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Parque Paraíso
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De repente a mão tremeu-me, e a chávena, que eu segurava despreocupado, transbordou pingando manchas acastanhadas sobre o mármore acinzentado da mesa. E logo não me pude conter sem sussurrar um aflito Não posso acreditar! tão sobressaltado que me engasguei e o desastre continuou, agora respingando borrões de café para cima do jornal. De imediato procurei recompor-me para não dar nas vistas dos outros clientes do Bar; respirei fundo e estremeci vigorosamente a cabeça, para livrar-me do embaraço, e o meu pensamento, apanhado à falsa fé pela fotografia, hesitou quanto à palavra certa Traste! ou Anjo triste?
Instantes depois apercebi-me de que, lá do fundo do balcão, Rodrigo me enviava um olhar amigável acompanhado por uma pequena gargalhada, a querer dizer-me: Ora! Não te preocupes, que isso limpa-se... Dobrei o jornal com atabalhoação mas levantei-me sem pressa, e a despedir-me ergui um polegar e atirei ao Rodrigo um relance meio contrito meio divertido. Mas, divertido era tudo menos como eu estava. Voltei para o trabalho no Salão, caminhando um pouco trôpego, ao jeito de quem foi de encontro a um poste e ficou zonzo, mais porque escolhi percorrer a áspera vereda de saibro e eu ia descalço. Traste! ou Anjo triste? ainda matutava...
Quando meu pai, don Alfonso Carmelo, irrequieto empreiteiro de construção civil, se despediu deste mundo, vítima de uma grua desgovernada, praticamente decapitado numa torre de habitações que estava a construir nos arredores de Madrid, e decerto ainda insatisfeito com as mil e uma peripécias que nele vivera, eu era o mais novo de sete sementes que, em sessenta e nove anos, ele havia orgulhosamente plantado por toda a Ibéria. A mim tocara-me nascer na Estremadura castelhana. Bem como me tocara depois ser de lá arrancado e criado acima, para os lados da Galiza; isto porque minha mãe, D. Oriana Yañes, tinha eu já três verões secos e escaldantes das terras vastas a Sul do Guadiana, resolvera escapulir-se com um arrebatado cigano zíngaro, de enfeitiçantes olhos negros e cabelo sedoso e revolto e na alma pungente melopeia de Flamenco, para viver com ele o chamamento de aventura que lhe pulsava nas veias de ancestral sangue mourisco.
Apesar de então estar a residir em Madrid, tendo sabido que eu estava abandonado a uma vizinha, amiga de peito de D. Oriana, meu pai mandou buscar-me e deu-me aos cuidados do seu amor em A Coruña, Rosa Xeliña; mulher que, por razões que eu sempre ignorei, o amara fogosamente mas não procriara dele, e que assim ganhou uma criança que veio a adorar mas que nunca deu como de sua geração.
Finado don Alfonso, estava eu com vinte e seis anos. Por herança, testamentada por um tabelião de Tarragona, coube-me receber um curto pecúlio bancário. Era o que restava após terem sido satisfeitas as doações que don Alfonso legara às suas cinco espúrias consortes que lhe haviam sobrevivido. E por coincidência, logo a seguir, diplomei-me finalmente em Filosofia.
Depois de alguns meses sem conseguir emprego, também as origens me espicaçaram para voltar aos sítios da minha primeira infância. Rosa Xeliña não me levantou objecções, e com uma lagrimita ao canto do olho abraçou-me e incitou: — Vai e vive homem! Volta sempre que queiras.
Enchi uma pequena maleta com alguns livros e com as modestas roupas que possuía, e vim por aí abaixo no meu velho mas estimado Ford Anglia, que também já nem saudades teria dos meus engalfinhanços carnais com a serigaita María Pilar, cada vez mais irritante e interesseira, ao ponto de me ter trocado por um engraçadinho raiano, estupor endinheirado. Nas calmas, muito de passagem de cidade em cidade, hesitando em perguntar aqui ou acolá Há trabalho? sem nem sequer me atrever a dizer que era doutor em Filosofia, e acabando sempre por me questionar: E o que sabes tu fazer? E o que queres tu fazer? Tens ideia, por acaso? Vai indo, vai indo e vai vivendo.
Assim cheguei a Granada. Passei lá perto de ano e meio; tempo muito frutuoso, em que trabalhei como porteiro e arrumador num cinema, como lavador de carros numa estação gasolineira, e noutros biscatos ocasionais. Na acanhada hospedaria onde me aboletei por escassos euros, fiz um amigo como há poucos, o Zulmiro cabeleireiro; da minha geração, humilde moço, de sensibilidade apurada, músico amador também, muito cordato, pensador, quase filósofo como eu me via.
