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Thomas More - Utopia


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(…) o seu saber e as suas virtudes estão acima dos meus elogios, e sua reputação é tão brilhante que celebrar o seu mérito seria, como diz o provérbio, abrir uma porta aberta.

Sua alma está aberta a todos; mas nutre por seus amigos tanta benevolência, amor, fidelidade e devotamento que poder-se-ia qualificá-lo, muito justamente, como o perfeito modelo da amizade. Modesto e sem fingimentos, simples e prudente, sabe falar com espírito, e seu gracejo não é nunca uma injúria.

Os homens em geral ,só abrem mão de seus bens já velhos e na agonia, e é ainda chorando, que renunciam ao que suas mãos desfalecentes não mais podem reter.

Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono; e sendo assim, os príncipes não sentirão falta, se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.

É evidente, Rafael, que não procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por um homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império. Parece-me, entretanto, que seria digno de um espírito tão generoso, tão filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios públicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de algum grande príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais, senão para a virtude e para a verdade.
Vós o sabeis, o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis, mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.
- Incidis num duplo erro, caro Morus, replicou Rafael; e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa; estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício de meu sossego seria inútil à causa pública. Em primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da guerra (arte que me é desconhecida e que não tenho nenhum desejo de conhecer). Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Trate-se de conquistar novos reinados, e todos os meios lhes parecem bons; o sagrado e o profano, o crime e o sangue, não os detêm. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem administrar os Estados submetidos à sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua composição: Uns calam-se por inépcia, e teriam até mesmo grande necessidade de ser aconselhados. Outros, são mais dotados, e sabem que o são; mas partilham sempre do parecer dos anteriores, que está em melhores graças, e aplaudem, com entusiasmo, as pobres imbecilidades que estes têm por bem propinar; vis parasitas só têm uma finalidade: ganhar, por uma baixa e criminosa lisonja, a proteção do favorito do Rei. Há ainda, os escravos de seu amor-próprio que escutam apenas a própria opinião, o que não é de admirar, pois a natureza  leva a cada homem a afagar com amor aquilo mesmo que cria. É assim que o corvo sorri à sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes. Que sucede então no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interesse? Se alguém entende apoiar uma opinião razoável na história dos tempos passados, ou nos costumes dos outros países, logo outros conselheiros se mostram surpresos e atónitos; e com o amor próprio alarmado como se fossem perder a reputação de sábios e passar por imbecis. Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se a memória e a lógica lhes minguam, entrincheiram-se neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois assentam-se, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um oráculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade vai perecer se surgir um homem mais sábio que os seus antepassados. Enquanto isso, permaneçamos indiferentes, deixando subsistir as boas instituições que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento novo agarramo-nos à antiguidade para não acompanhar o progresso. Vi, em quase toda a parte, desses julgadores rabugentos, covardes, insensatos ou presunçosos.

A morte neste caso é uma pena injusta e inútil; é bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O simples roubo não merece a forca, e o mais horrível suplício não impedirá de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer de fome. Nisto, a justiça de Inglaterra e de muitos outros países se assemelha aos maus professores que espancam os alunos em lugar de instruí-los. Fazeis sofrer aos ladrões pavorosos tormentos; não seria melhor garantir a existência a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade imperiosa de roubar primeiro, e de morrer, depois?
- A sociedade previu o fenómeno, replicou o meu legista; a indústria, a agricultura oferecem ao povo inúmeros meios de existência; existem, porém, seres que preferem o crime ao trabalho.
- Era aí mesmo onde eu vos esperava. Não falarei dos que voltam das guerras civis ou estrangeiras com o corpo mutilado. Quantos soldados, entretanto, na batalha de Cornualha, ou na campanha de França, perderam um ou vários membros a serviço do rei e da pátria! Esses infelizes tornaram-se fracos demais para exercer o seu antigo ofício e velhos demais para aprender um novo. Mas deixemos isso, as guerras só se reacendem a longos intervalos. Olhemos o que se passa cada dia ao redor de nós. A principal causa da miséria pública reside no número excessivo de nobres, zangões ociosos, que se nutrem do suor e do trabalho de outrem e que, para aumentar seus rendimentos, mandam cultivar suas terras, escorchando os rendeiros até à carne viva. Não conhecem outra forma de economia. Mas, tratando-se de comprar um prazer, são pródigos, até à loucura. E não menos funesto é o fato de arrastarem consigo uma turba de lacaios e mandriões sem estado e incapazes de ganhar a vida. Caiam doentes esses lacaios, ou venha o seu patrão a morrer, e são jogados no olho da rua; porque é preferível “nutri-los” para não fazer nada, do que alimentá-los enfermos; muitas vezes o herdeiro do senhor não está em condições de manter toda a criadagem do pai.
Ei-los então expostos a morrer de fome se acaso não têm coragem de roubar. Terão eles, na realidade, outras possibilidades? Gastam a saúde e a vida sempre na espera da melhoria; e quando se tornam descorados pelas moléstias e cobertos de farrapos, os nobres têm-lhes horror, desprezando os seus serviços. Nem os camponeses os querem empregar. Os camponeses sabem que um homem que vive molemente na ociosidade e nos prazeres, habituado a trazer a espada e o escudo, a olhar superiormente os vizinhos e a desprezar todo mundo, um tal homem não é apto a manejar a pá e a enxada, a trabalhar, fielmente, por um salário insignificante e uma parca alimentação, ao serviço de um pobre lavrador.
- É precisamente essa espécie de gente que o Estado deve manter e multiplicar com mais cuidado. Há neles mais ânimo e nobreza da alma que no artesão e no lavrador. São maiores e mais robustos e constituem, portanto, a força do exército na hora de combater.
- Seria o mesmo que dizer, que se deve, para a glória e o êxito dos vossos exércitos, multiplicar os ladrões. Porque esses mandriões são uma sementeira inesgotável para o exército. Com efeito, os ladrões não são os piores soldados, como os soldados não são os mais tímidos ladrões; há muita analogia entre esses dois ofícios. Infelizmente, esta praga social não é particular à Inglaterra; corrói quase todas as nações.

Voltemos aos nossos soldados lacaios (escudeiros soldados). Têm eles, dizeis, mais coragem e grandeza da alma do que os artesãos e os trabalhadores. Eu, de mim, não creio que um lacaio faça muito medo nem a uns nem a outros, a não ser àqueles em que a fraqueza do corpo paralisa o vigor da alma e cuja energia foi aniquilada pela miséria. Os lacaios, dizeis ainda, são maiores e mais robustos. Mas não é uma lástima ver homens fortes e belos (porque os nobres escolhem as vítimas de sua corrupção) consumirem-se na inação, amolecerem-se em ocupações de mulheres, quando fácil seria torná-los laboriosos e úteis, dando-lhes um ofício honrado e habituando-os a viver do trabalho de suas mãos.
De qualquer maneira que se encare a questão, esta massa imensa de gente ociosa parece-me inútil ao país, mesmo na hipótese de uma guerra, que poderíeis, aliás, evitar todas as vezes que o quisésseis. Ela é, além do mais, o flagelo da paz; e a paz merece que se trate dela, tanto quanto da guerra.

Os inumeráveis rebanhos de carneiros (…) Eles subtraem vastos tratos de terra à agricultura e os convertem em pastagens; abatem as casas, as aldeias, deixando apenas o templo para servir de estábulo para os carneiros. Transformam em desertos os lugares mais povoados e mais cultivados. Temem, sem dúvida, que não haja bastantes parques e bosques e que o solo venha a faltar para os animais selvagens.

Colocai um freio ao avarento egoísmo dos ricos; tirai-lhes o direito do açambarcamento e monopólio. Que não haja mais ociosos entre vós. (…)Se não remediardes os males que vos assinalo, não vos vanglorieis de vossa justiça; é ela uma mentira feroz e estúpida.

Abandonais milhões de crianças aos estragos de uma educação viciosa e imoral. A corrupção faz murchar, à vossa vista, essas jovens plantas que poderiam florescer para a virtude, e, vós as matais, quando, tornadas homens, cometem os crimes que germinavam desde o berço em suas almas. E, no entanto, o  que é que fabricais? Ladrões, para terdes o prazer de os enforcar depois.

