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Valeu a pena mulher?

Segurava na mão direita e com bastante firmeza o Rx onde constava um estreitamento intervertebral entre a L5 e a S1 e a tomografia onde constava uma área nodular no seio renal esquerdo. Entre os dois envelopes havia ainda o da Universidade encaminhando-a para a Triagem Neurológica para apurar uma provável síndrome paraneoplásica. E, no entanto, aquele conjunto de más noticias ou de maus prognósticos enchia-lhe de confiança. Afinal, era-lhe importantíssimo estar muito doente para finalmente poder atingir a sua meta. Sim, agora tinha chances reais de conseguir a sonhada aposentadoria por invalidez e, então, finalmente poderia sentir o prazer de ser doente sem sentir culpa pela obsolência, dispondo de um status definido – aposentada – e podendo esquecer o temor de ser um peso para os outros.Tudo na mais perfeita conformidade com os seus sonhos e se não fosse o idiota ao seu lado poderia até sentir-se feliz. Dentro de pouco tempo o seu sonho finalmente se realizaria. Mas, havia o idiota ao lado. E por ser idiota lera alguns livros e, por isso, julgava-se no direito de questionar e de falar. E o que era pior: julgava-se no direito de falar com ela.
A voz grave do médico ecoou pelo amplo salão. Um trovão de Zeus, ou mais certamente um grito raivoso de quem viu que tudo o que estudou resultou na triste condição de ser reduzido a um médico perito. Triste fim de um dos tantos “Policarpos” seguidores de Hipócrates:

- D. A.

O som disparou a mola de seu corpo e a muito custo ela conseguiu refrear o salto que normalmente daria. Afinal, uma prova de agilidade poderia ser prejudicial ao estereotipo de quem está muito doente. Amparando-se na bengala e fingindo uma dificuldade maior do que realmente sentia, levantou-se e lentamente se dirigiu para a 3ª Sala do “Complexo de Perícias do Instituto da Previdência”.

- Tudo bem, dona D?

Por pouco ela não cedeu ao habito e respondeu:

- Tudo bem, doutor. Graças a Deus!

Mas antes de cometer tal blasfêmia recorreu ao instinto de proteção que os anos de miséria forjaram em seu comportamento e respondeu:

- Estamos indo, doutor.

Foi a ultima vez que conseguiu ver o rosto do médico, pois tão logo acabou o curto diálogo ele abaixou os olhos para os papeis e limitou-se a escrever no seu prontuário tudo o que estava escrito nos laudos que ela lhe apresentara. Ao fim da transcrição literal, com os óculos na ponta do nariz e olhando-a de soslaio ele disse:

- Eu encaminharei o seu processo de aposentadoria e dentro de um mês a senhora receberá uma carta do Instituto. Alguma dúvida?
- Não senhor. Muito obrigada.