Uma noite, o Zulmiro, não sei por que acaso, apareceu-me na pensão com duas risonhas raparigas cheias de raça andaluz, morenas cor de chocolate de leite, belos cabelos compridos, lábios sensuais, e prometedores olhares. Não interessa agora como se chamavam, mas é preciso dizer que eram muito alegres e calorosas. Intimamente me regozijei Bravo Zulmiro! Bela noite! Oxalá a nossa estalajadeira não resolva mostrar-se puritana relembrando-nos a conhecida respeitabilidade da sua pensão... Depois de rápidas apresentações, ele levou-nos a todos para o seu quarto. Mandou que as raparigas se sentassem na borda da cama, pôs-lhes ao pescoço as batas do ofício e, encarando-me com a máxima seriedade meteu-me pente e tesoura nas mãos e indicou-me a mais sorridente: — Corte bem curto, à francesa.
Ia eu começar a rir-me, gozando com a chalaça, quando reparei melhor no seu olhar firme, como se não estivesse disposto a admitir-me recusa nem desculpas; reflecti: Por que não? Teoria, e muita, tenho eu de tanto o ouvir falar entusiasmado do seu mester. Jeito, devo ter, pois ele acredita em mim. Mãos à obra, honra o teu amigo. — Como! Tão bonitas e não haverá mais nada? — cochichei-lhe à socapa. E ele então riu-se, muito conspícuo e, já a deliciar com ternura as suas mãos nos longos cabelos da outra rapariga que o mirava com sedução, respondeu-me: — Se as meninas ficarem agradadas, pois logo se verá...
Agora já sabem; nessa noite descobri o meu verdadeiro talento, tornei-me cabeleireiro, e garanto-lhes que fiz um trabalho que mereceu ardente recompensa da minha primeira cliente. Como ela cheirava a violetas e sabia de amor! Que noite!
Mais dois meses, durante os quais pratiquei afincadamente como ajudante no Salão Rubí, mal pago pelo empregador de Zulmiro mas inebriado pela profissão, e chegaram as festas de Junho. Talvez tenha sido a alegria popular a que me juntei, o que me inspirou, ou a doçura de uma melodia muito nostálgica ao cabo de uma madrugada em que não preguei olho por causa do imenso calor, mas o facto é que deu-me a guinada e parti de novo; no auge do meu afecto a Granada de fascínio medieval, e à minha nova arte. Metera-se-me na cabeça montar um Salão de Cabeleireiro, de minha própria conta e risco, mas num lugar bonito, mais sossegado, e que desse para viver em paz e em desafogo económico.
Encontrei esse lugar no Parque Paraíso, um Motel Turístico à beira do Pueblo Piñas de San Vicente, a poucas centenas de metros da Mérida-Madrid. Duas dúzias de cabanas de madeira, muito confortáveis, espalhadas em belíssimo aldeamento arborizado e muito bem cuidado, em volta de uma clareira de árvores onde reluz uma pequena piscina. Discreto local de passagem, também para apaixonados à procura de discrição, custou-me todas as poupanças que me restavam da herança de don Alfonso, e muito poder de convencimento para a minha ideia ser aceite e comparticipada pelos donos do empreendimento. Mas lá acabei por conseguir instalar e mobilar um moderno e agradável pavilhão, não maior que qualquer das cabanas, porque para a quantidade previsível da clientela também não precisaria de muito espaço, e bem localizado, a poucos passos da piscina. Vivo aqui feliz, desde há três anos, residindo em aposentos nas traseiras da Recepção, mais a Didi, ex-secretária do Parque Paraíso, amante companheira que a sorte entretanto me deu e que é minha encartada colaboradora de profissão, para serviço também a cavalheiros, que este salão é unisexo e a freguesia tem as suas preferências, além de que a Didi é mulher alta, do tipo nórdico, loira como ouro, esbelta, queridíssima e muito competente.
Cedo ficou demonstrado o êxito da minha iniciativa. Presentemente até o aldeamento está sempre todo ocupado. E com o tempo ameno que prima por aqui quase todo o ano, a piscinita nunca teve tanta utilização. Basta olhar através das janelas envidraçadas do meu Salão, desde bem cedo, para ver lindas mulheres e simpáticos cavalheiros banhando-se naquela água azul celeste ou espreguiçando-se nas longas cadeiras de praia ou na relva verde e macia, aguardando pacientes um sinal meu ou da Didi, de que chegou a sua vez. Reconforta-me tanto interesse da clientela, particularmente a feminina, e muito me emocionam, sem pieguice alguma, os inúmeros momentos de prazer que lhe prodigalizo; prazer mútuo, está bem de ver.