Minha convicção íntima, é que é injusto matar-se um homem por ter tirado dinheiro de outrem, desde que a sociedade humana não pode ser organizada de modo a garantir para cada um uma igual porção de bens.

Deus proibiu o assassínio e nós, nós matamos tão facilmente por causa do furto de algumas moedas!

A própria lei de Moisés, lei de terror e vingança, feita para escravos e homens embrutecidos, não punia de morte o simples roubo. Evitemos pensar que, sob a lei cristã, lei de perdão e caridade, em que Deus ordena como pai, nós temos o direito de ser mais desumanos, e de derramar, sob qualquer pretexto, o sangue de nosso irmão.

O celerado vê que não há menos a temer furtando do que assassinando; então, ele mata aquele a quem apenas despojara; e mata-o para a sua própria segurança. Assim agindo, ele se descarta do seu principal denunciador, e tem maior probabilidade de esconder o crime. Eis o belo efeito desta justiça implacável: aterrorizando o ladrão com a expectativa da forca, fez dele um assassino!

Platão disse: A humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem filósofos.

Os Filósofos não são bastante egoístas para esconder a verdade; muitos a têm revelado em seus escritos; e se os senhores do mundo estivessem preparados para receber a luz, poderiam ver e compreender. Infelizmente cega-os uma venda fatal, a venda dos preconceitos e dos falsos princípios, em que se formaram e dos quais foram infectados desde a infância. Platão não ignorava isso; sabia, como nós, que os reis nunca seguiam os conselhos dos filósofos, a menos que eles próprios o fossem.

Suponhamos pois que eu seja ministro de um rei. Proponho-lhe os decretos mais salutares; esforço-me por arrancar de seu coração e de seu império todos os germes do mal. Acreditais que não me expulsará da corte ou que não me exporá ao riso dos cortesãos?
(…) se, dirigindo-me ao próprio monarca, o fizesse ver que essa paixão de guerrear, que transtorna as nações, depois de ter esgotado as finanças e arruinado o povo, poderia ocasionar à França as consequências mais fatais; se lhe dissesse: Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a força; amai vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei como pai no meio deles e não comandeis nunca como déspota; deixai em paz os outros reinos; aquele que vos coube por herança é suficientemente grande para vós. Dizei-me, caro Morus, com que espécie de bom ou mau humor seria acolhida semelhante arenga?
- Com péssimo mau humor, respondi.
- E não é tudo, continuou Rafael; passamos em revista a política exterior dos ministros…; a glória era então o de que necessitava o seu senhor ; agora é o dinheiro. Vejamos um instante os seus novos princípios de governo e justiça. Este, propõe elevar o valor da moeda quando se trate de reembolsar um empréstimo, e de fazê-lo descer muito abaixo do par quando se trate de tornar a encher o tesouro. Com esse duplo expediente, o príncipe poderá cobrir suas enormes dívidas, e, sem trabalho, fazer uma grande colheita em recursos.
Aquele, aconselha simular uma guerra próxima. Este pretexto legitimará um novo imposto. Depois da arrecadação do tributo extraordinário, o príncipe fará subitamente a paz; ordenará a celebração desse feliz acontecimento por meio de ações de graça nos templos e de todas as pompas das cerimónias religiosas. A. nação ficará deslumbrada, e o reconhecimento público elevará até aos céus as virtudes de um rei tão humanamente avaro do sangue de seus súbditos.
Um outro vem, e desenterra velhas leis carcomidas pelas traças e caídas em desuso pelo tempo. Como todos ignoram a sua existência, todos as transgridem. Restaurando, assim, as multas pecuniárias contidas nessas leis, criar-se-ia uma fonte de renda lucrativa e até honrada, pois que se agiria em nome da justiça.
Um terceiro pensa que não seria de menos proveito lançar, sob pena de pesadas multas, uma, multidão de novas proibições, a maioria delas em benefício do povo. O rei, mediante soma considerável, isentaria aqueles cujos interesses privados fossem comprometidos por estas proibições. Dessa maneira o rei ver-se-ia cumulado das bênçãos do povo e faria dupla receita, recebendo, ao mesmo tempo, dinheiro dos transgressores e dos privilegiados. O melhor do negócio é que quanto mais exorbitante fosse o preço das isenções tanto mais Sua Majestade ganharia em estima e consideração. Vejam, diriam, como este bom príncipe violenta seu coração ao vender tão caro o direito de prejudicar o povo.
Outro ainda, enfim, aconselha ao monarca ter à disposição juízes sempre dispostos a sustentar, em todas as ocasiões, os direitos da coroa. Vossa Majestade, acrescenta ele, deveria chamá-los à corte, e persuadi-los a discutir, perante a vossa augusta pessoa, os próprios negócios reais. Por pior que seja uma causa, haverá sempre um juiz para julgá-la boa, seja pela mania da contradição, seja por amor da novidade e do paradoxo, seja para agradar ao soberano. Então, uma discussão se trava; a multiplicidade e o conflito de opiniões embrulham uma coisa de si mesma muito clara, e a verdade é posta em dúvida. Vossa Majestade aproveita o momento para resolver a dificuldade, interpretando o direito em proveito próprio. Os dissidentes se submetem à opinião real por timidez ou por temor, e o julgamento é dado, segundo as formalidades, com franqueza e sem escrúpulo. Faltarão acaso “considerandos” ao juiz que se pronuncia a favor do príncipe? Não terá ele o texto da lei, a liberdade de interpretação, e, acima das leis, para um juiz religioso e fiel, a prerrogativa real?

Ouvi os axiomas de moral política proclamados unanimemente pelos membros do nobre conselho:
Para o rei que mantém um exército nunca há dinheiro bastante.
O rei nunca pode proceder mal mesmo que o quisesse.
O rei é o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os seus súditos; nada possuem senão como usufrutuários pelas boas graças do rei.
A pobreza do povo é o baluarte da monarquia.
A riqueza e a liberdade conduzem à insubordinação e ao desprezo da autoridade; o homem   livre e rico suporta com impaciência um governo injusto e despótico.
A indigência e a miséria degradam a coragem, embrutecem as almas, habituam-nas ao sofrimento e à escravidão, comprimindo-as a ponto de lhes tirar a energia necessária para sacudir o jugo.
A esses poderosos senhores respondo: Vossos conselhos são infames, vergonhosos para o rei, funestos para o povo. A honra de vosso senhor e a sua felicidade consistem na riqueza de seus súbditos mais ainda do que na sua própria. Os homens fizeram os reis para os homens e não para os reis; colocaram chefes à sua frente para que pudessem viver comodamente ao abrigo das violências e dos ultrajes; o dever mais sagrado do príncipe é velar pela felicidade do povo antes de velar pela sua própria; como um pastor fiel, deve dedicar-se a seu rebanho, e conduzi-lo às pastagens mais férteis.
Sustentar que a miséria pública é a melhor salvaguarda da monarquia, é sustentar um erro grosseiro e evidente; onde se vêm mais querelas e rixas do que entre os mendigos?
Qual é o homem que mais deseja uma revolução? Não será aquele cuja existência actual é miserável? Qual é o homem que revelará maior audácia em subverter o Estado? Não será aquele que com isso só pode ganhar por nada ter a perder?
Um rei que provocasse o ódio e o desprezo dos cidadãos e cujo governo não pudesse se manter senão pelas vexações, pela pilhagem, pelo confisco e pela miséria universal, deveria descer do trono e depor o poder supremo. Empregando estes meios tirânicos, talvez pudesse conservar o nome de rei, mas perderá o prestígio e a majestade. A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens livres e felizes.(…)nadar em delícias, saciar-se de voluptuosidades em meio às dores e gemidos de um povo, não é conservar um reino, é manter uma prisão.
O médico que apenas sabe curar as doenças de seus clientes comunicando-lhes outras mais graves, passa por ignaro e imbecil; confessai, portanto, vós que sabeis governar tirando aos cidadãos a subsistência e as comodidades da vida que sois indignos e incapazes de governar homens livres! Ou então corrigi vossa ignorância, vosso orgulho e vossa preguiça: é isso o que excita o ódio e o desprezo pelo soberano. Vivei em conformidade com a justiça; medi vossas despesas na proporção de vossos proventos; detei as torrentes do vício; criai instituições de benemerência, que previnam o mal e o estiolem no germe, ao em vez de inventar suplícios contra os infelizes que uma legislação absurda e bárbara impele ao crime e à morte.
Não ressusciteis leis carunchosas caídas no olvido e no esquecimento, lançando sobre os vossos súbditos toda a sorte de obstáculos e de erro. Não eleveis o preço de um delito a uma taxa que o juiz condenaria, como injusta e vergonhosa, entre simples particulares.

