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OS GÉMEOS - 25

.

 

(continuação)

 

Não permitiu que Zirá dissesse mais alguma coisa. No estado de insegura razão em que ele estava, e àquela hora, parecia-lhe absurdo ter outra atitude que não fosse apenas a de a aquietar e descansar ele próprio até poder pensar com um mínimo de clareza.

Fez Zirá absorver uma dose forte de calmante, obrigando-a a estar quieta e calada. Viu-a tombar no sono, e teve a razoável lucidez de recolher e guardar uma a uma as peças de roupa que Hana e Louise, pelo simples prazer de se sentirem desinibidas, antes tinham jogado ao ar espalhando-as ao acaso.

Em seguida deitou-se ao lado de Zirá e dispôs-se ele também a adormecer.

Apagou a luz, mas, por estranha independência do ato dele, a lâmpada voltou imediatamente a acender-se. E logo a seguir Louise e Hana estavam debruçadas sobre ele e certificando-se que o tinham desperto. Uma puxava-o por um braço, procurando arrastá-lo para fora da cama, a outra estendia-lhe uns calções.

Louise e Hana já se tinham vestido e penteado, e num primeiro instante ele ainda admitiu que afinal sempre chegara a adormecer e elas tinham vindo lembrar-lhe que eram horas de se levantar.

Obedeceu-lhes, e elas levaram-no para o alojamento de Hana. Estava a sentir-se cada vez mais cansado e tonto mas não protestava. Sentaram-no, amparando-o como se ele estivesse prestes a desfalecer, e quando de súbito deu um salto instintivo no lugar, sentindo-se manietado por elas, estava a pensar que aquele desvelo das suas assistentes era caricato e mais incómodo do que agradável... O intenso odor a amoníaco, ministrado por Hana, trouxe-o para perto de mais da realidade.

— William, Zirá estava a dizer-lhe que o Zeca morreu. — relembrou-lhe Hana.

— Morreu, não!... Foi morto... segundo o que eu percebi. — emendou Louise, por sua vez, baixando o tom de voz e dirigindo-se à porta dos aposentos para a fechar.

— Não sei nada. Zirá disse isso, mas não sei mais nada. — afirmou ele, com um olhar estúpido, como se estivesse a defender-se de qualquer acusação de culpabilidade.

— Pois. Mas era conveniente saber... — retorquiu Louise, de cenho franzido, por instantes a observar de viés ora a ele ora a Hana. — Aquele homem, o Zeca, era um poço de sarilhos e nunca se sabe o que é que ele arranjou para acabar...

— Mas eu não tenho nada com isso... Nem me interessa! A não ser por simpatia para com a mulher e a irmã dele... — tentava William dar plausibilidade ao seu pretendido alheamento.

— Pois. Claro! — apoiava Hana.

— Eu também simpatizo bastante com elas. É melhor ir-me embora e ver o que se passou. Vou levá-la comigo. — decidiu Louise.

— Isso é que não. Ela agora dorme como uma pedra. Deixem-na ficar aí. De manhã... eu...

— Nem pensar! — afirmou Louise, sem lhe permitir terminar a frase. — Hana ajuda-me, por favor. Deitamo-la no jipe e vai mesmo assim. É indispensável. Eu tratarei dela com cuidado. Vocês vão dormir, que bem precisam. Aguardem um telefonema meu. Vamos... Depressa!

Voltaram aos aposentos de William e lá carregaram Zirá, grogue como estava, de modo a Louise a transportar embrulhada numa manta e encolhida no banco traseiro do jipe.

Como é que o idiota do Zeca, que supostamente deveria estar preso e bem longe dali, se lembrara logo de escolher aquela noite... Dizia William para consigo quando ao sentar-se à mesa de trabalho, perdido o sono por completo, notou por acaso que as pastas de arquivo na sua estante pessoal tinham sem dúvida sido remexidas. A ordem alfabética, nunca antes desrespeitada, sofrera uma ignorante baralhação e mesmo o seu escrupuloso alinhamento de lombadas havia sido sujeito a desarrumo. Julgou entender! Teria de pedir a Zirá que deixasse lá o pó assentar onde quisesse, mas que ela não se imiscuísse com a organização dos seus dossiers.

Ouviu bater ao de leve na porta da entrada, ocorrência rara porque de dia ela estava sempre entreaberta e de noite nunca havia visitas. Era Hana.

— Posso entrar, William? Ainda tem a luz acesa... Calculei que, como eu, não lhe apeteça dormir.

— Que noite! Obrigada pela sua companhia... agora vai ser difícil pegarmos no sono. Não fique preocupada. Que aborrecido final teve o seu aniversário!

— Acontece. Até foi uma noite festejada em grande...

