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OS GÉMEOS - 13

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(continuação)

 

A lenta entrada do jipe branco, faiscante de Sol e descapotado, e com o motor a roncar, arrastando a muito custo um atrelado repleto de malas e volumosos embrulhos, ocasionou em Lameira Grande algazarra entre a miudagem que, célere, espalhou a notícia do regresso de William.

O abraço caloroso de sô Jão recebeu-o como a um filho pródigo: — Eu sabia... Você gostou disto aqui... — afirmava ele, convicto, a piscar o olho a William.

— Pois, amigo, voltei para ficar algum tempo. — reiterou William, em português cheio de sotaque, mas irrepreensível, porque também esse pormenor não descurara, tendo entretanto melhorando muito os seus conhecimentos da língua. — Adquiri uma pequena propriedade aqui perto e venho morar convosco. Farei por ser um bom vizinho, sô Jão.

— Ah foi você, William! O Abílio bem dizia que quem comprara aquilo lá para baixo tinha sido um estrangeiro cheio de massa. Não sei se foi grande negócio, porque aquilo é um lodaçal enorme, tem água a mais, mas... pelo menos é bonito. Então, quer dizer que vou passar a ter aqui um cliente importante!

Tão importante, que o presidente da junta da freguesia mais próxima deslocou-se a Lameira Grande para ter a honra de jantar com ele, e colocar-se à disposição do “Sr. Dr. William”, e também para satisfazer a sua curiosidade e badalar argumentos políticos — abertura ao investimento europeu — para a sua campanha para o desenvolvimento de uma indústria local.

Tanta simpatia tornou-se algo inconveniente: pela popularidade dele, Louise era também alvo de muita solicitude, e, como ele não tinha o cuidado de a apresentar com formalidade a cada qual que ia aparecendo para o cumprimentar, num instante se gerou a conclusão que a deu como sua esposa em vez de secretária, conclusão que, por muito cómoda ao espírito dos Lameirenses, perdurou por muito tempo. William apercebeu-se da confusão, mas, achando-lhe piada, foi deixando as coisas assim; como consequência, suspeitou depois, nessa noite já não foi tão fácil obter espontânea oferta de alojamento provisório, pois já não suscitava o interesse inerente a um rapaz solteiro. A instalação dos contentores adaptados a habitação só teria lugar no dia seguinte, necessitando eles entretanto de pernoitar ali, e o resultado é que foram convidados a ficarem num quarto em casa dos Silva.

Ante o olhar arredondado de circunspecção que Louise esboçou — sem dúvida tendo compreendido a circunstância — e a cómica careta de aquiescência com que a seguir reagiu, William entendeu que não haveria mal de maior em dormirem no mesmo aposento, tão bem se comportariam eles então como depois. Que seria feito de Zirá? Emigrara também, ou algum embaraço não a deixara aparecer-lhe por enquanto?

Nessa noite dormiu um sono de justo, apesar do soalho de tábuas ser bem duro, mas em contrapartida, refrescante, porque, por talvez exagerada consideração ao recato da secretária, se não despiu, nem sequer descalçando os sapatos. Cerrada a porta do quartito, sorriu-se com um pouco de constrangimento, imitou o mesmo arredondado olhar de circunspecção com que ela antes havia encarado a perspectiva de intimidade, apontou-lhe o leito com um gesto de cortesia, a encolher os ombros significando paciência, e foi sentar-se no chão por baixo da janela, aos pés da cama, ficando a um nível de visão em que, ela deitada, lhe seria praticamente impossível observá-la. Fechou os olhos, a pensar que seria assim capaz de dar-lhe uma boa prova de que poderia confiar nele, e depois de se dizer “— Dorme, que estás cansado...” pegou no sono quase de imediato, só despertando de manhãzinha, com um abanão afável de Louise, já pronta, ajoelhada ao lado dele, sorrindo-se-lhe com carinhosa ironia.