Os ministros e os políticos de hoje, estão impregnados de erros e preconceitos; como quereis bruscamente modificar suas crenças e fazer penetrar, de chofre, em suas cabeças e em seu coração, a verdade e a justiça?

Um bom actor põe todo seu talento no papel que vai representar, qualquer que ele seja; e não perturba o conjunto, porque lhe ocorre à fantasia declamar uma tirada magnífica e pomposa.

Se não se pode desarraigar de uma só vez as máximas perversas, nem abolir os costumes imorais, não é isto razão para se abandonar a causa pública. O piloto não abandona o navio diante da tempestade porque não pode domar o vento.

Falais a homens imbuídos de princípios contrários aos vossos; que caso poderão fazer de vossas palavras, se lhes atirais à face a contradita e o desmentido? Segui o caminho oblíquo - ele vos conduzirá mais seguramente à meta. Aprendei a dizer a verdade com propriedade e a propósito; e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal; porque tudo só será bom e perfeito, quando os próprios homens forem bons e perfeitos; e até lá, os séculos passarão.

Sei que minha linguagem parecerá dura e severa aos conselheiros do rei; apesar disso, não vejo por que sua novidade seja de tal modo estranha que toque o absurdo.

Há covardia ou má fé em calar as verdades que condenam a perversidade humana, sob o pretexto de que serão escarnecidas como novidades absurdas ou quimeras impraticáveis. De outra forma, seria necessário deitar um véu sobre o Evangelho e dissimular aos cristãos a doutrina de Jesus. Mas Jesus proibia a seus apóstolos o silêncio e o mistério; repetia-lhes sempre: O que vos digo em voz baixa e ao ouvido, pregai pôr toda parte, em voz alta e às claras. Ora, a moral de Cristo está muito mais em contradição aos costumes deste mundo, do que os nossos discursos.

Não há, pois, nenhuma maneira de ser útil ao Estado nessas altas regiões. O ar que aí se respira corrompe a própria virtude. Os homens que vos cercam, longe de corrigirem-se com os vossos ensinamentos, depravam-vos com seu contacto e pela influência de sua perversão; e se conservais vossa alma pura e incorruptível, servireis de manto às suas imoralidades e loucuras. Não há, pois, esperança de transformar o mal em bem…

Em toda a parte onde a propriedade for um direito individual, onde todas as coisas se medirem pelo dinheiro, não se poderá jamais organizar nem a justiça nem a prosperidade social, a menos que chameis  justa a sociedade na qual o que há de melhor é pertença dos piores, e que considereis perfeitamente feliz o Estado no qual a fortuna pública é a presa de um punhado de indivíduos insaciáveis de prazeres, enquanto a massa é devorada pela miséria.

Na Utopia, as leis são pouco numerosas; a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida que cada um goza abundantemente de todas as comodidades da vida.

A igualdade é impossível num Estado em que a posse é particular e absoluta; porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria.

Eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do género humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos.

Sei que existem remédios que podem aliviar o mal; mas estes remédios são impotentes para curá-lo. Por exemplo:
Decretar um máximo de posse individual em terras e dinheiro
Precaver-se por meio de severas leis contra, o despotismo e a anarquia.
Denunciar e castigar a ambição e a intriga. Não traficar as magistraturas.
Suprimir o fausto e a representação nos altos cargos, a fim de que o funcionário, para sustentar sua posição, não se entregue à fraude e à rapina; ou, a fim de que não seja obrigado a dar aos mais ricos os cargos que deveriam caber aos mais capazes.
Estes meios, repito-o, são excelentes paliativos que podem adormecer a dor e aliviar as chagas do corpo social; mas não espereis com isto devolver-lhe a força e a saúde, enquanto cada um possuir solitariamente e absolutamente seus bens; podeis cauterizar uma úlcera, mas inflamareis todas as outras; curareis um doente, e matareis um homem são; porque o que acrescentais ao haver de um indivíduo tirais ao de seu vizinho.

Disse eu, então, a Rafael: Longe de compartilhar vossas convicções, penso, ao contrário, que o país em que se estabelecesse a comunidade de bens seria o mais miserável de todos os países. Com efeito, como produzir para as necessidades de consumo? Toda a gente fugiria do trabalho e descansaria dos cuidados com sua existência sobre o trabalho dos outros. E, mesmo que a miséria acicatasse os preguiçosos, como a lei não mantém  de maneira inviolável,  e contra todos, a propriedade de cada um, a rebelião rugiria, sem cessar, esfomeada e ameaçadora, e a matança ensanguentaria a vossa república.
Que barreira oporíeis à anarquia? Vossos magistrados têm apenas uma autoridade nominal; estão despidos, despojados de tudo que impõe o temor e o respeito. Não chego nem mesmo a conceber a possibilidade de governo nesse povo de niveladores que repele toda espécie de superioridade.

Eis o que dá aos utopianos a superioridade do bem-estar material e social, embora os igualemos em inteligência e riqueza, é a actividade do espírito dirigida incessantemente para a pesquisa, o aperfeiçoamento e a aplicação, das coisas úteis.

Entre os regulamentos do senado, o seguinte merece ser assinalado. Quando uma proposta é feita, é proibido discuti-la no mesmo dia; a discussão é transferida para a sessão seguinte. Desta maneira ninguém fica exposto a desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe passem pela cabeça, e a defender, em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral; pois não é frequente acontecer que se recue diante da vergonha de uma retratação e do reconhecimento de um erro irreflectido? Então, sacrifica-se o bem público para salvar a reputação. Este perigo funesto da precipitação foi previsto, e aos senadores é dado o tempo suficiente para reflectir.

Não se deve crer que os utopianos se atrelem ao trabalho como bestas de carga desde a madrugada até à noite. Esta vida embrutecedora para o espírito e para o corpo, seria pior que a tortura e a escravidão. E no entretanto, tal é, em outra qualquer parte, a triste sorte do operário!

Porque, neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento.

O fim das instituições sociais na Utopia é de prover antes de tudo as necessidades do consumo público e individual; e deixar a cada um o maior tempo possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito, desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade.

Segundo os seus princípios, a guerra mais justa é aquela que se faz a um povo que possui imensos territórios incultos e que os conserva desertos e estéreis, notadamente quando este mesmo povo interdiz a sua posse e o seu uso aos que vêm para cultivá-los e deles se nutrir, conforme a lei imprescritível da natureza.

O que torna, em geral, os animais cúpidos e rapaces, é o temor das privações no futuro. No homem em particular, existe uma outra causa de avareza - o orgulho, que o excita a ultrapassar em opulência os seus iguais e a deslumbrá-los pelo aparato de um luxo supérfluo.

(…)Estas riquezas são destinadas a engajar e a pagar copiosamente as tropas estrangeiras; porque o governo da Utopia prefere expor à morte os estrangeiros que os seus cidadãos. Ele sabe também que o inimigo mais encarniçado se vende algumas vezes, se o preço da venda está à altura de sua cobiça; sabe que, em geral, o dinheiro é o nervo da guerra, quer para comprar traições, quer para combater abertamente.

Quanto mais os costumes estrangeiros são opostos aos nossos, menos estamos dispostos a acreditar neles.

