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OS GÉMEOS - 10
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Na véspera, o camarada Ryswick apontara-lhe o homem que ia a entrar na pastelaria e, como se tivesse sido uma casualidade, sem explicações, que a ela também não interessariam para nada em face do ciciar conspirador de James, pedira-lhe: “— Preciso de um favor teu. Amanhã, entre as seis e dez e as seis e vinte e cinco, aguenta-me aquele tipo. Costuma ir acolá lanchar a essa hora.”
Depois James fora-se logo embora, continuando ensimesmado com algo que devia ser importante para ele.
Este companheiro era um dos puros... Lutador, inteligente, íntegro... E muito giro. Já duas ocasiões tinham sido amantes, por uns dias, vivendo o amor como a ela agradava, enobrecido, livre e servido pela força da comunhão de ideais. A poucos ela concedia tal privilégio, e detestava ser pressionada para disponibilizar o seu corpo, que sabia ser mimoso e quente, à concupiscência dos que eram bem capazes de colocar uma noite na cama dela acima dos interesses da acção ideológica. Esses, não compreendiam que o prazer que ela tinha para oferecer era voluntário, mas lhe saía primeiro da alma e só depois da carne. Agora já conseguia não se aborrecer demasiado com tais atitudes, mesmo quando lhe vinham envenenadas de chantagem moral. Aprendera a proteger-se com cinismo, dessas insidiosas arremetidas... Mas ainda se desgostava.
Rodou o banco, ficando mais uma vez postada de frente para M. Marchinot, com a escandalosa nudez das suas pernas a brotar de uma nesga de plissados da mini-saia, e a fazer o homem atrever-se a mostrar uma respiração entrecortada.
— “Antropófago congénito!” — Classificou-o ela com íntima severidade, enquanto levava as mãos a cobrir os joelhos, acariciando-os, provocadora. “— Se o camarada Ryswick quisesse, assaltávamos o teu Banco.” — Reflectiu, mais seriamente, a armar um último sorriso prometedor, apoiando-se, abrasadora, no braço de Marchinot para descer do balcão da pastelaria, e a despedir-se: “— Foi um prazer, M. Marchinot! Até depois.”, deixando-o sem fala, a limpar com o lenço de bolso o perlado de transpiração que ela lhe fizera surgir na testa, e sem coragem para se voltar e vê-la sair, outra vez altiva, alegre, o espírito limpo da trapaceirice com o seu encanto pessoal.
Dois anos e tal de clandestinidade longínqua, foi quanto lhe valeu a audácia prosélita de ter defraudado com êxito o INTERCONTINENTAL.
Às vezes recordava-se do pai e pensava que o seu fado de agora também era de herança, pois de certa maneira estava a seguir-lhe as pisadas no seu irrequieto calcorrear mundo, muito embora ao serviço de causa que a vivência paterna haveria de exprobar.
De momento residia de passagem em Paris. Até quando?
Levantou a cabeça quando a ouviu mencionar o Alzette. Estavam na mesa mesmo ao lado dele, na esplanada do Café de la Paix, a conversarem muito serenos, talvez como ele a iludir a manhã cinzenta e sossegada de Domingo. M. Marchinot e a empregada da limpeza que levara com aquele seu bruto murro!
— De facto, gosto mais do chalézinho que vimos no Alzette, querido.
— Eu também. Achas que ainda iremos a tempo de o comprar, Céline?
— É certo que precisa de umas boas obras. Para ficar em condições ainda vamos gastar bastante dinheiro, mas é muito bonito.
James ficara imobilizado pela surpresa, a prudência a aconselhar-lhe que se retirasse dali sem chamar a atenção deles, a memória a reavivar-lhe todos os pormenores do corpo de Céline — era então Céline que ela se chamava! — e da intromissão de Céline no seu golpe de alta ladroeira, e o arrojo a desejar que ela o encarasse e o reconhecesse. A bata esbambeada, as sandálias de couro entrançado, o cabelo liso e cor de palha com uma popa de repas a cair-lhe na fronte, as maltratadas unhas das mãos, as feições suaves do rosto, a mornidão dos braços flácidos ao amarrá-la, as coxas ao léu, o rolar-lhe o corpo inconsciente, os lábios macios enconchados na sua mão ao segurar-lhe a cabeça para a amordaçar, o torcer dos panos de limpeza alaranjados, um brinco de latão... E aquele olhar implorante que ficara suspenso da ausente indulgência dele.
