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OS GÉMEOS - 4
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Perto de dois meses de preparativos. Com o entusiasmo a crescer de dia para dia, ainda que sem nunca atingir uma fase de nervosismo ou verdadeira excitação. Era de todo em todo um entusiasmo produtivo, porque não permitia que alguma contrariedade burocrática impeditiva se imiscuisse, engendrando logo alternativas viáveis, e também porque pela primeira ocasião ficara a seu cargo todo um complicado trabalho logístico. James transferiu-lhe para a conta bancária uma soma apreciável de dinheiro, mas limitou-se a acompanhar o assunto com um ou outro conselho, em raras conversas telefónicas, embora lhe tenha feito a surpresa de ter aparecido a dar-lhe um abraço encorajante de despedida, minutos antes da chamada para embarque num voo de escala por Londres onde William pretendia passar a caminho de Lisboa, para adquirir o resto de uma lista de bibliografia com obras científicas que antes não conseguira encontrar. Apenas um pretexto, pois podia sem problema ter encomendado os livros por via postal. Calculadamente, aqueles dois ou três dias finais representavam uma espécie de imersão iniciática no Projecto Arroz Gigante. Em teoria, a estada na buliçosa capital londrina funcionaria como contraste do isolamento a que ia agora submeter-se, voluntário, na ruralidade a que se destinara no tempo mais próximo. A passagem por Londres era tão-só um gesto simbólico, idêntico àqueles com que às vezes precisamos de rodear um ato ao qual desejamos atribuir uma memória duradoura.
— És um malandrito que quando se apanha fora de casa não dá sinal de vida... E não digo mais nada sobre isso. Na planta que esboçaste pareceu-me haver pelo menos uma arrecadaçãozita que pode servir para eu dormir quando calhar de te ir visitar. Conserva-a apresentável, porque um dia destes hei-de arranjar tempo para ir até lá ver se te cuidas o mínimo indispensável para sobreviveres.
— Não era nada má ideia. Só te fazia bem, ires para lá ajudar-me a rendibilizar o empreendimento. Mas pelo menos, quando andares fugido à polícia... Espero ver-te. Não achas que chegado aos trinta é tempo de te deixares de crime subterrâneo e levares uma vida decente de empresário, por exemplo? — expressou-lhe William, a divertir-se com as palavras de modo a sossegar o assomo de emotividade causado pelo inesperado abraço de despedida em Heathrow.
— Descansa que a seu tempo eu irei colher os frutos do investimento. Não te disse, mas a procuração que me deixaste não vai servir apenas para avalizar os meus negócios escuros. Já estou a montar a empresa Ryswick Brothers - Tecnologia Bioalimentar. Se não gostares do nome podemos pensar noutro mais sugestivo mas eu preferia que deixasses esses pormenores comigo. Dedica-te à Ciência, que ela precisa de ti. Eu me desenrascarei. Vais viver num “jardim à beira-mar plantado”, como dizem os indígenas lá da terra. Local saudável, clima ameno, belas mulheres... cuidado com isso... boa comida e bom vinho, tranquilidade. Trabalha bem mas vê se não te dás à solidão. Não quero ter um irmão congénito, com o cérebro desarranjado.
— Eu não sei quem é que desarranja quem... metes-te em coisas, que eu prefiro desconhecer, e que às vezes me transmitem um mal-estar esquisito. Porta-te bem, en?
— Isso é especulação tua... Olha, estão a fechar a porta de embarque. Rápido. Vai lá. Até à vista, Willy!
Em Lisboa teve muito que fazer. Podia ter optado por ir logo direito à enorme propriedade que James tratara de adquirir ao pé de Lameira Grande, e da qual fazia parte a várzea onde afinal despertara para aquela aventura, contratado mão-de-obra e começado a erguer ali, paulatinamente, a habitação e as instalações que desejava, mas não queria andar cá e lá, ora compra equipamento ora escolhe materiais ora procura fornecedores. Só tencionava partir para Lameira Grande nas vésperas da chegada de todo o material que encomendara, faseada por grupos de montagem.