O ouro e a prata não têm, nesse país, mais valor do que lhes deu a natureza. Esses dois metais são ali considerados bem abaixo do ferro, o qual é tão necessário ao homem quanto a água e o fogo. Com efeito, o ouro e a prata não têm nenhuma virtude, nenhum uso, nenhuma propriedade cuja privação acarrete um inconveniente natural e verdadeiro. Foi a loucura humana que pôs tanto valor em sua raridade. A natureza, esta excelente mãe, escondeu-os em grandes profundidades, como produtos inúteis e vãos, enquanto que expõe a descoberto a água, o ar, a terra, e tudo o que há de bom e realmente útil.     (só já, no séc XX ,se descobriu algumas outras utilidades importantes para o Au e Ag)

Os utopianos não escondem seus tesouros nas torres, ou em outros lugares fortificados e inacessíveis. Com o ouro e a prata não se fabricam nem vasos, nem obras artisticamente trabalhadas. Porque, se houvesse necessidade de um dia fundi-los, para pagar o exército em caso de guerra, os que tivessem posto sua afeição e suas delícias nesses objetos de arte e de luxo, sentiriam, ao perdê-los, uma dor amarga. A fim de prevenir esses inconvenientes, os utopianos imaginaram um uso perfeitamente em harmonia com o restante de suas instituições, mas em completo desacordo com as do nosso continente, onde o ouro é adorado como um Deus, procurado como o bem supremo; o ouro e a prata são destinados aos usos mais vis, tanto nas residências comuns, como nas casas particulares; são feitos com eles até os vasos noturnos. Forjam-se cadeias e correntes para os escravos, e marcas de opróbrio para os condenados que cometeram crimes infames. Estes últimos levam anéis de ouro nos dedos e nas orelhas, um colar de ouro no pescoço, um freio de ouro na cabeça. Assim, tudo concorre para manter o ouro e a prata na ignomínia. Entre outros povos a perda da fortuna é um sofrimento tão cruel como um dilaceramento de entranhas; mas quando se arrancasse à nação utopiana todas suas imensas riquezas ninguém pareceria ter perdido um cêntimo.
Os utopianos recolhem pérolas na sua costa, diamantes e pedras preciosas em certos rochedos. Sem ir à cata desses objetos raros, eles gostam de polir os que a sorte os presenteia, a fim de adornar os seus filhinhos, que ficam todo orgulhosos de trazer esses ornamentos. Mas, à medida que crescem, percebem logo que estas frivolidades não convêm senão às crianças pequenas. Então, não esperam pela observação dos pais; espontaneamente e por amor próprio livram-se desses enfeites. É como entre nós, quando as crianças que vão crescendo, abandonam as bolas e as bonecas.

Os utopianos admiram-se de que seres razoáveis possam se deleitar com a luz incerta e duvidosa de uma pedra ou de uma pérola, quando têm os astros e o sol com que encher os olhos. Encaram como louco aquele que se acredita mais nobre e mais estimável só porque está coberto de uma lã mais fina, lã tirada das costas de um carneiro, e que foi usada primeiro por este animal. Admiram-se que o ouro, inútil por sua própria natureza, tenha adquirido um valor fictício tão considerável que seja muito mais estimado do que o homem; ainda que somente o homem lhe tenha dado este valor e dele se utilize, conforme seus caprichos.

Espantam-se também que um rico, de inteligência de chumbo, estúpido como uma acha de lenha, tão tolo quanto imoral, mantenha em sua dependência uma multidão de homens sábios e virtuosos, apenas porque a sorte lhe deixou algumas pilhas de escudos.
Há uma outra loucura que os utopianos detestam ainda mais, e que dificilmente concebem, é a loucura dos que rendem homenagens quase divinas a um homem porque é rico, sem serem, entretanto, nem seus devedores nem seus súbditos.

Em filosofia moral, agitam as mesmas questões que os nossos doutores. Procuram na alma do homem, no seu corpo e nos objetos exteriores, o que pode contribuir para sua felicidade; perguntam, procuram saber se o nome de Bem convém indiferentemente a todos os elementos da felicidade material e intelectual, ou só ao desenvolvimento das faculdades do espírito. Dissertam sobre a virtude e o prazer; mas a primeira e principal de suas controvérsias tem por fito determinar a condição única, ou as diversas condições da felicidade do homem.

Eis aqui seu catecismo religioso: A alma é imortal: Deus que é bom, criou-a para ser feliz. Depois da morte, as recompensas coroam a virtude, o crime, castigo. Embora esses dogmas pertençam à religião, os utopianos pensam que a razão pode induzir a crer neles e aceitá-los.
Não hesitam em declarar que, na ausência desses princípios, fora preciso ser estúpido para não procurar o prazer por todos os meios possíveis, criminosos ou legítimos. A virtude consistiria, então, em escolher, entre duas volúpias, a mais deliciosa, a mais picante; e em fugir dos prazeres a que se seguissem dores mais vivas do que o gozo que tivessem proporcionado.
Mas praticar virtudes severas e difíceis, renunciar aos prazeres da vida, sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa às mortificações da terra, é, aos olhos dos nossos insulares, o cúmulo da loucura.
A felicidade, dizem, não está em toda espécie de voluptuosidade; está unicamente nos prazeres bons e honestos. É para esses prazeres que tudo, até a própria virtude, arrasta irresistivelmente a nossa natureza; são eles que constituem a felicidade.
Os utopianos definem a virtude: viver segundo a natureza. Deus, ao criar o homem, não lhe deu outro destino. O homem que segue o impulso da natureza, é aquele que obedece à voz da razão, em seus ódios e seus apetites.
Ora, a razão inspira, em primeiro lugar, a todos os mortais o amor e a adoração da majestade divina, à qual nós devemos o ser e o bem estar. Em segundo lugar, ela nos ensina e nos instiga a viver alegremente e sem lamentações, e a proporcionar aos nossos semelhantes, que são nossos irmãos, os mesmos benefícios.
De facto, o mais enfadonho e o mais fanático zelador da virtude, o inimigo mais odiento do prazer, ao vos propor imitar seus trabalhos, suas vigílias e mortificações, ordena-vos, também, que consoleis, com todas as vossas forças, a miséria e as aflições dos outros.
Esse moralista severo enche de elogios, em nome da humanidade, o homem que consola e que salva o homem; e crê, assim, que a virtude mais nobre e mais humana, em qualquer terreno, consiste em suavizar os sofrimentos do próximo, arrancá-lo ao desespero e à tristeza, restituir-lhe as alegrias da vida, ou, em outros termos, fazê-lo ter parte também na volúpia.
E por que a natureza não induziria cada um de nós a se fazer, a si mesmo, o mesmo bem que aos outros? Pois, das duas uma: ou uma existência agradável, isto é, a volúpia, é um bem ou um mal. Se é um mal, não somente não se deve ajudar seus semelhantes a fruí-la, mas ainda deve-se arrancá-la como coisa perigosa e condenável. Se é um bem, pode-se e deve-se procurá-la para si próprio como para os outros. Por que iríamos ter menos compaixão de nós do que dos outros? A natureza, que inspira em nós a caridade por nossos irmãos, não ordena que sejamos cruéis com nós próprios.
Eis o que leva os utopianos a afirmarem que uma vida honestamente agradável quer dizer que o prazer é o fim de todas as nossas ações; que tal é a vontade da natureza e que obedecer a esta vontade é ser virtuoso. A natureza, dizem eles, convida todos os homens a se ajudarem mutuamente e a partilharem em comum do alegre festim da vida. Este preceito é justo e razoável, pois não há indivíduo tão altamente colocado acima do género humano que somente a Providência deva cuidar dele. A natureza deu a mesma forma a todos; aqueceu-os todos com o mesmo calor, envolve todos com o mesmo amor; o que ela reprova, é aumentar o próprio bem-estar agravando a infelicidade alheia.
É por isto que os utopianos pensam que é necessário observar não só as convenções privadas entre simples cidadãos, mas ainda as leis públicas, que regulam a distribuição das comodidades da vida, em outros termos, que distribuem a matéria do prazer, quando estas leis foram justamente promulgadas por um bom príncipe, ou sancionadas pelo consentimento geral de um povo, nem oprimido pela tirania, nem vítima do artifício.
A sabedoria reside em procurar a felicidade sem violar as leis. A religião é trabalhar pelo bem geral. Calcar aos pés a felicidade de outrem, em busca da sua, é uma ação injusta.
Ao contrário, privar-se de algum prazer, para comunicá-lo a outrem, é indício de um coração nobre e humano, e que, aliás, acaba por encontrar alguma coisa mais do que o prazer que sacrificou. Primeiro que tudo, esta boa ação é recompensada pela reciprocidade dos serviços; em seguida, o testemunho da consciência, a lembrança e o reconhecimento dos que foram obsequiados causam à alma uma delícia maior que não poderia ter dado ao corpo o objeto de que se foi privado. Finalmente, o homem que tem fé nas verdades religiosas, deve estar firmemente persuadido de que Deus recompensa a privação voluntária de um prazer efémero e passageiro, com alegrias inefáveis e eternas.
Assim, em última análise, os utopianos reduzem todas as ações e mesmo todas as virtudes ao prazer, como finalidade.
Eles chamam volúpia a todo o estado ou a todo o movimento da alma e do corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitação natural. Não é sem razão que eles acrescentam a palavra natural, porque não é apenas a sensualidade, é também a razão que nos atrai para as coisas naturalmente deleitáveis; e por isto devemos compreender os bens que se podem procurar sem injustiça, os gozos que não privem de um prazer mais vivo, e que não arrastem consigo nenhum mal.