Podem imaginar o agrado que é tratar com amorosidade os cabelos de seres tão delicados, as mais das vezes perturbadoramente belos, como são as mulheres que frequentam o meu Salão? Esta arte é assaz recompensadora. Imaginem só: entram-me aqui sorrindo, mentes airosas, desejando os meus repousantes cuidados, biquínis exíguos e húmidos, quando não vêm mesmo em topless, sem falsos pudores, sabendo bem o que querem; sentam-se na cómoda cadeira articulada e fecham os olhos por momentos, passo iniciático para o meu altar; sabem, sim, sabem e sentem que nesses instantes os meus olhos logo lhes acariciam o corpo, as formas provocantes, os detalhes que encantam; são excelsos segundos que nos regalam a ambos. Ao meu discreto pigarreio abrem o olhar, gentil, atento; — O costume, Miss? O seu cabelo é magnífico... E este penteado combina muito bem com o seu tipo de rosto. — Sim, sim, o costume. Gosto. Ainda que ande tentada a deixar as suas mãos fazerem a loucura que lhe apetecer.. Ah! Ah! Ah!; riso cristalino, perdoai-me, mas a malícia está em vós que me ledes; ajusto a cadeira, cirando um pouco à sua volta, apreciando-lhes o perfil; não, elas já não me vêem, no seu olhar distante, mas sentem que eu as observo com profunda intimidade; coloco-lhes o penteador, levemente lho aperto no pescoço e lho aliso aqui e ali, os meus dedos, independentes de mim? a roçarem-lhes, por suposta inadvertência, os peitos voluptuosos, e os mamilos que endurecidos me desafiam por debaixo do fino tecido, quase transparente, com que os cobri; abençoo-lhes com os meus toques a meiguice dos seus corpos enfeitiçantes e olorosos; o deleite afaga-lhes a alma; até ao fim estarão sempre languidamente conscientes, e bem encomendadas à minha arte.
Ah! Mas esta mulher defraudou-me! Ou não?
Hoje levantei-me mais cedo. A Didi ficou na cama a recuperar dos nossos amores, que deitaram até bastante tarde e envolveram sérias reflexões sobre planos de futuro. Preparei-me e saí para o ar puro da manhã. Já me dirigia sossegadamente para o Bar onde de costume tomo o pequeno almoço e vi-a encostada à porta do Salão, a contemplar o céu algo encoberto por nuvens de um anil clarinho. Fiz menção de passar do outro lado da piscina, que ainda era cedo para começar a trabalhar e estava em jejum; mas ela percebeu e chamou-me com a mão. Àquela distância notei-lhe medidas e esbeltez idênticas às de Didi. O cabelo, porém, era num tom louro-palha, e deveria dar-lhe pelos ombros se não estivesse apanhado sob a touca de banho.
Enquanto me aproximava deu para eu não ter dúvidas de que, parecendo-me estar nua, não o estava apenas por pouco, pois não usava mais nada que a reduzidíssima peça a que se chama com propriedade “fio dental”. Uma deusa, logo pela manhã!... Disse-me eu, conquanto suspeitoso. Mas tinha uns olhos demasiado tristes, ou trágicos. — Por favor... Pode atender-me já? Ficar-lhe-ei imensamente agradecida... — Mas, já! Ia tomar o dejejum... O Salão abre apenas daqui a meia hora. A minha colaboradora ainda demora... — Oh! Por favor... Dê-me coragem para assumir uma loucura antiga... Não queria que alguém ainda me visse assim... antes de mudar radicalmente. Por favor... — Radicalmente?... — Claro! Máquina zero, e toda, mas toda, depilada. Ajude-me, por favor... — Toda?... — Sim! — A minha colaboradora ainda não chegou... — Melhor. Prefiro confiar-me a si. — Vamos então... — assenti eu, ainda reticente mas já me dizendo que o pequeno almoço bem poderia esperar, ante tão admirável serviço. Preocupava-me apenas o seu olhar triste. Pois! Tinha a obrigação, na minha ética, de a acarinhar, de, qual a maneira que fosse, lhe despertar o sorriso.
