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O carroceiro.

O CARROCEIRO

Em uma tarde feia, chuvosa, fria e desoladora, Miguel, o carroceiro, puxando um peso de quase cem quilos, mas suavizado pelas rodas de borracha, andava na contramão de uma rua movimentada na zona oeste. Rua nem grande, nem pequena, ele valentemente procurava se esquivar dos muitos automóveis que iam a sua direção. Muitos o xingavam, outros faziam gestos obscenos com as mãos, mas ele ignorava e seguia em frente. Sua filha de quatro anos, Belinha, estava com infecção na urina e necessitava um antibiótico que não estava disponível nos postos do serviço público de saúde. Não era um medicamento exatamente caro, mas para ele, que nem de amigos havia conseguido um dinheirinho emprestado, era. Naquela manhã, saiu da casa, em uma favela, logo depois de uma ponte enorme, disposto a conseguir o dinheiro para o antibiótico. Não era essa a primeira, nem a segunda vez que Belinha ficava doente. Criança mirrada, frágil, normalmente mal alimentada e sempre palidazinha, despertava cuidados constantes, que nem sempre Maria do Carmo, a mãe, podia prestar, porque bebia quase todos os dias, e muito. O outro filho, Marinho, já crescidinho, passava os dias nas ruas pedindo dinheiro após limpar, sem qualquer permissão, os vidros dos automóveis parados nos semáforos. Aos dez anos Marinho já bebia e já havia experimentado duas pedrinhas de “crack”, mas, felizmente, não havia pegado gosto pela droga. Miguel, que tinha pouco mais de trinta anos, se esforçava bastante para conseguir trabalho, mas, com uma perna atrofiada, sequela de poliomielite adquirida na infância, quando morava no interior de um estado nordestino e que nem sequer foi notada pelos pais, nada conseguia. Certa vez tentou roubar um pão, mas foi logo pego porque não conseguia correr com a perna atrofiada. Sorte que o dono da padaria se apiedou e o deixou ir, sem o pão, é claro. Pobre Miguel, que nem roubar podia, e tinha que se contentar com “bicos” para levar pão e leite para casa. Às vezes, esmolando, conseguia algum para matar a sua fome e a da família, mas ele achava aquilo de tal indignidade que só pedia dinheiro em último caso. O compadre Mané deu a ele uma velha carroça que Miguel usava para catar papelão, jornais velhos e garrafas, vendendo em alguns pontos para posterior reciclagem. Sua vida até melhorou um pouco depois da carroça e, frequentemente, ele conseguia um dinheirinho para levar comida para casa. Agora, necessitando de dinheiro para o medicamento de Belinha, Miguel levantara-se cedinho naquele dia, para ir aos prédios próximos da ponte, de classe média, onde havia feito amizade com um zelador para conseguir jornais velhos, papelão e algumas garrafas. Quando olhava as garrafas, imaginava quem poderia tê-las esvaziado; um conhaque, um uísque ali, uma vodca lá e uma cidra ainda com resto do líquido na base da garrafa. Ah, se pudesse comprar uma delas de vez em quando! Resolveu guardar a garrafa, que achou tão bonita. Esta, ele não venderia. Eventualmente Miguel entornava duas ou três canequinhas com pinga de má qualidade que o compadre Mané lhe dava. Era tudo. Nada de embriaguez, ressaca ou dores de estômago. Já Maria do Carmo... Um dia ela tomou sozinha, quase um litro de pinga, não continuando por haver desmaiado e passado mal. Mané veio, com a “patroa” e deram à pobre mulher várias colheres de mel com água. Que luta! Que sofrimento! Só por Deus, mesmo! Era o que Miguel pensava da vida. Mas uma coisa era certa: o dinheiro da menina, ele daria um jeito de arranjar. Vendeu os jornais, as garrafas e o papelão por um preço quase igual ao do medicamento, mas o zelador emprestou o resto, meio de má vontade, e Miguel ficou de devolver em dois ou três dias. Trocou todo o dinheiro que tinha por uma nota de cinquenta. A tarde chegou e a chuva começou a cair, pegando Miguel e a carroça na contramão daquela rua.

De repente, um velho carro de quatro portas veio na direção de Miguel e não desviou. Bateu em cheio com o para-choque esquerdo na roda esquerda da carroça, que tombou na hora. O motorista desceu e, aos brados, ofendeu Miguel até a sua quinta geração. O pobre carroceiro ouviu tudo em silêncio, sem sequer fazer um gesto ao motorista, que continuou sua verborragia desaforada. Então, o motorista notou, no bolso da camisa velha de Miguel, a nota de cinquenta e meteu os dedos para apanhá-la, a título de indenização. Isso, o carroceiro não poderia permitir. Defenderia a nota até o fim, e o homem não a levaria de modo algum. Quando o motorista, mais forte, conseguiu pegar a nota, Miguel, instintivamente se voltou e, no canto esquerdo da carroça apanhou a garrafa de cidra que havia guardado e, com força, bateu a garrafa na cabeça do desaforado. O golpe fora duro e o homem caiu, com a cabeça sangrando profusamente. Logo correram, os que haviam parado para assistir a discussão. O motorista, sangrando, pedia socorro e Miguel, tremendo mais que um parkinssoniano, pedia que o deixassem ir, para levar o remédio à filha. Na verdade, ele chegou a implorar, mas em vão. Logo chegou a viatura policial, pouco antes da ambulância de resgate para o ferido. Miguel foi preso e acusado de tentativa de homicídio não premeditado. Desesperado pediu que o levassem para casa antes, para levar o antibiótico que ele nem sequer comprara. Os policiais riram e seguiram até o DP mais próximo, onde entregaram o “elemento” à carceragem. Pior é quem nem telefona havia; não na delegacia, mas em casa, ou na casa do compadre ; assim, nem avisar ele poderia. Miguel estava com a mão direita bem fechada, segurando a nota. Assim que o outro preso notou o que era, de modo ameaçador a tomou, enquanto Miguel pedia que a devolvesse. O outro, disse que se quisesse de volta o dinheiro, que viesse pegar. Miguel chorou, implorou, e nada. Nem o dinheirinho ele tinha agora. De súbito, em um gesto de exceção, agarrou com força a garganta do homem e apertou, apertou, apertou, até ver o rosto do colega de cela ficar roxo. Nisto, três carcereiros abriram a porta e se jogaram em cima do carroceiro. Miguel apanhou tanto que teve que ser removido para o hospital, a quatro quadras dalí. Teve o braço esquerdo quebrado, três dentes da frente e enormes hematomas no rosto e nas costas. Para o mesmo hospital foi levado o agredido que saiu duas horas depois, com o pescoço também roxo, mas bem.

No dia seguinte, um jornal daqueles bem sanguinários, que são chamados de tabloides, publicou, sem nenhum alarde, em uma página central, em letras pequenas, uma nota que não foi lida por quase ninguém, que dizia: “Carroceiro aleijado enlouquece, mata um na rua e esgana outro na cadeia”.

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domingo, novembro 8, 2009 - 20:28

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PauloCandido

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Comentários

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Re: O carroceiro.

Gostei.

Parabéns pela bela prosa.

Um abraço,
REF

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