Há coisas fora da natureza, que os homens, por uma convenção absurda, intitulam prazeres (como se tivessem o poder de transformar a essência tão facilmente como modificam as palavras). Essas coisas, longe de contribuir para a felicidade, são outros tantos obstáculos em seu caminho; aos que seduzem, elas impedem gozarem satisfações puras e verdadeiras; viciam o espírito, preocupando-o com a ideia de um prazer imaginário. Há, com efeito, uma quantidade de coisas, às quais a natureza não juntou nenhuma doçura, as quais ela chegou até a misturar de amargura e que, no entanto, os homens olham como altas volúpias de algum modo necessárias à vida, apesar de, na sua maioria, serem essencialmente más e só estimular as paixões perversas.
Os utopianos classificam essa espécie de prazeres bastardos, a vaidade daqueles, que se crêem melhores porque usam uma roupa mais bonita. A vaidade desses tolos é duplamente ridícula.
Em primeiro lugar, consideram suas roupas acima de suas pessoas; pois, quanto ao que é de uso, em que, vos pergunto, uma lã mais fina prevalece sobre uma lã mais grossa? Entretanto, os insensatos, como se se distinguissem da multidão pela excelência de sua natureza, e não pela loucura de seu comportamento, erguem orgulhosamente a cabeça, imaginando valer um grande preço. Exigem, em virtude da rica elegância de suas vestes, honras que não ousariam esperar com um traje simples e comum; mostram-se indignados quando se olha a sua roupa com um olhar de indiferença.
Em segundo lugar, esses mesmos homens não são menos estúpidos por se alimentarem de honras sem realidade e sem proveitos. É natural e verdadeiro o prazer que se sente em frente de um adulador que tira o chapéu e dobra humildemente o joelho? Uma genuflexão cura alguém da febre ou da gota?

Entre aqueles que ainda seduz uma falsa imagem do prazer, estão os nobres que se comprazem com orgulho e amor no pensamento de sua nobreza. E de que se gabam? Do acaso que os fez nascer em uma longa série de ricos antepassados, e, sobretudo, de ricos proprietários (porque a nobreza de hoje é a riqueza). Todavia, se esses insensatos nada tivessem herdado de seus pais, ou tivessem devorado todo seu património, ainda assim não se sentiriam, por isso, diminuídos na sua nobreza de um só cabelo.

Os utopianos classificam os amadores de pedrarias na categoria dos maníacos de nobreza. Os homens que têm essa paixão, julgam-se uns pequenos deuses, quando encontram uma pedra bela e rara, particularmente apreciada na sua época e no seu país, pois a mesma pedra não conserva sempre e por toda a parte o mesmo valor. O amador de pedras compra-as nuas e sem ouro; leva mesmo a precaução ao ponto de exigir do vendedor uma caução e até o juramento que o diamante, o rubi, o topázio são de bom quilate, de tal modo teme que um falso brilhante impressione os seus olhos! Que prazer há, pois, em olhar uma pedra natural de preferência a uma artificial, desde que o olho não apreende a diferença? Tanto uma como outra não têm realmente mais valor para um que enxerga do que para um cego.

Que dizer dos avarentos que acumulam dinheiro e mais dinheiro, não para seu uso, mas para se consumir na contemplação de uma enorme quantidade de metal? O prazer desses ricos miseráveis não é pura quimera? E será mais feliz aquele que, por uma extravagância mais estúpida ainda, enterra os seus escudos? Este último nem ao menos vê o seu tesouro, e o medo de perdê-lo faz com que o perca de facto. Mas enterrar ouro não é o mesmo que roubar a si próprio e aos outros? No entanto, o avarento sente-se tranquilo, salta de alegria quando enterrou bem suas riquezas.
Agora, suponhamos que alguém se apodere desse depósito confiado à terra, e que o nosso Harpagon sobreviva dez anos à sua ruína, sem o saber; eu vos pergunto, que lhe importou nesse intervalo, ter conservado ou perdido o tesouro? Enterrado ou roubado, ele lhe deu exatamente a mesma serventia.

Não é mais fatigante do que agradável ouvir os cães ladrarem e ganirem? Em que é mais divertido ver correr um cão atrás de uma lebre do que vê-lo atrás de outro cachorro? Entretanto, se é a corrida que faz o prazer, a corrida existe nos dois casos. Mas não é antes a expectativa da morte ou a espera da carniceria o que apaixonam os homens pela caça? E como não abrir a alma à piedade, como não ter horror a esta matança, em que o cão forte, cruel e audaz, dilacera a lebre fraca, tímida e fugitiva?

A caça é a parte mal vil da arte de matar os animais; as outras partes desse ofício são muito mais consideradas, porque trazem maior lucro e porque nelas só matam os animais por necessidade, enquanto que o caçador procura no sangue e na morte um divertimento estéril.

Os utopianos distinguem diversas espécies de prazeres verdadeiros: uns relacionam-se com o corpo, outros com a alma. Os prazeres da alma estão no desenvolvimento da inteligência e nas puras delícias que acompanham a contemplação da verdade. Acrescentam ainda a certeza tde uma vida irrepreensível e a esperança certa de uma imortalidade bem-aventurada. Eles dividem em duas espécies as voluptuosidades do corpo:
A primeira espécie compreende todas volúpias que exercem sobre os sentidos uma impressão actual, manifesta, e cuja causa é o restabelecimento dos órgãos consumidos pelo calor interno. Essa impressão nasce de um lado, da ação de beber e comer que devolve as forças perdidas; de outro lado, das funções animais que expelem do corpo as matérias supérfluas. Tais são as secreções intestinais, o coito, e o alívio de uma comichão qualquer, ao esfregar-se ou ao coçar-se. Algumas vezes o prazer dos sentidos não provém das funções animais que reparam os órgãos esgotados, ou os aliviam de uma exuberância penosa; mas pelo efeito de uma força interior e indefinível que comove, encanta e seduz; tal é o prazer que nasce da música.
A segunda espécie de volúpia sensual consiste no equilíbrio estável e perfeito de todas as partes do corpo, isto é, numa saúde isenta de mal-estar. Com efeito, o homem que não é afetado pela dor, experimenta em si um certo sentimento de bem-estar, mesmo que nenhum objeto exterior agite agradavelmente os seus órgãos. É verdade que esta espécie de volúpia não afeta nem atordoa os sentidos, como por exemplo os prazeres da mesa; apesar disso, muitos a colocam em primeiro lugar; e quase todos os utopianos declaram que ela é a base e o fundamento da verdadeira felicidade. Porque, dizem, só uma saúde perfeita torna a condição da vida humana tranquila e apetecível; sem saúde, não há voluptuosidade possível; sem ela, a própria ausência da dor não é um bem, é a insensibilidade do cadáver.

Que triste destino seria o nosso, se nos fosse preciso expulsar, à força de venenos e drogas amargas, a fome e a sede de cada dia, como expulsamos as moléstias que nos assaltam de longe em longe!

