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A tarde de sábado

          Desde que nos casamos, as tardes de sábado sempre foram muito importantes para nossa rotina de casal, tanto para mim como para minha esposa. Criamos esse costume e deixamos esse pequeno hiato no tempo, de nossas vidas aceleradas, dedicado às coisas leves, fúteis, fáceis e agradáveis. Desde o início fizemos dessa maneira e sempre passamos nossas sagradas tardes de sábado juntos e felizes, mesmo depois da chegada de nossos dois filhos. Foram muitos anos nessa rotina em que nos sentíamos bem, mas talvez já precisássemos de algo diferente em nossas vidas.
          Foi em um desses sábados que decidimos, reciprocamente, que faríamos algo diferente de nossa rotina. Minha querida esposa, depois de tantos anos, levou nossos amados filhos para um passeio em algum parque nas redondezas. Voluntariamente, alistei-me para ficar em casa e cuidar das plantas do jardim, que precisavam de algumas podas.
          Logo que todos se foram, fiquei na sala, sozinho e em silêncio por alguns minutos. Havia muito tempo em que eu não me sentia tão perfeitamente só. Essa sensação de liberdade absoluta me enchia de prazer. Essa mesma sensação que me trouxe lembranças do meu passado, de minha vida de anos atrás. Alguns momentos, objetos, cheiros, gostos, memórias. Tudo veio à tona de maneira muito rápida e avassaladora. Foi quando me lembrei dos meus livros e dos meus velhos discos, que felizmente, eu os mantinha e ainda os guardava.
          Desde a minha infância meus livros me importaram muito. Eles sempre tiveram, juntamente com meus discos, um lugar especial na casa. Era como se eu transferisse o íntimo do meu coração à matéria concreta de nosso lar. Os livros e discos deveriam estar à mão, à vista, em lugar nobre e bem cuidados, porque assim os via em meu interior. Essa relação antiga, principalmente com os livros, era tão especial que eu me referia a eles como pessoas próximas. Eu os entendia e eles me contavam suas histórias incríveis.
          Comecei a observá-los na velha estante que, mesmo simples e razoavelmente pequena, me preenchia como se fosse alguma biblioteca importante. Estavam lá os livros, enfileirados como soldados prontos para o combate. Allan Poe, Oscar Wilde e os russos, ah, os russos, meus preferidos... Dostoiévski, Tchéchov e Tolstói. Lembrei-me da maneira que Tolstói descreveu a morte em uma de suas novelas. Tão brilhante que parecia que ele já havia morrido várias vezes, tal a riqueza de detalhes e das circuntâncias que nos envolve quando chega nosso fim. Encontrei: ali estava o velho e empoeirado “A morte de Ivan Ilitich”. Não resisti e o retirei da prateleira, assoprei seu pó e comecei a ler alguns parágrafos; depois de tanto tempo...
          Com o livro em mãos, fui até a estante dos discos, que fica no mesmo ambiente da casa, agarrei um também velho e empoeirado Tino Rossi que ganhei de um bom amigo. Limpeio-o delicadamente e coloquei-o na antiga vitrola de estimação.
          Meu deleite foi muito intenso a partir desse momento. Ouvir aquela voz, aquele som tão delicado de “Parlami d’amore Mariù” e ser abraçado pela narrativa de um bom exemplar de Tolstói. Depois de muitos anos, me sentia vivo novamente, como se eu tocasse a minha própria alma, como se acariciasse meu próprio interior e limpasse minhas profundas estantes escondidas cheias de memórias envelhecidas.
          Não sei precisar quanto tempo fiquei ali, sentado no chão, lendo e relendo cada palavra. Ao fundo as músicas que me faziam levitar dentro de meu próprio corpo. E assim fiquei... Música após música.
          Se aquela tarde de sábado era inesquecível, se tornou fantástica com o que veio a seguir. Em um determinado momento percebi que algo acompanhava a música, as notas de “Un violon dans la nuit”. Algo afinado, que vinha de longe, que vinha de fora da casa. Um som diferente, um canto ininterrupto, suave, encantador. Fechei o livro e abaixei o volume da velha vitrola e pude ouvir o canto mais presente, que invadia a casa em seus tons frágeis, em falcetes mágicos. Era um pássaro, o canto de um pássaro.
          Quando pude identificar o que era, não tive dúvidas, eu tinha que vê-lo e poder observar a beleza e a volúpia desse pássaro cantor. Imagineio-o de várias maneiras e cores. Até que não contive mais minha curiosidade e fui até à janela da sala, correndo.
          Ao chegar à janela eu o vi. O pássaro estava a meio metro de distância da janela, ao chão. Cantava inspiradamente até minha chegada à janela. Seu canto era feito de paixão e de instinto. Ele me viu, parou de cantar e, assustado, voou em disparada para bem longe e em silêncio.
          Nesse instante alguém abre a porta da sala. Era minha esposa com as crianças.
 

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quarta-feira, setembro 21, 2011 - 02:26

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