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Festa na Aldeia

Festa na Aldeia

 

      Padre Jano andava havia alguns dias numa azáfama tremenda. Aproximava-se a festa do Santo Padroeiro da aldeia e ainda havia muitos pormenores a ajustar. É verdade que encontrava no sacristão uma ajuda valiosa, mas o rapaz, apesar de industrioso e deferente, tinha as suas limitações. Impensável incumbi-lo de afazeres que exigissem um certo tacto e poder de persuasão, como era, por exemplo, a delicada missão de persuadir os festeiros a abrirem o cordão à bolsa. Importa talvez deixar aqui dito que, naquele tempo, os párocos não dispunham nem era costume servirem-se dos voluntários préstimos de orquestras, ou de músicos.
      Por razões tácticas, Padre Jano queria evitar empreender a visita que se impunha aos festeiros num dia muito próximo da festa, mas o sítio onde moravam, a cem metros um do outro, no topo de uma encosta íngreme onde não chegava carro, fizera-o ir adiando a hora e o dia. Diga-se também, em defesa do pároco e em abono da verdade que, nesse ano, a canícula era simplesmente infernal, que Padre Jano não vivia há muito tempo em sintonia com o lema “mens sana in corpore sano” e que a vida plácida da aldeia, em cumplicidade com a boa mesa, tinham tido um efeito pouco salutar sobre a sua compleição física. Mas o dia chegou em que os interesses da Igreja, que eram também os seus, e o sentido do dever suplantaram a natural e compreensível relutância.
      O táxi parou a uns cinquenta metros da casa do festeiro emigrado na Venezuela, distância que os dardos rubros do Sol, a ainda obrigatória batina e o enorme abdómen do pároco transformaram em verdadeiro gólgota. Retomado o fôlego e enxugado o suor que lhe inundava a testa, o rosto e o taurino pescoço, Padre Jano entrou para o pátio da casa parcialmente construída onde já o esperava o alvo da diligência. O argucioso pároco começou por agradecer os generosos donativos para a ornamentação das ruas, a remuneração da Banda Municipal e obras de caridade mas foi enviesando depois sub-repticiamente a conversa para as prementes carências que afligiam a paróquia. Chamou a atenção do interlocutor para o estado deplorável das paredes exteriores da igreja e da abadia, não esquecendo a necessidade de urgente restauração das estátuas de quatro Santos, entre muitas outras coisas. Ia igualmente queixar-se da asfixiante política económica do Vaticano, mas o bom senso travou-lhe a língua a tempo. Nunca fiando... Padre Jano saiu radiante, afagando o chorudo cheque na algibeira da batina, mas o sorriso que lhe iluminava a face metamorfoseou-se em esgar, quando levantou os olhos para a casa do outro festeiro, emigrado na África do Sul. Conseguiu lá chegar, após quatro longas paragens, outras tantas pitadas de rapé e dois lenços encharcados. A cena repetiu-se com o mesmo feliz desfecho. Só que os dois cheques ter-lhe-iam certamente queimado a algibeira da batina, e depois a flácida carne, se pela mente ofuscada pelo odor inebriante do satânico metal tivessem passado os dramas, sacrifícios, privações e aviltamento que por detrás dos cheques se escondiam e que ele conhecia bem.
      O pároco tinha, obviamente, razões de sobra para andar satisfeito. Porém, no Domingo, dia do Santo, o sentimento de que algo lhe escapara nos arranjos de última hora veio ensombrar-lhe a boa disposição e a paz de espírito. Por motivos que não conseguira apurar - porque o sacristão se esquivara habilmente a todas as perguntas -, ficara decidido que a Banda Municipal não acompanharia a procissão nesse ano. É certo que o trajecto era curto e que o som da música acompanharia sempre a procissão, mas quebrar uma tradição centenária nos derradeiros minutos, parecera-lhe, no mínimo, bizarro.
      O cortejo saiu da igreja à hora marcada. Padre Jano marchava atrás do Santo, logo seguido pelos dois festeiros, que se pavoneavam de gravata garrida, colarinho gomado e sorriso aurífero. À altura do adro era costume ouvirem-se os primeiros acórdãos da música que marcaria a cadência da marcha. De súbito, sons cacofónicos atingiram Padre Jano como uma chicotada, fazendo-o desviar os olhos, que mantinha fixos nas costas do Santo milagroso, para a origem da agressão. A cena que se lhe deparou foi de uma eloquência tão arrasadora quanto esclarecedora. No coreto redondo um moço gordo vacilava sob o peso do trombone, as vermelhas bochechas inchadas tal qual um peixe-porco, o vesgo saxofonista procurava atabalhoadamente os dedos e o caixa esgrimia rindo os paus, derreado na balaustrada, enquanto o Mestre mantinha um ar sisudo, sentado, sem ousar mover-se, não fossem descobrir o seu estado... Bendita decisão! Imaginar aquela orquestra ébria atrás da procissão causava-lhe calafrios. E como iriam eles agora cadenciar a marcha?
      Mandava a decência e o temor a Deus que o comércio parasse à hora da saída da procissão. As portas das mercearias e tascas fechavam-se, ou deixavam-se entreabertas, os doces dos “tabuleiros” cobriam-se com um pano e nas barracas, erguidas sobre terra batida e alinhadas junto ao mar, recolhiam-se os copos de ¼ litro e havia tréguas na disputa do melhor “americano”, já renhida apesar da hora matutina.
Os fiéis, vestidos a preceito nos seus trajes domingueiros, apinhavam-se nos dois lados do tapete de flores que ornavam as ruas. Dois aleijados, um coxo e o outro maneta, valiam-se da deficiência para assegurar um lugar na primeira fila, enquanto o fumo dos foguetes da longa e espectacular girândola, símbolo efémero da força dos bolívares e dos rands, se abatia lentamente sobre a aldeia. Após a passagem da procissão - que ia avançando aos soluços devido ao passo desacertado dos figurantes -, os dois aleijados submeteram os próprios membros a ansiosa inspecção, depois os do vizinho, à socapa. À desilusão do primeiro exame juntou-se a satisfação mórbida do segundo. Nem um nem outro tinham sido merecedores da graça divina. Talvez para o ano...
      Quando o cortejo chegou ao adro, Padre Jano respirou fundo, visivelmente aliviado. Dirigiu um olhar carregado de furor justiceiro à orquestra e teve que fazer um esforço titânico para não brandir o punho e gritar: “Malandros!”. Contudo, ao entrar na sacristia preparava já mentalmente o sermão inflamado do próximo Domingo. “Haviam de pagá-las!” Lá fora, a festa reganhava a animação. Reabriram-se as portas do comércio, destaparam-se os tabuleiros e os copos voltaram, lestos e cheios, para cima do balcão. De mãos dadas, crianças formavam rodas, tentando em vão seguir o compasso da música. Os meninos bamboleavam-se desajeitados e as meninas turbilhonavam as saias de balão, sob o olhar maldosamente crítico e ciumento de algumas trintonas solteiras.
      No ar pairava ainda o cheiro a incenso e o sangue das pétalas manchava as ruas.

Asdrúbal Vieira
 

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quarta-feira, junho 8, 2011 - 09:37

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