Não seria caso impossível, mas era pouco provável. — Usava agora o cabelo curtinho e um bigode natural e bem aparado, embora não tivesse mudado muito o estilo de se vestir — E contudo ela reconheceu-o! James soube isso com a certeza da premonição, quando instantes volvidos os seus olhares se cruzaram, como se tivessem sido alertados para o momento por estranha coincidência, que os reunira a ambos no Café de la Paix para se reencontrarem.
Não o reconhecera no primeiro olhar, ainda divagante e enevoado como a manhã, desviando-o, tranquila, até que a imagem de James — talvez apenas sugerida pela interrogação e pela denúncia nos olhos dele, mergulhado nas recordações dela — deflagrara no seu subconsciente, com o ímpeto daquele soco que a prostrara, obrigando-a a baixar a cabeça precipitadamente, para logo o espreitar de novo, aquele mesmo olhar infantil e amedrontado, arregalado, a esforçar-se por não se trair, a recusar-se a acreditar que era ele, a refugiar-se numa desejada confusão por enganadora semelhança física, mas os olhos dele!... E a readquirir a presença de espírito rindo-se para Marchinot distraído e alheio ao tremor que arrepiou Céline quando ela apontou o céu nublado e declarou, franzindo as sobrancelhas:
— Ainda vai chover! Talvez fosse melhor irmos embora...
— En... O hotel é pertinho... Céline, goza este raro momento de quietude em Paris. À semana é um caos.
— Perdão... Queiram desculpar-me! — dirigiu-se-lhes James, tentando absolver-se da suposta falta de habilidade com que ao abrir as inúmeras páginas do diário Le Luxembourgois largara uma folha para tombar debaixo da mesa, aos pés de Marchinot. — Oh! Por favor, não se incomode. — insistiu ele, agradecendo a solicitude com que o homem se baixou e pescou a folha do hebdomadário, fazendo menção de a dobrar e entregar-lha mas, apercebendo-se da coincidência, exclamar amistoso:
— Le Luxembourgois! Permite-me que veja as cotações da Bolsa? O senhor é Luxemburguês?!...
— Com prazer. Faça favor. Ryswick, James... Nascido na Gutland mas residente no exterior há vários anos. — retorquiu-lhe James, manifestando simpatia, soerguendo-se mesmo da mesa com deferência, a estender a mão para um cumprimento entusiástico, a proibir-se de reparar, nem pelo canto do olho, na imprevisível reacção de Céline.
— Marchinot, Jacques de Fleury... e Madame Marchinot, Céline... Muito prazer. — correspondeu Marchinot, enquanto Céline se remexia na cadeira, como se por delicadeza devesse respeitar a apresentação mas alguma natural timidez a inibisse de se mostrar expansiva — O meu amigo vive aqui em Paris? Não?
— De vez em quando... Por aqui, por ali... Repórter. Quase sempre impelido pelos acontecimentos do mundo.
— Ah! Um cidadão do mundo!... Eu também vivo um pouco assim. Esta ocasião Céline acompanhou-me. Mas ela não aprecia viajar.
— Acho que bem podias ausentar-te menos vezes, querido. — Foi a primeira intervenção que ela teve na conversa. James contemplou-a então, exibindo um sorriso compreensivo, e Céline deixou-o fixar-lhe o olhar por alguns momentos. Soberana na sua tranquilidade, sem aparente sombra de suspeição. Teria optado por se convencer de que o confundira com alguém? Assim parecia. Não! Ela sabia quem ele era!... Interessante é que lhe não notava indício de receio, ou de ostensiva frieza, ou de indignação! — Sabes que é penoso passarmos muito tempo distantes um do outro.
— Estou na inspecção de vendas de uma multinacional de electrónica. É como você diz, hoje aqui, amanhã por ali...
— A verdade é que também gostas dessa vida errante. — arreliou-o Céline, quase sorridente.
— Oh... não tanto. É uma questão de hábito. E é um bom trabalho... interessante, boa remuneração, viagens frequentes por esta Europa em mutação constante.