A euforia encheu-lhe o coração e num vacilo, do qual se arrependeu no mesmo instante, levantou-se mais rápido do que seria prudente. A sua sorte é que o médico tinha conservado a cabeça baixa e se notou o ato falho não demonstrou. Saindo do consultório sentiu que realmente as pernas estavam bambas, mas muito mais em função da adrenalina que a tensão jogou em sua corrente sanguínea do que por efeito da polineuropatia que a Vincristina lhe ocasionara. A euforia, arduamente camuflada, durou pouco. Numa fração de segundo, o que o idiota ao lado lhe dissera voltou a ocupar a sua mente.
Nunca ouvira falar do tal “Exército de Reserva” de Engels e nem tinha menor idéia de quem fora Schopenhauer. O que sabia isto sim era que os comunistas iriam tomar tudo o que era seu. Mas como nunca tivera nada, pouco se lixava para a ameaça vermelha. Aliás, até já escutara que o comunismo tinha acabado. Sobre Schopenhauer logo dissipou as dúvidas. Há uns dois ou três anos trabalhara como faxineira, ou melhor, como “diarista” na casa de uma moça que era amante de um dos chefões da fábrica de chocolates Neugbauer e Schopenhauer era, com certeza (ouvia sempre os cantores de pagodes e/ou sertanejos e os artistas de programas das TVs falarem “com certeza” e julgando-a linda sempre usava essa expressão) o nome daquele homem. Schopenhauer . . . Neugbauer. . . um acerto aqui, um ajuste ali e pronto! Tudo resolvido. O que lhe perturbava mesmo e não conseguia entender era a pergunta que o idiota lhe havia feito:
- Valeu a penha mulher?
No auge de seu quarenta e cinco anos, aposentada em meio a milhões de desempregados reais ou latentes gozou o fato de ter atingido o seu objetivo. Contudo, isso não deixava de ser um paradoxo: era necessário que estivesse próxima da morte para poder receber algum dinheiro que lhe permitisse viver. C´est la vie . . . o avesso do avesso, segundo o poeta. Estar perto da morte para poder viver . . .
No seu primeiro dia como aposentada, D. não se sentiu com coragem para sair de casa. Não que reflexões profundas lhe causassem esse acovardamento, pois o motivo era mais básico. Escatológico, diga-se. Uma persistente diarréia, talvez motivada pelos acontecimentos do dia anterior, impedia-lhe de se afastar das redondezas do banheiro. Embora livre como jamais se sentira em seus quarenta e tantos anos, estava presa a um assento. As contradições da vida. E se surpreendeu com isso: sim senhora, eu pensei! Refleti sobre algo abstrato (belo nome para aquilo hein?). Em toda sua vida, pelo menos no que se lembrava – descobriu espantada – nunca tivera um pensamento que não estivesse diretamente ligado a alguma questão de sobrevivência. Aquele foi o primeiro pensamento cujo objeto ultrapassava o cotidiano externo e refletia sobre um fato, ou melhor, sobre sua condição. Livre, mas presa. Gostou de refletir sobre si. Abandonou-se às divagações. Confusas, estereotipadas, marcadas pelos modismos vulgares, pelas “verdades” do momento e por tudo mais que é típico de uma das milhões de D. que nunca tiveram acesso a uma educação que lhes permitisse organizar seus juízos confusos e obtusos. O que conhecia, ou melhor, reconhecia eram os tipos, os modos e as modas das telas de televisão e como a imagem não exige reflexão teve o seu intelecto atrofiado à semelhança de um músculo que nunca é exercitado. Porém, embora tão confusamente naquele momento ela pensava.
E pensando ficou o dia todo. Mas como esse exercício ainda era novo para ela não pôde pensar sobre o futuro, pois isto seria criar uma abstração e, então, recorreu ao que já tinha, ou seja, ao seu passado. E desfiou as suas recordações, suas mágoas, suas poucas alegrias e, depois de tudo, olhou-se e contabilizou o que restara. Era pouco. Muito pouco. Mas ainda era.