Apesar das palavras tranquilas, só a palidez acentuada do rosto de Hana sugeria mal-estar. Era uma mulher estranha... — cogitou William — mesmo em momentos críticos, dominava tão bem a exteriorização da sua identidade anímica, que era veleidade procurar definir o que se poderia passar na sua mente. O facto era que ele também muito poucas vezes a olhara com atenção. Eventualmente, o poderoso espírito de observação de Hana funcionava como um sentido extra, evitando que ela desguarnecesse a sua personalidade. E também sabia usar a simpatia que o ligava a ela, eliminando quaisquer indiscretas apreciações que ele intentasse. Naquela noite, e até ocorrer o imprevisto episódio com Zirá, interrogara-se várias vezes sobre quão representadas ou espontâneas eram as suas atitudes, por tão afastadas do comportamento reservado que a caracterizava, e de todas as ocasiões nada pudera concluir, porque alguma frase ou algum gesto inoportuno havia desviado a sua curiosidade.

— De facto! Zirá ficou tão atónita de ver-nos animadíssimos, que até desmaiou...

— Não me importa o juízo que ela possa fazer. Quer dizer... Essa sua expressão “animadíssimos” é que tem um significado interessante, para quem também estava envolvido no divertimento...

— Fiquei convencido de que Zirá atribuiu a cena, tão surrealista, a um delírio do seu estado de atribulação. E, do meu ponto de vista, não quis exprimir censura. Como o poderia, se eu próprio participava divertido em tão agradável confraternização?

— Preconceito... não é assim que se costuma chamar à ambiguidade com que as pessoas, em qualquer parte do mundo, se defendem ou acusam umas às outras, divididas quanto ao uso livre do seu corpo?

— Isso é uma questão de desenvolvimento cultural.

— Não! Acho que vai muito para além disso.

— Como assim?

— Verifico que fiz bem em vir conversar consigo. Está a tentar puxar-me pela língua! O que é que gostaria de saber acerca de mim, William?

— Tudo, é claro... Você é interessante e tem raízes incomuns, para mim. Por exemplo... fala-me de preconceito, e surpreende-me! Neste caso, é preconceito contra, ou preconceito pró?

— Nem contra nem pró. O meu corpo é apenas um invólucro... é uma entidade fisiológica... e deve servir para o que melhor entender em cada momento e de acordo com as minhas convicções intelectuais. Essa pergunta nem parece de si!... Você pensa em absoluto da mesma maneira que eu.

— Sendo assim, ficamos sem tema para conversa. E eu continuo sem a conhecer porque, a respeito de convicções, acho que seria abusivo interrogá-la.

— Aprecio muito essa delicadeza. De qualquer modo vou deixá-lo perplexo na mesma... Nasci de gente devota de uma fé ancestral, e fiquei, por isso, como é natural, marcada pelas suas abstracções, mas, por outro lado, fui criada numa ideologia agnóstica — da qual ainda só abdiquei de alguns aspectos, note  — que cuida do corpo, ou embalagem humana, com preocupação, atribuindo-lhe sabiamente um papel instrumental. Se não tratarmos do corpo, como é que poderemos ser úteis à sociedade humana?

— E quem determina qual a nossa utilidade? Porventura, será Gaia?

— Espantoso! Você a falar-me de Gaia! Não imagino como poderá conciliar essa teoria com os seus trabalhos.

— Ah! Os meus trabalhos!... Para que conste, as minhas investigações são independentes de qualquer filosofia... Mas você acaba de me suscitar a ideia de que eles encaixam com razoabilidade numa certa lógica da natureza.

— Acho que vou começar a despir-me outra vez... Talvez que assim você volte à realidade, percebendo que antes e depois do sexo genético há mais alguma coisa...

— Claro, esteja à vontade... a Zirá hoje não acorda tão cedo, a Louise e ela já devem estar longe, e você sabe bem que eu gosto do seu corpo... essa sua esbelta e deliciosa entidade fisiológica... Mas já que estimulou a minha verve — desvendando-me a curiosidade com que discretamente tem seguido as minhas experiências, reflectiu William — e até teve a amabilidade de não dizer que me entretenho com uma utopia, vou espicaçá-la com algumas afirmações que lhe dêem matéria para especulação.

— Diga o que disser, temo, e perdoe-me esse atrevimento, que você não tenha ainda uma visão, sequer longínqua, das consequências que um casual sucesso das suas buscas científicas poderia desencadear. Ah! Já me esquecia. Tenho uma pequena notícia para lhe dar... Enquanto estivemos ausentes alguém andou a remexer no seu viveiro de cobaias.

Hana dera a informação sem qualquer sinal alarmista, como se lhe relatasse a quebra acidental de um vulgar tubo de ensaio, mas a sua cautela não obstou a que William de imediato reagisse com inabitual agitação. Primeiro olhou-a com visível incredulidade, depois um ar de fúria perpassou-lhe pelo semblante, acompanhado do cerrar de punhos em atitude belicosa, e logo se levantou com brusquidão e de modo desengonçado e precipitado começou a dirigir-se para a porta. 
 


 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

.
 

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segunda-feira, maio 13, 2013 - 11:13

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