— Máquina zero... Miss?... – balbuciei, depois do ritual do costume em que nada abreviei. — Mari Carmen. — retrucou-me, indiferente, como se pudesse ter dito Josefa ou Severina ou qualquer outro nome, no instante em que atrás dela eu lhe erguia o cabelo e lhe apreciava a sensualidade da nuca. Fragrância Red Door inspirei... Refreei o meu embevecimento. Dez minutos depois passei para a navalha, com toda a brandura de que fui capaz. E após outros dez minutos massajava suavemente com um creme hidratante um crânio muito belo, níveo, excitante. Miss Mari Carmen respirava com tranquilidade. Desapertei-lhe no pescoço o penteador e fui pela frente, joelhos dela abandonados entre os meus, retirar-lho puxando-o lentamente para o regaço, como se destapasse uma secreta obra de arte ali escondida. Rosto formoso, ombros esculturais, seios túmidos e bicos rosados e erectos, ventre excitante... Suspiro com indizível tentação: — Está deslumbrante, Miss Carmen! — Obrigada. Trabalho impecável, sim... — ripostou-me ela baixinho, algo nervosa, enquanto acariciava a cabeça confirmando a sua perfeita lisura, e logo com olhar sereno: — Depilação completa... Bom, as pestanas, que quase mal se vêem, não é, podem ficar, o resto, tudo o que encontrar. — Completa... Pois sim. Queira ter a bondade de reclinar-se naquele canapé, e soltar... o seu “fio dental”, Miss Mari. — anui, serenamente encantado, lembrando-me então que não estava livre de a qualquer momento Didi aparecer e surpreender-se com o meu à vontade em depilação, matéria que melhor lhe competiria a ela, e para mais depois das nossas sérias considerações da madrugada...
— Ora então... sobrannncelhaaas... sobrancelhas... Esta lâmina é muito suave, não é? Pronto... Monte de Vénus... por favor, pernas bem afastadas, os joelhos um nadinha mais dobrados, está bem nessa posição... que pele sedosa, Miss Carmen, então nas faces internas das suas coxas, e nas virilhas, ah!... — soliloquiava eu, gozando contactos subtis em partes tão íntimas, quando ela me atirou: — Enquanto me tonsurava você estava a meditar... — e pela primeira vez os seus olhos sorriram, ante os meus semicerrados, e logo perscrutaram sem rebuço alguma possível excitação nas minhas partes pudendas. O que não encontrou, visível, que por prudência eu usava sempre sob a bata uma concha apropriada para não denunciar os meus muitos momentos de entontecer — Diz bem, Miss Carmen... A beleza induz-me sempre pensamentos que é raro terem ligação com o trabalho das minhas mãos. — Pensamentos que há pouco eram?... — O entendimento budista, de que para cada verdade o contrário é igualmente verdade. — E que agora são?... — Que a sua confiança na minha deontologia me regozija. — Sinceramente?... — De verdade, porque uma bela mulher sabe que é naturalmente uma enorme tentação para todos os sentidos de um homem. Está quase... Pronto! Permita que me certifique, Miss Mari... mn mn... mn... ennnn... mn... mn mn... Sim, as minhas mãos já não sentem um único pelinho em todo o seu corpo. Que suavidade... Delícia para quem a acariciar, Miss Mari! — Graças a si... Nem imagina quanto lhe fico reconhecida.
— Com muita pena minha por já ter terminado, está satisfeito o seu desejo. Assine por favor este talão dos meus serviços, que a Recepção depois cobrará, Miss Mari Carmen...
— Pois não! — foi o seu último dito, antes de fazer um rabisco no livrinho que lhe apresentei e depois me puxar contra ela e me beijar com um fogo que ainda não esqueci. Os seus lábios quentes e sôfregos e os seus olhos castanhos sorriam-me quando saiu porta fora direita à piscina onde se lançou num mergulho de autêntica carpa. Splashhh...
Em suma, querem saber porque me engasguei hoje com o café da manhã, já depois de ter exercido bem o meu trabalho em tão gostosa cliente e ainda antes de a Didi ter aparecido? Na minha plácida leitura, ao chegar às páginas do meio do jornal, dei de caras com um retrato-robô, muito aproximado, segundo testemunhos oculares, de Miss Mari Carmen, a qual nem mais nem menos assaltou com êxito ao fim da tarde de ontem uma agência bancária a cerca de oitenta quilómetros deste Parque Paraíso. E eu que lhe fornecera havia perto de uma hora, que nem valia a pena procurá-la, como ainda comprovei na Recepção, um visual radicalmente diferente! Traste! ou Anjo triste?
Pois... Para cada verdade, o contrário é igualmente verdade. Mas que terei eu feito do meu árduo diploma em Filosofia? Se basta uma linda mulher para lançar tão perturbante confusão na serenidade dos meus pensamentos...
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