Da carteira tirou o cartão que aquele estranho lhe dera e leu: F., o Pensador. Olhou de novo e confirmou que o nome era mesmo F., quanto ao adjetivo auto atribuído ele, certamente, teria usurpado do cantor de Rap. Não pôde deixar de pensar: tão metido a intelectual e é um mero fã de cantor de Rap . . . tem louco para tudo mesmo. . . cada coisa. . . Santo Deus! Ia rasgar o cartão, mas algo a deteve. Quem seria ele? Por que ele também estaria na Previdência? Por que usava uma bengala? Buscou na mente a sua figura e o que viu tornou a desagradar-lhe: um tipo magro, com a pele marcada por acnes, as mãos arroxeadas e um sorriso de presunçosa compreensão sobre as fraquezas dos outros. Tipo estranho. Começou a rasgar o cartão, mas o toque do telefone impediu que consumasse a destruição.
Nos cinco minutos em que ficou ao telefone, soube que o preço da laranja tinha aumentado, que o netinho da L. falava “petutinho” e que o “Verdão” fora prejudicado pelo regulamento do campeonato.
Desligou o telefone e voltou ao passado. O filho de seu primeiro patrão chamava-se R. e após ter-lhe deflorado explicou que o seu nome era uma homenagem a um dos Patriarcas Bíblicos e que o seu segundo nome, R., era um tributo a um filósofo que dissera: “Penso, logo, existo”. Naquele momento esses tributos não lhe interessaram, posto que a sua urgência era estancar a hemorragia e tentar amenizar a dor que o sexo lhe dera como presente de boas vindas à adolescência. Contudo, agora e sem saber o porquê, a frase do filósofo voltou-lhe à cabeça. Sim, pensou o que me dá certeza de que existo é o fato de pensar. E como eu posso pensar sem qualquer limite, talvez eu possa existir acima e além do preço da laranja, do “petutinho” do netinho da L. e da derrota do “Verdão”. Será, meu Deus, que estou louca? Ou será que estava antes?
Lembrou-se do cartão que tinha iniciado a rasgar e sentiu aflição e ansiedade e correu de volta ao quarto torcendo para encontrá-lo intacto, ou pelo menos não destruído de todo. E lá estava o dito cujo. Um pouco de Durex restituiu-lhe a integridade e ela, por via das dúvidas, anotou o telefone na agenda que lhe trouxeram como recordação de uma romaria à Aparecida do Norte.
“F., o Pensador”. Quem seria aquele tipo? Tentou resistir, mas o impulso e a curiosidade foram mais fortes e ela discou o número impresso. Foi com enorme frustração que ouviu o aviso da Companhia Telefônica que aquele número “estava fora de serviço” por tempo indeterminado. O filho da p. . . , metido a intelectual não pagava as contas. Idiota, desgraçado!
Voltou a si e se surpreendeu, menos com os palavrões e mais com a sua raiva. Onde já se viu? Ficar estressada (adorava esse termo) por causa de um desconhecido? Agora eu posso pensar. Vou refletir sobre esse meu descontrole: corno maldito! Se você não é macho para pagar as suas contas por que oferece o seu telefone? E ia continuar as suas frias, sóbrias e refletidas conjecturas quando, novamente, o telefone tocou. O interlocutor certamente ficou estupefato quando em resposta ao seu insistente convite para um “Churrasco”, umas “Cevas” e umas músicas sertanejas – junto com outros laranjeiros, avós de “petutinhos” e torcedores do “Verdão” ela respondeu:
Vai tomar no . . .
Orientar o interlocutor sobre o caminho e o procedimento que deveria tomar em relação ao convite para o churrasco deu à D. um alivio imenso. Eu penso, logo, posso escolher. Notou o cartão entre o dedo médio e o indicador e pensou, recuou e, por fim, decidiu-se a tentar um novo telefonema ao tal F. – o Pensador. Após a terceira chamada, ouviu a gravação da secretária eletrônica:

