físico
do que não se sustenta por si e não só.
Chegarei a recuar assim
não chegarei a entristecer assim
talvez escute um cano de esgoto de música singular
talvez sinta ausência de coordenação
talvez salte confiante de um camião;
ficarei por uns tempos à espera do teu sono helicóptero
de nesse dia conseguir vestir-me
de nesse dia conseguir despir-me.

Bem que podia ser perfurada
a rua que transforma um sobrolho
numa malga funda de areia amarela
bem que podia ficar
ou, pelo menos, se repetir aquela travessia;
creio que se podia até dispensar
a subida subterrânea
o candeeiro de ruela com cor amorfa
se o resguardo da existência começada
viesse uma vez mais num esforço frontal.

Miguelsalgado, do livro «Cova»