Eles mantêm e cultivam de boa vontade a beleza, o vigor, a agilidade do corpo, os dons mais agradáveis e felizes da natureza. Admitem também os prazeres que a natureza criou exclusivamente para o homem e que fazem a graça e o encanto da vida. Porque o animal não demora a olhar sobre a magnificência da criação, sobre a ordem e o arranjo do universo. Sente o odor para distinguir a alimentação, mas não saboreia a delícia dos perfumes; não conhece as relações dos sons, e não aprecia a dissonância nem a harmonia.
Finalmente, em toda espécie de satisfações sensuais, os utopianos não esquecem jamais esta regra prática: Fugir à volúpia que impede gozar uma volúpia maior ou que é seguida de qualquer dor. Ora, a dor é, a seus olhos, a consequência inevitável de toda volúpia desonesta. Eis ainda um de seus princípios: Desprezar a beleza do corpo, enfraquecer suas forças, converter sua agilidade em entorpecimento, esgotar seu temperamento pelo jejum e pela abstinência, arruinar a saúde, em uma palavra, repelir todos os favores da natureza, no intuito de devotar-se mais eficazmente à felicidade da humanidade, na esperança de que Deus venha recompensar essas penas de um dia por êxtases de alegria eterna, é dar mostra de religião sublime.
Mas crucificar a carne, sacrificar-se por um vão fantasma de virtude, ou para habituar-se antecipadamente a misérias que talvez não aconteçam nunca, é dar mostra de loucura, de uma covarde crueldade para consigo mesmo, de orgulhosa ingratidão para com a natureza. É pisar aos pés os benefícios do Criador, como desdenhando ser-lhe obrigado em alguma coisa. Tal é a teoria utopiana no que se refere à virtude, e ao prazer. A menos que uma revelação descida do céu inspire ao homem qualquer coisa de mais santo, eles crêem que a razão humana não pode conceber nada de mais verdadeiro. Esta moral é boa, é má?

O médico, costumam dizer, que se aplica em penetrar os mistérios da vida, não somente tira deste estudo admiráveis prazeres, como ainda se torna agradável ao divino obreiro, autor da vida.

A servidão recai particularmente sobre os cidadãos culpáveis de grandes crimes e sobre os condenados à morte pertencentes ao estrangeiro. Estes são muito numerosos na Utopia; os utopianos vão mesmo procurá-los no exterior onde os compram a vil preço; algumas vezes obtêm-nos até de graça.
Todos os escravos são submetidos a um trabalho contínuo, e trazem correntes. Os que são tratados, porém, com mais rigor, são os indígenas, que são tidos como os mais miseráveis dos celerados, dignos de servir de exemplo aos outros por uma pior degradação. Com efeito, eles receberam todos os germes da virtude; aprenderam a ser felizes e bons, e, no entanto, abraçaram o crime.

Os utopianos não se casam às cegas; e para melhor se escolherem, seguem um uso que, à primeira vista, nos pareceu eminentemente ridículo, mas que praticam com um sangue frio e uma seriedade verdadeiramente notáveis.
Uma dama honesta e grave mostra ao prometido sua noiva, donzela ou viúva, em estado de completa nudez; e reciprocamente, um homem de probidade comprovada, mestra à rapariga seu noivo nu.
Quando, diziam os utopianos, comprais um burrico, negócio de alguns escudos, tomais precauções infinitas. O animal está quase nu, e entretanto, tirai-lhe a sela ou os arreios, temendo que esses fracos invólucros escondam alguma úlcera. E, quando se trata de escolher uma mulher, escolha que influi sobre todo o resto da vida, e que pode fazer desta uma delícia ou uma tortura, procedeis com a maior incúria! Como?! Prendei-vos indissoluvelmente a um corpo todo oculto em vestes que o envolvem; julgais a mulher inteira por um pedaço de sua pessoa, tão grande quanto a mão, pois só o rosto está à vista! E não temeis de encontrar depois disto alguma deformidade secreta, que vos leve a maldizer esta união arriscada!
Os utopianos tinham alguma razão em falar assim, porque todos os homens não são bastante filósofos para estimar uma mulher apenas por seu espírito e coração, e os próprios filósofos não se aborreceriam por encontrar refluídas a beleza do corpo e as qualidades da alma.
(…) Na Utopia onde a poligamia é severamente proscrita e onde o casamento não se dissolve, na maioria das vezes, senão pela morte, excetuando-se o caso de adultério e de costumes absolutamente dissolutos. Nos dois casos o senado dá ao cônjuge ofendido o direito de se casar novamente; o outro é condenado a viver perpetuamente na infâmia e no celibato.

Não é permitido, sob nenhum pretexto, repudiar uma mulher de comportamento irrepreensível, sob o fundamento de alguma enfermidade corporal que haja adquirido. Abandonar assim uma esposa, no momento em que tem maior necessidade de socorros, é, aos olhos dos utopianos, uma cruel covardia; é ainda tirar à velhice toda esperança no futuro, pois não é a velhice a mãe de todos os achaques, e não é ela, já em si, uma doença?
Acontece algumas vezes na Utopia que o marido e a mulher não podendo conviver juntos por incompatibilidade de gênios, procuram novas metades, que lhes prometam uma vida mais feliz e mais doce. A demanda de separação deve ser levada aos membros do senado que, após terem escrupulosamente examinado a questão, juntamente com suas mulheres, rejeitam ou autorizam o divórcio. Neste último caso, as duas partes queixosas separam-se com mútuo consentimento e casam-se em segundas núpcias.
O divórcio é raramente permitido; os utopianos sabem que dar a esperança de poder casar novamente com facilidade, não é o melhor meio de estreitar os laços do amor conjugal.
O adultério é punido com a mais dura escravidão.
Se os dois culpados eram casados, os esposos ultrajados têm, cada qual, o direito de repúdio respectivo, e podem casar-se entre si ou com quem bem lhes pareça. Entretanto, se o cônjuge, homem ou mulher, que sofreu a injúria, ama ainda o esposo ou esposa indigna, o casamento não é rompido, com a condição, entretanto, de que o inocente siga o culpado aonde ele foi condenado a trabalhar.
A reincidência no adultério é punida com a morte.

As penas dos outros crimes não são invariavelmente determinadas pela lei. O senado proporciona a pena conforme a enormidade do delito. Os maridos castigam suas mulheres; os pais, seus filhos; a menos que a gravidade do delito exija uma reparação pública. A pena ordinária, mesmo para os maiores crimes, é a escravidão.
Os utopianos crêem que a escravidão não é menos terrível para os celerados do que a morte, sendo, além disso, mais vantajosa para o Estado. Um homem que trabalha, afirmam, é mais útil que um cadáver; e o exemplo de um suplício perpétuo inspira um terror muito mais duradouro do que uma matança legal, que faz o culpado desaparecer num instante.
Quando os condenados escravos se revoltam, são mortos como animais ferozes e indomáveis que a cadeia e a prisão não puderam conter. Mas os que suportam pacientemente sua sorte, não perdem de todo a esperança. Vêm-se infelizes que, domados pelo tempo e pelo rigor dos sofrimentos, testemunham verdadeiro arrependimento, mostrando que o crime lhes pesa com mais força do que o castigo. Então, a prerrogativa do príncipe, ou a voz do povo, concede-lhes a liberdade.
A simples solicitação ao deboche é passível da mesma pena que o estupro cometido. Em toda matéria criminal, a tentativa bem definida é reputada igual ao facto. Os obstáculos que impedem a execução de uma má intenção não justificam aquele que a concebeu, e que, por certo, teria cometido o mal se tivesse podido.
Os bobos da Utopia fazem as delícias dos habitantes; maltratá-los é coisa vergonhosa. Assim, o prazer que se tira da loucura de outrem não é proibido. Os utopianos não confiam os bobos a esses homens tristes e severos que as palavras e as ações mais cômicas não conseguem desanuviar. Temem que tão sérias personagens não possuam a indulgência precisa para aturar e cuidar de um pobre louco que não serve para nada e que nem ao menos os consegue fazer rir, único talento com que a natureza o dotou.
É igualmente vergonhoso insultar a fealdade ou aleijados; o que reprocha a um infeliz os defeitos físicos, que não estava em si evitar, passa por insensato. Menosprezar o zelo pela beleza natural é dar prova de uma preguiça ignóbil; mas chamar em seu auxílio o artifício e o enfeite é infame impertinência.
Os nossos insulares sabem, de experiência própria, que as graças do corpo recomendam menos uma mulher ao amor de seu marido, do que a probidade dos costumes, a doçura e o respeito.
Muitos se deixam seduzir pela beleza; mas nem um só é constante e fiel, se não encontrar com a beleza, a bondade e a virtude.