Houve uma menina,
Tempo passado.
A primeira cortina,
O ato encerrado.

Houve um menino,
Uma vida embalada.
Junto ao corpo, afastando o desatino;
Crescendo, a vida corre acelerada.

Houve festa, houve riso,
Houve esperança;
Há a espera, há o siso.

Houve menina, houve criança.
Houve festa, houve esperança.
Houve o câncer. Eu sou o que resta!

Antes que a mensagem eletrônica continuasse, num átimo, ela pensou que o adjetivo de “Pensador” deveria ser acrescido de “Bobagens”. Soneto idiota! Tanto quanto o autor.

“No momento não posso atender, deixe seu nome e telefone que entrarei em contato.”

E D., um pouco indecisa, deixou o que lhe era pedido. Aliás, sempre fizera o que lhe era solicitado, mandado ou exigido. Na infância, o seu querer e as suas vontades eram manipulados pela mãe adotiva, pela madrinha, pela vizinha e pelas regras de como uma “moça distinta” devia se comportar. Depois, anos depois, a sua vontade e o seu querer passaram a ser comandados pela opinião das colegas, amigas, mensagens subliminares ou não, das novelas, pelos estereótipos da “independência feminina” e o seu caráter frágil e deformado moldou-se aos imperativos do “Mundo Moderno”, onde cabe à mulher “recuperar o tempo perdido e ocupar o seu espaço”.
Nesse ponto, de Tempo e Espaço, ela sempre encontrou uma barreira quase instransponível: para recuperar o Tempo perdido, o que se lhe afigurava como fazer as farras que gostaria de ter feito e não pôde, havia a questão da ocupação de Espaço. Afinal, o espaço que ela ocupava agora, com os seus 110 kg. era quase o dobro do que ocupara quando tinha os curvilíneos e jovens 65 kg e esse aumento da área ocupada era um transtorno para conseguir os parceiros que lhe proporcionariam as farras e a reconquista do “Tempo perdido”. Um transtorno! Mas fazer o quê? Não era culpa sua. Foram os corticóides da quimioterapia que a levaram àquele peso.
Contudo, como descobria que pensava e, portanto, existia começou a imaginar que talvez houvesse algum outro sentido naquilo tudo. Seria possível ou provável que recuperar o Tempo e ocupar o seu Espaço fosse algo mais que se tornar magra, desejável e ativa sexualmente. Talvez fosse tornar-se independente das antigas amarras e das modernas ataduras. Mas, como desfazer esses nós? Como se livrar das regras de “uma moça direita” de antigamente e das pressões de ser (?) uma “mulher atual, plena e realizada” de agora?
O tempo livre, a sagrada aposentadoria pingando todos os meses e essas novas inquietações conduziram-lhe ao desfecho esperado: voltarei a estudar, decidiu-se. O curso Supletivo que procurou ficava numa casa de aspecto sórdido que lhe fez lembrar os escritórios dos agiotas, a quem recorrera tantas vezes e os das empresas de cobrança aonde fora conduzidas em tantas outras ocasiões. O fato da secretária da Escola ter eliminado várias barreiras burocráticas, num primeiro momento lhe agradou; num segundo, porém, deu-lhe a certeza que o imperativo econômico era mais forte que as exigências ditadas pelas competentes autoridades que regulam o ensino no País. Tudo pronto