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TENDÊNCIAS SUICIDAS...

- A Inês voltou a tentar o suicido… se puderes vem vê-la porque ela só fala em ti …!

Ouvi a voz sempre terna da tua mãe, através do telefone, dizer-me essa frase quase num sussurro.

Com essas palavras a martelarem-me os ouvidos em jeito de disco riscado, percorri os inúmeros kms que nos separam geograficamente, com um frenesim de abelha acossada. O meu espírito inquieto de repente transformou-se numa espécie de pirilampo fundido. Deixou de iluminar-me. Os pensamentos atrofiavam-me a clarividência do raciocínio, num misto de luz e sombras. Havia no entanto uma ideia fixa que persistia em atormentar-me obsessivamente.
- Porque fazes isso a ti própria, Inês?
A conduzir um carro apressado, senti-me nesses derradeiros momentos uma espécie de pena de pomba a flutuar. Sempre reagi mal às pressões que a vida me impôs. Sempre! Fico como que em estado de choque, feita mosca tonta a perturbar o sono tranquilo dos inocentes.
O vento pouco cerimonioso entrava pelas janelas do carro a uma velocidade de açoite, fazendo dos meus cabelos um rodopio atabalhoado. O barulho das rodas do carro sobre o asfalto quente parecia indicar-me os sons longínquos dos carroceis quando íamos andar naqueles cavalos de pau, nas feiras populares da Coimbra de outrora. Lembraste “papoila” ? Tu e eu, Inês, às voltinhas, agarradas a um cavalo de pau, a sorrir tontamente, enquanto os nossos cabelos pareciam querer fugir das nossas cabeças. Uauuuuuuuu… gritávamos em uníssono. Uauuuuuuuuuuuuuuuu…
- Oh, Inês! Porque fazes isso a ti própria?

Por mais que olhasse em frente a ver o corropio fastidioso dos carros num vai vem de formigas gigantescas, pus-me a regredir no tempo, feita borboleta morta, espetada estupidamente por um fino alfinete, para delícia mórbida de um qualquer coleccionador alucinado. Porque fazem isso às borboletas? - Ponho-me a pensar no meio de tantos pensamentos desalinhados.
- Inês… Inês… Porque fazes isso a ti própria?
Esse pensamento fixava-se ao meu cérebro como se fosse um sinal de estrada a indicar-me a vermelho o perigo iminente.
Quando cheguei à clínica onde estavas internada, lá estava tua mãe com o seu sorriso doce, com mais umas quantas rugas a acentuar o desespero da idade, a abraçar-me com a afabilidade quente dos seus braços de águia mãe, como eu sempre lhe chamei carinhosamente. Oh… como é sublime a amizade e o afecto de todos aqueles que amamos! Como nos reconforta a alma!
Abraçámos-nos sem cerimónias e deixamos que as lágrimas que deslizaram no nossos rostos falassem de todas as palavras que nunca saberiam descrever o que nos ia na alma. Finalmente pergunto-lhe: - Teve uma recaída, depois destes anos todos?
- Sim… filha. Teve uma paixoneta enorme por um médico estagiário que frequenta a nossa casa. Só que esse rapaz sempre viu nela uma irmã vais velha e além de tudo é casado há cerca de 3 anos. Mais uma obsessão da Inês e o pior é que deixou de tomar a medicação sem que nos aperceberemos. Como sabes… a esquizofrenia é implacável nestas situações. Se houver uma interrupção abrupta na medicação volta-se quase à estaca zero. Meu Deus… esta filha…!
Abraço a mãe-águia e segredo-lhe com a voz embargada.
– Vá…lá não chore. Olhe que assim… não a deixo brincar no jardim…
- Oh, minha querida! Ainda te lembras quando vos dizia isso? Vocês eram tão teimosas, que miúdas mais casmurras! Às vezes estava um frio de rachar, mas vocês mal viam uns pálidos raios de sol, insistiam em andar à procura das borboletas, porque cismavam que elas se escondiam no meio dos crisântemos. Lembras-te, filha?
- Oh… quantas, quantas vezes me lembro desses momentos! Quase desato num pranto de Madalena arrependida. Sinto-me emocionada.
Mas estranhamente consigo rir-me com essa lembrança, embora disfarçadamente tenha secado a lágrima grossa que deslizou sobre o meu rosto nesse preciso momento.

Encontro-te deitada, de olhos fechados, com uma serenidade no rosto impressionante, como se fosses a bela adormecida à espera do mágico beijo do seu príncipe. Sempre foste tão bonita Inês! A tua pele alva como a neve, os teus cabelos louros agora com madeixas brancas impostas pela ditadura do tempo, os teus expressivos olhos remetidos a uma ausência paralisante.
- Porque fazes isso a ti própria?
Oh… amiga… tu e eu a correr atrás das borboletas, e a tua mãe fingindo-se zangada a gritar da porta como quem decreta:
>> Assim… não vos deixo brincar no jardim…>>
Os pirilampos a luzir à noite armados em lanternas cintilantes, a chuva a cair num temporal momentâneo, a formar correntes de água, e nós à socapa, a fugir de casa para estarmos um pouco mais uma com a outra e colocarmos os nossos barquinhos de papel nos inesperados rios que se formavam às nossas portas.
Inês… Inês… porque fazes isso a ti própria?

- Oh… vieste ver-me? Abraçaste-te a mim daquela forma estranhamente efusiva que quase me impede de respirar. Comovida dou-te um beijo nos cabelos pincelados agora de flocos de neve.
Sussurro-te imperceptívelmente.
– Estarei sempre aqui mesmo não estando. Esse é o nosso pacto sagrado, lembras-te miúda?
-Oh… amiga! Fazes-me sempre tanta falta! Primeiro foste embora para África. Depois casaste e fugiste para longe. Agora quase nem me vens ver. Eu… eu…
- Eu sei… - interrompo eu. Mas nada disso é motivo para continuares a fazer disparates. Que coisa miúda! Quando é que deixas de te auto mutilar? Todos nós te adoramos, tu sabes disso.
A vida por vezes separa-nos mas aqui… olha Inês, aqui… - aponto para o lado do coração, - aqui é que é importante continuar, e é aqui que estarás sempre até ao ultimo momento da minha vida.
Abraçaste-te de novo a mim, deixando-me quase sem fôlego. Os meus olhos estão inundados pelas lágrimas. O teu rosto também.
De repente olhas para mim muito séria e perguntas-me:
- Que horas são?
- São… (vem-me à memória a nossa antiga brincadeira…) respondo com um sorriso trocista.
- É uma hora e uma sala! Rimo-nos como se tivéssemos enlouquecido. Sempre tiveste a faculdade de me fazer rir até às lágrimas, Inês.
E tens razão…! Se se pode dizer que é uma hora e um quarto, porque raio não havemos de dizer que é…uma hora e uma sala?”

(VÓNY FERREIRA)

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quarta-feira, outubro 28, 2009 - 12:03

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Comentários

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Re: TENDÊNCIAS SUICIDAS...

Amo suas prosas, amo. Apenas isso. bjs

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Re: TENDÊNCIAS SUICIDAS...

Vóny

Lindo o texto.

Nos faz pensar num problema que acomete tantas pessoas.

E é ótimo o trocadilho! eheh...

Parabéns,
Um abraço,
REF

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Re: TENDÊNCIAS SUICIDAS...

Obrigada Roberto.
Um grande abraço
Vóny Ferreira

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