Os utopianos não somente afastam o crime pelas leis penais, como incitam à virtude com honrarias e recompensas. Estátuas são erguidas nas praças públicas aos homens de génio e àqueles que prestaram à república serviços relevantes. Assim, a memória das grandes açõe perpetua-se e a glória dos antepassados é um aguilhão a estimular a conquista da posteridade e o incitamento ao bem.
Aquele que afronta um só magistrado perde toda esperança de exercer algum dia qualquer magistratura. Os utopianos vivem em família. Os magistrados não se mostram nem orgulhosos nem terríveis; são chamados pais, e, realmente, destes têm a justiça e a bondade. Recebem com simplicidade as honras que às suas funções lhes são rendidas voluntariamente; essas provas de deferência não constituem obrigação para ninguém. O próprio príncipe não se distingue da massa, nem pela púrpura nem pelo diadema, mas apenas por um feixe de trigo que traz na mão. As insígnias do pontífice reduzem-se a um círio que é levado à sua frente.
As leis são em muito pequeno número e não obstante bastam às instituições. O que os utopianos desaprovam especialmente nos outros povos é a quantidade - infinita de volumes, leis e comentários, que, apesar de tudo, não são suficientes para garantir a ordem pública. Consideram como injustiça suprema enlear os homens numa infinidade de leis, tão numerosas que se torna impossível conhecê-las todas, ou tão obscuras que é impossível compreendê-las.
Não há advogados na Utopia. Os demandistas de profissão, que se esforçam por torcer a lei, e decidir uma questão com a maior astúcia, foram dali excluídos. Os utopianos pensam que é preferível que cada um defenda sua causa e confie diretamente ao juiz o que teria a dizer a um advogado. Desta maneira há menos ambiguidade e rodeio e a verdade se descobre mais facilmente. As partes expõem seu negócio simplesmente, pois não há advogados para ensinar-lhes as mil artimanhas da chicana. O juiz examina e pesa as razões de cada um com bom senso e boa-fé; defende a ingenuidade do homem simples contra as calúnias do velhaco.
Seria bem difícil praticar semelhante justiça nos outros países, enterrados num montão de leis, tão embrulhadas e tão equivocas. De resto, todo o mundo na Utopia é doutor em direito; porque, repito-o, as leis são em muito pequeno número e a interpretação mais grosseira e mais material é admitida como a mais razoável e mais justa.
As leis são promulgadas, dizem os utopianos, com a única finalidade de que cada qual seja advertido de seus direitos e deveres.
Ora, as subtilezas de vossos contendores são acessíveis a pouca gente e esclarecem apenas um punhado de sábios; ao passo que uma lei claramente formulada, cujo sentido não é equívoco e se apresenta naturalmente ao espírito, está ao alcance de todos.
Que importa à massa, isto é, à classe mais numerosa e a que mais importa ter normas se não há leis ou que as leis estabelecidas sejam de tal maneira embrulhadas que para obter-se sua significação verdadeira se faça necessário um génio superior, ou longas discussões e longos estudos?

Infeliz do país onde a avareza e as afeições privadas sentam-se no banco do magistrado! Adeus justiça! o mais firme esteio dos Estados!

Para que servem os tratados? Não uniu a natureza o homem ao homem por laços bastante indissolúveis? Aquele que despreza esta aliança íntima e sagrada terá escrúpulo em violar um protocolo? Consolida-os nesta opinião o fato de que nas terras desse novo mundo é raro que as convenções entre príncipes sejam observadas de boa-fé.

É muito fácil descobrir matéria para chicana no texto de uma aliança; os negociadores insinuam de má-fé, nos textos, manhosas escapatórias, a fim de que o príncipe não fique jamais indissoluvelmente preso, e possa encontrar sempre uma saída secreta para seus compromissos.
E, entretanto, este mesmo ministro que se vangloria de falsificar assim as negociações, por conta do rei, seu senhor, se percebesse que semelhantes embustes, ou melhor, velhacarias, eram introduzidas num contrato entre simples particulares, este mesmo diplomata, franzindo o sobrolho do alto de sua probidade, condenaria a fraude como um sacrilégio digno da forca.

Em tese, encaram como um mal a introdução de tratados entre os povos, mesmo que fossem observados religiosamente. Este uso habitua os homens a se considerarem mutuamente inimigos, nascidos para se guerrearem sempre e para legitimamente se entredevorarem, na falta de um tratado de paz; como se não houvesse mais uma sociedade natural entre duas nações só porque uma colina ou um rio as separa. Ainda se as alianças garantissem a amizade dos confederados, mas, na realidade, nunca eliminam elas todos os pretextos de rompimento, e por conseguinte, de saque e de guerra, dada a leviandade dos diplomatas que redigem os artigos. É raro que os plenipotenciários possam abarcar todos os casos possíveis de proibições e compromissos, ou que os formulem de uma forma perfeitamente clara e precisa.
Os utopianos têm por princípio que não se deve ter por inimigo senão aquele que se torna culpado de injustiça ou violência. A comunhão na mesma natureza parece-lhes um laço mais indissolúvel do que todos os tratados. O homem, afirmam, está unido ao homem de uma maneira mais íntima e mais forte pelo coração e pela caridade do que pelas palavras e protocolos.

Os utopianos abominam a guerra como uma coisa puramente animal e que o homem, no entanto, pratica mais frequentemente do que qualquer espécie de animal feroz.
Os utopianos choram amargamente sobre os louros de uma vitória sangrenta; envergonham-se mesmo, considerando absurdo comprar as mais brilhantes vantagens ao preço do sangue humano. Para eles, o mais belo título de glória é o de ter vencido o inimigo à força de habilidade e artifício. É então quando celebram os triunfos públicos e erguem os troféu; como após uma ação heróica; é então quando se vangloriam de ter agido como homens e como heróis, uma vez que venceram unicamente pela força da razão, coisa de que não é capaz nenhum animal, exceto o homem.
(...) Tal é o poder que tem o ouro para arrastar ao crime! Também, os utopianos não poupam dinheiro nessa circunstância. Recompensam com a gratidão mais generosa aqueles que impelem aos perigos da traição; eles têm o cuidado de fazer com que a grandeza do perigo seja largamente compensada pela magnificência do prémio. É por isso que prometem aos traidores não só imensas somas em dinheiro, mas ainda a propriedade perpétua de terras de grande rendimento situadas em lugar seguro no país aliado. E cumprem fielmente a palavra. O uso de negociar os seus próprios inimigos, pondo suas cabeças a prémio, é reprovado nos outros países como uma infâmia digna unicamente de almas degradadas. Os utopianos, porém, gabam-se disso como de uma ação de alta sabedoria que termina sem combate as guerras mais terríveis. Honram-se disso como de uma ação humanitária e misericordiosa, que resgata, ao preço da morte de um punhado de culpados, a vida de vários milhares de inocentes, de um como de outro lado, destinados a morrer nos campos de batalha.
A piedade dos utopianos também se estende aos soldados de todas as bandeiras; sabem que o soldado não vai por sua própria vontade à guerra, mas é arrastado pelas ordens e pelos furores dos príncipes.

Os cidadãos são para a república da Utopia o tesouro mais caro e mais precioso.

É também comum ver-se parentes muito próximos, amigos estreitamente ligados, enquanto serviam a mesma causa, combatendo-se com o mais vivo encarniçamento, desde que a sorte os dispersou pelas fileiras das duas partes contrárias. Eles esquecem família, amizade e se matam furiosamente só pelo fato de dois soberanos inimigos pagarem algumas moedas por seu sangue e seu furor.

Desde cedo aprendem a não desdenhar tanto a vida, para esbanjá-la estouvadamente; mas também a não amá-la tanto para guardá-la com vergonhosa avareza, quando a honra exige que seja arriscada.

Os utopianos observam tão religiosamente as tréguas concluídas com o inimigo, que não as violam mesmo em caso de provocação Não devastam as terras do país conquistado; não queimam suas colheitas; vão até a impedir, tanto quanto possível, que elas sejam esmagadas sob os pés dos homens e dos cavalos, na previsão de que venham a necessitar delas um dia.
Nunca maltratam um homem sem armas, a menos que seja espião. Conservam as cidades que se rendem e não abandonam à pilhagem as que tomam de assalto. Apenas, matam os principais chefes que puserem obstáculos à rendição da praça, e condenam à escravidão o resto dos que sustentaram o sítio. Quanto à massa indiferente e pacífica, deixam-na em paz. Se sabem que um ou mais sitiados haviam aconselhado a capitulação, dão-lhes uma parte dos bens dos condenados; a outra parte é para as tropas auxiliares. Não tocam no despojo.