Estava-se ali amenamente e a conversa foi-se prolongando. James logo soube que queria aquela mulher. Nunca a esquecera! Como se ao bater-lhe tivesse contraído uma dívida de emoção... impossível de saldar de outro modo se não tendo Céline consigo para se lhe dedicar, resgatando a impunidade com que ela, por profundo sentido humano — aquele olhar fora isso, um preito de aceitação misturado com um rogo de benevolência!... mensagem inocente, de uma mulher jovem e bonita, tão tímida como ele — e não por abulia, lhe consentira a audácia, e a glória oculta, de um roubo de 200 milhões.
Marchinot tinha uma personalidade dinâmica e um feitio sociável, graças aos quais alcançara a função de gerente da agência bancária e a exercera com sucesso. O episódio do assalto desprestigiara-o mas não lhe afectara a autoconfiança.
Afável, sentia-se nele um toque de ingenuidade que cativava as pessoas. Era bom em relações públicas... Via-se isso na maneira como estabelecera e fora alimentando o relacionamento entre eles.
À hora de almoço despediram-se mas já ficara combinado repasto à tardinha no hotel, seguido de uma diversão a escolher. — Talvez o Crazy Horse... — alvitrou Marchinot, com uma piscadela de olho para James. Por qualquer razão queria levar a mulher a apreciar um espectáculo atrevido mas preferia ir acompanhado. Céline desejava o mesmo, porque aquiesceu sem hesitação. E ele, James, pensou que ficaria desiludido se tal oportunidade não se tivesse proporcionado devido também à sua própria contribuição para a suscitar. Ganhara mais umas horas junto de Céline.
Noite lamentável, quase para esquecer! Os Marchinot atrasaram-se, a aperaltarem-se. O jantar decorrera sob um pouco de euforia de Jacques, satisfeito com as últimas notícias da Bolsa de Tóquio e a explanar a sua técnica apurada de pequeno investidor e especulador no mercado de valores mobiliários — o que fez James beber em silêncio uma golfada de capitalismo, por mercê a Céline. Atraso em cima de atraso encontraram a lotação do Crazy Horse esgotada, e depois também a das Folies. Desistiram. Nem valeria a pena tentarem o Lido. Esfriara-se-lhes o entusiasmo, e a imaginação, e a uma qualquer sessão de cinema preferiram um passeio ao longo do Sena, a subirem os Champs Elisés e depois, de súbito cansados e desolados, regressaram de táxi e terminaram deliciados a sorver cognac na esplanada de um Bar, mais uma vez vogando na conversa solta de Jacques — “de Fleury!” brincava James de quando em quando, simulando alguma presunção, ao que Marchinot achava imensa piada — e entre olhares e fugas de olhares James-Céline, e Céline-James, discretos mas impulsivos e sobretudo em mútua interrogação, como se cada um procurasse adivinhar os pensamentos do outro, sem sucesso.
Quase para esquecer... Mas apenas quase, pois no fim de tudo, James foi recompensado:
— Há quem diga que não existe nem um começo definível nem um fim claro para todas as coisas — filosofava Marchinot — mas eu não sou bem dessa opinião. Somos é demasiado ignorantes para penetrar, captar a essência das coisas e expressá-la de alguma forma definitiva. O Universo está em expansão?... julga-se... porque ainda não temos saber para lhe descortinar os limites... Se não for por este caminho, posso perguntar-me “o que é uma ilusão?”... Chego a um semáforo e acende-se o vermelho... mas é o mesmo vermelho que você observa?... Caro Ryswick, está a ver onde isso ia dar?
— Ao Alzette não, com certeza. Gostaria de o rever...
— É fácil. Céline vai embora amanhã. Aproveite a condução...
— Se eu pudesse meter uma semanita de férias.
— Não pode se não quiser. Os patrões ditadores já acabaram. Quando muito você vai e depois diz que esteve doente. Deixe cá uma mensagem, que eu entrego-a por si no emprego.
— Nem Madame Céline estaria para me aturar...
— Parto às nove horas. — Foi a resposta dela, sem secura, e também sem incitamento.
— Gostaria... Bem gostaria... Vou-me deitar. Se já não nos virmos, desejo-lhe que faça uma excelente viagem. Foi muito bom conhecê-la, Céline. Boa-noite, Marchinot.
— Durma bem, Ryswick. E resolva-se... Ela sai às nove.
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia
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