Estava tudo organizado com detalhe no papel, como o desenho de uma linha de fabrico duma peça única mas complexa; desde a aquisição de três contentores marítimos e a sua adaptação com portas, janelas, revestimento e insonorização interior, até à simplicidade e comodidade do mobiliário, incluindo utensílios e imprescindíveis electrodomésticos; desde o recheio de um pequeno e bem equipado laboratório de fisiologia celular, à requisição da baixada da energia eléctrica; tudo sob cronométrica e eficiente calendarização. Não desperdiçou fundos, mas também não poupou, sempre que teve de olear a máquina administrativa, como por exemplo para obter em meia dúzia de dias a licença de condução, uma vez que decidiu comprar um “todo-o-terreno” em segunda mão, para as suas deslocações locais. James abrira-lhe em Portugal uma conta bancária e abastecera-a com dinheiro mais que suficiente para que ele não tivesse de fazer cortes na sua lista de coisas essenciais.
Possuía uma noção muito aproximada de onde devia ser proveniente a avultada quantia que o irmão lhe colocara à disposição, mas isso acabava por não lhe pesar na consciência, porque a sua maneira de encarar as questões morais ou de ética estava já reduzida à mera discussão teórica. Atribuía-lhes apenas o valor facial que achava que deviam ter na amplitude do comportamento social do homem, um ser que não era nada no Universo, mas que, vivendo em colónia nos espaços mais apetecidos do planeta, necessariamente tinha de ser obrigado a respeitar regras e convenções que inibissem a agudização dos seus instintos básicos, e que ao mesmo tempo moderassem a luta contínua pelo poder individual, permitindo algum progresso da civilização. Que havia de fazer?... Em certo sentido era um céptico bastante convicto... tolerante, talvez muito por indiferença, ou porque o lado mais forte em valores místicos tivesse ficado para James.
Nascer num Ano de Dragão e ter um irmão gémeo, podia comportar sequelas apreciáveis. A um coubera o fogo inextinguível, o centro de toda a energia, o coração heróico e valente, e ao outro, talvez por nascido primeiro, a verdade e a luz, a missão de afastar as nuvens negras e, diz-se, a tarefa de domar o Destino. Quanto ao dom do poder e à glória, tudo indicava que tinham sido perdidos na divisão cromossomática, acabando por não serem atribuídos a qualquer deles, tais eram o juízo crítico e o desprendimento com que desdenhavam um e outra, e a tendência que ambos possuíam para preferirem o anonimato público.
Eram órfãos desde os quinze anos. Pela sua afinidade ingénita, e nunca tendo sido separados, haviam constituído entre si uma relação familiar bastante exclusiva, única que fazia sentido para eles.
Os pais, refugiados da Segunda Guerra, tinham andado ocupados, saltando de país em país, a defender e a gloriar "a causa da liberdade", confiando demasiado que ainda viria o tempo de se dedicarem aos filhos. Pereceram num brutal desastre de viação. Os rapazes só os conheceram de quase fortuitos encontros por ocasião de férias nos internatos de colégios, onde iam crescendo entregues a educadores sérios mas que muito raro compreendiam a idiossincrasia do par que eles formavam.
Por consideração aos pais, um amigo íntimo conseguiu que a companhia seguradora do provocador do fatal acidente lhes pagasse uma indemnização razoável. Poucos meses depois, com o termo do ano lectivo, James e William, decidiram abandonar em definitivo o colégio. Não tiveram qualquer dificuldade em aguentar-se a viverem sozinhos. Durante perto de dois anos cada qual experimentou o que lhe foi apetecendo em matéria de desenvolvimento pessoal, com os limites espontâneos que outorgavam a dependência de um em relação ao outro. Participaram juntos em muitas peripécias, mas, com o tempo, a linha que lhes separava as individualidades tornou-se-lhes nítida. Foi quando Jimmy começou a assumir uma liderança quase protectora, que acabou por ser discutida e dissecada com detalhe, ao ponto de ambos concordarem que para bem dos dois seria melhor desligarem-se, seguindo cada um o seu caminho, embora ajudando-se mutuamente sempre que necessário. Os laços entre eles eram lídimos, mas para os conservarem intactos deveriam separar-se.
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia
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