Não soube que ela tinha dormido muito pouco, tão nua como viera ao mundo, afligida com o calor abafado do pequeno quarto e em conflito com a sua consciência samaritana, ou com as reminiscências libertárias da sua índole sexual, atraída por ele mas em absoluto decidida a ser só e apenas o que ele desejasse, como se investida, por voluntária designação própria, em providencial missão de salvaguardar e proteger a cientista espécie em extinção. Não são as secretárias assim?

Quatro noites destas, enquanto durou a tarefa de erguerem o seu acampamento na área enxuta que bordejava de ambos os lados o riacho ao atravessar a lezíria, bem longe da amistosa curiosidade de Lameira Grande, deram sólida definição ao relacionamento deles, para anos de trato fácil e quase íntimo mas sempre no “respeito da sua personalidade e privacidade” como ela estipulara. Na última dessas noites dormidas no mesmo quarto em casa dos Silvas já ela sossegara consigo própria, sabendo que em amor nunca seriam um do outro William nunca iria ultrapassar a barreira psicológica que estabelecera no que à intimidade dela dissesse respeito, embora na profundidade de alguns olhares com que ele a seguia ocasionalmente fosse claro, visível, que, mesmo inibido, ele admitia que ela lhe seria muito agradável ao tato e à libido. A ela, de certa maneira, comprazia o tabu que, não tendo como frustrante para a sua identidade muito dotada de feminilidade, lhe atribuía um lugar à parte no restrito círculo afectivo de William.

Fora do horário de trabalho — convencionado por preocupação dele, e que ela não respeitava por dedicação sua à lide caseira, e por seu cuidado na criação aproximativa do lar que a ambos proporcionava um razoável sistema de apoio de vida, no isolamento rural em que se ia desenrolando a sua pachorrenta existência — nunca abdicou da sua determinação de ser ela a marcar os limites da sua liberdade, sabendo que ele os respeitaria: sem se mostrar provocadora, quando lhe apetecia, praticava nudismo porta adentro do contentor que era a sua residência, ou nos seus passeios pela praíta nos momentos em que o sentia absorvido nos seus estudos e trabalhos de laboratório; tomava com ele banhos no rio, usando mera roupa interior, e de quando em quando vestia-se com travessura e conseguia convencê-lo a irem divertir-se, cada um por si, em franca liberdade, com pontual hora de reencontro e regresso às sete da manhã, nas discotecas de qualquer cidade afastada de Lameira Grande, onde por todas as razões ela não queria satisfazer os seus regulares ardores da carne, mas onde ele não raro ficava a cumprimentar sô  Jão e a gente e a “visitar” a Zirá e a cunhada, ora uma ora outra, fazendo-se elas singelamente desentendidas da sua mútua concupiscência sob o mesmo tecto, encobrindo-se até, cúmplices na sua derriçada e alternada folia amorosa com ele.

Talvez que quem atentasse em James e Louise, e informado-se na voz popular de Lameira Grande, tivesse dificuldade em distinguir naquele par, agora um casal moderno, logo patrão e secretária-governanta, ou depois irmãos harmoniosos, mas o relacionamento deles era essa mistura, e realizava-os com plenitude.

Produzir resultados conclusivos no âmbito do Projecto Arroz Gigante levaria anos, e eles sabiam isso. Era um processo longo, de alcance imprevisível, o que não estava em causa, e que necessitava de investigação paciente, de condições de estabilidade anímica, em suma, de tranquilidade favorável a um exercício bem sucedido da capacidade imaginativa e da inteligência de William. Louise fora aliciada, embora sob contrato, para propiciar o ambiente de êxito para o Projecto. Aceitara, objectivamente como oportunidade ideal para assinalar decisiva prescrição do seu passado, sem conhecer William — cometera mesmo o equívoco de em antecipação o ter avaliado por semelhança com James — mas com seriedade, imbuída no espírito da tarefa, prática e amadurecida para a eficácia, comprometida com o seu julgamento interpretativo de estar “na senda da descoberta científica”, embora intransigente com o seu próprio conceito de independência.

 

 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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segunda-feira, abril 15, 2013 - 11:06

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Nuno Lago

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