Utopus, decretando a liberdade religiosa, não tinha unicamente em vista a manutenção da paz outrora perturbada por combates contínuos e ódios implacáveis; pensava ainda que o próprio interesse da religião exigia tal medida. Nunca ousou ele estatuir temerariamente qualquer coisa, em matéria de fé, na incerteza de que o próprio Deus não tenha inspirado aos homens as diversas crenças no intuito de experimentar, por assim dizer, esta grande variedade de cultos. Quanto ao emprego da violência e de ameaças para constranger alguém a adotar a mesma crença que outrem, pareceu-lhe tirânico e absurdo. Previa que se todas as religiões fossem falsas, à exceção de uma, tempo viria em que, com o auxílio da doçura e da razão, a verdade se desprenderia espontaneamente, luminosa e triunfante, da noite do erro Ao contrário, quando a controvérsia se faz pelo tumulto e de armas na mão, dado que os piores homens são os mais teimosos, sucede que a melhor e mais santa das religiões acabaria sepultada sob uma multidão de vãs superstições, como uma bela seara coberta pelo mato e os espinhos.

Quem pode duvidar, com efeito, que um indivíduo que não tem outro freio senão o código penal, outra esperança que a matéria e o nada, não encontra prazer em iludir, astuciosa e secretamente, as leis de seu país, ou violá-las pela força, desde que satisfaça a sua paixão e o seu egoísmo?

Todos os utopianos, à parte pequena minoria, alimentam a convicção íntima de que uma felicidade imensa aguarda o homem além túmulo. É por isto que choram pelos doentes e jamais pelos mortos, exceptuado o caso em que o moribundo deixa a vida inquieto ou a contragosto. O temor da morte é para eles um mau augúrio; parece-lhes que este temor não existe senão nas almas sem esperança e cujas consciências intranquilas tremem diante da eternidade, como se sentissem já o aproximar do suplício. Além disso acreditam que Deus não recebe com prazer o homem que não acorre de bom grado ao seu chamado, mas é pela morte arrastado à sua presença entre rebelde e aflito.

(…)o amor e a caridade, longe de se extinguirem após a morte no coração dos eleitos, devem provavelmente crescer, como todas as outras perfeições. Por conseguinte, segundo as ideias utopianas, os mortos se misturam à sociedade dos vivos e são testemunhas de suas acções e de suas palavras. A crença na presença dos antepassados inspira a este povo uma confiança extrema nas suas ações, porque lhes assegura a proteção e o apoio de poderosos defensores; além disso, impede uma enorme quantidade de crimes ocultos.

Durante os combates, os padres, retirados a um lado, mas não muito longe dos campos de batalha, rezam de joe1hos, as mãos erguidas ao céu e paramentados com os hábitos sagrados. Imploram a paz acima de tudo, e só em segundo lugar a vitória do seu país, e, ainda assim, uma vitória que não seja sangrenta para nenhum dos dois lados. Se são os seus concidadãos os vencedores, atiram-se no mais forte da refrega e evitam a matança dos vencidos. O inimigo que deles se aproxima, os vê ou os chama, tem sua vida poupada; aquele que consegue tocar suas vestimentas sagradas, longas e flutuantes, conserva com a vida, a fortuna.

É justo que um nobre, um ourives, um usurário, um homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis ao Estado, é justo que tais indivíduos levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e ocupações frívolas, enquanto que um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um lavrador vivem uma negra miséria, mal podendo alimentar-se? E, no entanto, os últimos estão amarrados a um trabalho tão pesado e tão penoso que as bestas de carga mal suportariam; tão necessário que nenhuma sociedade poderia subsistir um ano sem ele. Na verdade, a condição de uma besta de carga parece mil vezes preferível; esta trabalha menos tempo, sua alimentação não chega a ser pior, e é mesmo mais conforme aos seus gostos. E depois, o animal não teme o futuro.
Mas qual é o destino do operário? Um trabalho infrutífero, estéril a esmagá-lo agora e a expectativa de uma velhice miserável no futuro; o seu salário diário não chega para todas as necessidades quotidianas; como, então, poderá ele aumentar sua fortuna e reservar dia a dia um pouco do supérfluo para as necessidades da velhice?
Não é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza tantos bens aos que se intitulam nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou a esses artesãos de luxo que só sabem lisonjear e servir a frívolas volúpias; quando, de outra parte, não tem nem coração nem cuidados para o lavrador, o carvoeiro, o carregador, o operário, sem os quais não existiria sociedade?
Em seu cruel egoísmo, ela abusa do vigor da juventude dessa gente para tirar dela maior proveito; e logo que fraquejam esses pobres homens, sob o peso da idade e da doença, justamente quando tudo lhes falta, é que ela esquece das suas canseiras infindas, dos seus numerosos serviços, e os recompensa deixando-os morrer a fome. E não é tudo.
Os ricos diminuem todos os dias, de uma maneira ou outra o salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis especiais.
Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república, parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta monstruosidade um direito, sancionando-o em leis. É por isto que, quando considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo, Deus me perdoe, senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios sob o rótulo e o título pomposos de república.
Os conjurados procuram por todas as manhas e meios possíveis atingir um duplo fim: Primeiramente, assegurar a posse certa e indefinida de uma fortuna mais ou menos mal adquirida;
em segundo lugar, abusar da miséria dos pobres, abusar de suas pessoas, e comprar pelo preço mais baixo suas habilidades e labores. E essas maquinações decretadas pelos ricos em nome do Estado, e, por conseguinte, em nome dos pobres também, são transformadas em leis.

Na Utopia a avareza é impossível, porque o dinheiro ali não é de uso algum, e por isso mesmo que abundante fonte de males não estancou ela? Que enorme seara de crimes não cortou pela raiz? Quem não sabe, com efeito, que as fraudes, os roubos, as rapinas, as rixas, os tumultos, as querelas, as sedições, os assassínios, as traições, os envenenamentos; quem não sabe, digo, que todos esses crimes dos quais se vinga a sociedade com suplícios permanentes, sem, entretanto, poder preveni-los, seriam suprimidos no dia em que o dinheiro desaparecesse?
Então, desapareceriam também o temor, a inquietude, os cuidados, as fadigas e as canseiras. A própria pobreza, que parece ser a única a carecer de dinheiro, diminuiria no instante mesmo, caso o dinheiro fosse completamente abolido. E veja-se esta prova evidente: Suponde que vem um ano mau e estéril, durante o qual uma horrível fome rouba muitos milhares de vidas. Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem pesquisados os celeiros dos ricos, neles se encontrariam imensas provisões de grãos. De sorte que, se essas provisões tivessem sido distribuídas em tempo, nenhum dos infelizes que morreram de fraqueza e debilidade teria sido tocado pela inclemência do céu e a avareza da terra.
Vedes pois, que, sem o dinheiro, a existência teria podido e poderá ser assegurada a todos; e que a chave de ouro, esta bem-aventurada invenção que nos devia abrir as portas da felicidade, no-las fecha impiedosamente. Os próprios ricos, não o duvido, compreendem estas verdades. Sabem que é infinitamente preferível não lhes faltar jamais o necessário a ter em abundância quantidades de coisas supérfluas; que mais vale verem-se livres de males inúmeros do que se cercarem de grandes riquezas.
Creio mesmo que de há muito teria o género humano abraçado as leis da república utopiano, seja em interesse próprio, seja em obediência às leis do Cristo, pois a sabedoria do Salvador não poderia ignorar o que há de mais útil aos homens, e sua bondade divina certamente já soube recomendar-lhes o que sabia ser bom e perfeito.

Mas o orgulho, paixão feroz, rainha e mãe de todas as pragas sociais, opõe uma resistência invencível a essa conversão dos povos. O orgulho não mede a felicidade de acordo com o bem- estar pessoal, mas de acordo com a infelicidade alheia. Nem o orgulho seria o que é se não houvesse desgraçados a insultar e a tratar como escravos, se o luxo de sua felicidade não fosse mais exaltado pelas angústias da miséria e se a ostentação de suas riquezas não torturasse mais a indigência e lhe acentuasse o seu desespero. O orgulho é uma serpente do inferno, que se introduziu no coração dos homens, que os cega com seu veneno e os afasta da senda de uma vida melhor. Este reptil agarra-se tão fortemente à carne que se torna difícil arrancá-lo.

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quarta-feira, janeiro 23, 2013 - 14:51

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