e, dentro do possível, de acordo com os ditames das leis, D. recebeu as apostilas e no dia seguinte iniciou as aulas. O primeiro susto que tomou foi quando percebeu que a professora não era tratada com o respeito que na sua infância era uma norma rigidamente seguida. O segundo, foi pelo fato da mesma professora não ensinar absolutamente nada e se limitar a falar para os alunos as respostas das provas. O terceiro, foram os próprios alunos, na maioria jovens e incapazes de entenderem as questões mais simples, as quais, mesmo sem uma educação formal, ela resolvia facilmente. Porém, ela tinha as apostilas e as estudou com afinco e quanto mais ia aprendendo notava que as dúvidas que antes a perturbavam e amedrontavam agora já se mostravam claras, resolvidas e isentas de perigo.
Ao final de quatro meses terminou o curso supletivo, mas por questões de ordem burocrática não recebeu o certificado e assim não pôde prestar o vestibular. Sem muito que fazer passou há dedicar menos tempo à televisão e a freqüentar mais assiduamente a biblioteca e, dando vazão ao seu lado romântico, leu “Madame Bovary” de Flaubert e, claro, não conseguiu reter as lágrimas no final. O incerto e provável horrível destino da pequenina filha da perversa Madame atormentou-lhe por vários dias. Tornou a ler e a chorar. E ficou admirada em constatar que as lágrimas eram provenientes de um mundo imaginário que ela captara e amoldara dentro de si. O mesmo aconteceu com o “Vermelho e o Negro”. Com “Germinal” ela pôde sentir-se na pele da mulher protagonista. Particularmente no capitulo onde a personagem imagina o que fará com a esmola que espera receber. Quantas vezes ela própria já tinha passado por isso, meus Deus! Ao fim de “O Processo” de Kafka, ela descobriu que não havia entendido absolutamente nada e observou que o marcador de páginas que usara em todos os livros era o cartão do “F., o Pensador”.
Primeiramente estranhou ter conservado por mais de um semestre aquele pedaço de papel. Só depois é que estranhou o fato dele não ter respondido ao seu telefonema. Será que ele tinha ouvido a mensagem? Ou será que ela é que tinha deixado o número errado? É certo que a privatização do sistema telefônico tinha permitido-lhe adquirir a sua linha, mas isso não lhe ajudara a memorizar o número de seu telefone. Pensou que sim, talvez fosse isso que tivesse ocorrido. Ou será que ele tinha morrido? Afinal ele lhe dissera que a sua expectativa de vida estava reduzida há poucos meses, conforme lhe dissera a médica residente que o atendera na Universidade e, também como lhe dissera a médica perita do Instituto de Previdência, que ante o seu pedido de um prognóstico, disse-lhe para confiar em Deus. Sabe-se lá o que teria acontecido . . .
Recolocou o cartão no meio de “O Processo”, mas a curiosidade persistiu e terminou por vencer um estranho medo da morte que sentiu. Sem muita convicção dirigiu-se ao telefone e discou o número escrito no cartão. Após cinco chamadas, ouviu a seguinte mensagem:
Cometi uma poesia,
Acreditei, enjoei da hipocrisia;
A roda do dia,
A roda da ironia.

O sentido da anomalia,
O vestido da boemia.
Noite, agora, fugidia;
Vencido pela covardia.

A moça me olha sem que me sorria,
É mais um dia que principia,
Doem as pernas; a revelia
É difícil o conforto. Rebeldia.
Trejeitos, jeitos. Antipatia.
Dói a cabeça. O menino insiste na melodia.

No momento . . . D., não soube o porquê, suspirou aliviada. Continuava um idiota. Um péssimo poeta, mas vivo. Deixou seu nome e seu telefone.
Depois de ultrapassar a fase dos grandes romances, D. sentiu necessidade de conhecer um pouco mais daquilo que lhe rodeava e leu “Casa Grande e Senzala”, “Os Sertões” e nessas paginas viu-se retratada. Quando leu “A Hora da Estrela” teve certeza que era ela a “Macabéa” ali aprisionada. O habito foi refinando a sua capacidade de julgar textos, estilos e, então, já saboreava o que lia. Começou a ter uma noção mais clara das causas de sua miséria e, principalmente, começou a ter o vislumbre de que a miséria não era apenas sua. Era generalizada. Só não conseguia ainda ver o motivo de haver essa miséria geral. E para entender melhor os motivos de tantas dores e mazelas, buscou as paginas da religião e, conforme a indicação do sacristão da paróquia, comprou uma Bíblia. Já tinha então certa base para julgar os estilos e considerou o bíblico como péssimo. Contudo, o que mais lhe chocou foi quando leu que Abrão trocou Sara, sua mulher, pelos favores do Faraó. A existência de gigolôs desde o inicio dos tempos fez com que abandonasse as “Sagradas Escrituras”. Na seqüência leu os livros do espiritismo “Mesa Branca” e como ele humanizava os espíritos e o próprio Deus, tornando banais todos os mistérios, ela se apaixonou. Aquilo sim era lógico, racional. O que ela não sabia é que a Lógica e a Racionalidade, como tudo mais, são relativas e foi assim que num certo dia ela descobriu em uma prateleira nos fundos da Biblioteca uma apostila fotocopiada, encadernada com espiral e que ostentava o pretensioso titulo: “Filosofia para Leigos”, escrita por “F. o Pensador”.
O nome do autor fez com que se lembrasse daquele estranho que não respondia aos seus telefonemas. Seria o mesmo? Curiosa, começou a folhear a apostila e na letra ‘P’ encontrou o capitulo de Platão. Nele, leu que o Mundo Físico seria um mero reflexo do “Mundo das Idéias”. Simples sombras. Leu, exultante, a “Alegoria da Caverna” e concordou plenamente com o autor. Efetivamente, pensou, só enxergamos sombras. E teve de admitir que os livros de espiritismo que tanto amara eram apenas ‘sombras’ dessa verdade afirmada Platão há milênios. E pior, os autores desses livros não tiveram nem mesmo a delicadeza de informar a fonte de onde beberam e de onde tiraram os seus plágios.
Naquele dia e naquela noite leu toda a apostila e nas resenhas dos pensamentos de cada filósofo ia descobrindo as teorias que embasavam as suas angústias, seus pensamentos, seus medos e as suas esperanças. Mas como todas as correntes eram antagônicas acabou bem humorada, tendo de concordar com Sócrates e assumiu para si a máxima de que “Só sei que nada sei”. Ficou pacificada por não lhe ter ocorrido a dúvida seguinte: o que é saber?
Na manhã seguinte, insone, mas bem disposta começou a discordar também de Sócrates e arriscou-se a afirmar que sabia, sim, pelo menos uma coisa: tanto a Bíblia quanto os livros espíritas e os de auto-ajuda não passavam de um plagio mal feito do que, muito antes, os gregos já tinham escrito e descoberto. Ainda não tinha noção de que os próprios gregos beberam em fonte mais antiga. Mas enfim, onde isso vai parar? Após essa conscientização estremeceu. De repente todo aquele arcabouço de idéias, conceitos e regras que a constrangiam, mas que também a sustentavam acabou. Desmoronou. E, então, foi a sua vez de entender o que Sartre disse quando afirmou que: “O homem está condenado à Liberdade”.
Certo dia, ao sair da Biblioteca D. notou que um mendigo chorava. Vacilou por um instante, pois sabia que era comum que chorassem para comoverem os transeuntes e, assim, tornar-lhes mais generosos. Contudo, aquele choro pareceu-lhe diferente. Parecia o mesmo choro que ouvia no orfanato onde passara a infância. O choro da dor de ouvido sem que existisse uma mãe para colocar a fralda aquecida. Ou o choro de medo do escuro sem que houvesse um pai que afastasse os terrores da noite. Pareceu-lhe o choro dos abandonados... Ainda vacilante, aproximou-se do mendigo e estranhou quando ele agradeceu, mas recusou o dinheiro trocado que ela lhe ofereceu. Por um momento e atrás da barba rala e suja, D. vislumbrou um rosto que lhe pareceu familiar.
- Qual é o seu nome?
- Renê, igual ao do filósofo.
- De onde você vem?
- Eu acho que de V. Mas eu não sei se V. existe mesmo.
D. recuou apavorada. V. existia sim! Renê existia sim! E ela existiu dentro de V. e Renê existiu dentro dela. Dois estupros que o tempo amenizara e que agora voltaram com ímpeto total. O que era um recuo apavorado tornou-se um caminhar horrorizado. Uma fuga inútil, todavia. V., Renê, estupro, terror, calor, poeira, dor, sangue, o velho Felinto estavam dentro de si e na fuga a perseguiam par a par. Tão logo chegou à casa trancou a porta e calçou a maçaneta com uma cadeira.
- Por que agora, meu Deus?
Quando percebeu que já falava sozinha perdeu o que lhe restava de pudor e gritou a pleno pulmão:
- Não, não! Depois de tudo por que já passei. Por quê? Não! De novo não!
O toque da campainha fez com que ela se recompusesse e sem conseguir esconder os olhos vermelhos atendeu à vizinha que lhe trazia a imagem de Nossa Senhora Vencedora, como, aliás, fazia todas as 5ª-feiras. Pegou a imagem da Santa e não respondeu à vizinha que ansiava em saber o motivo dos seus olhos vermelhos. Sem atentar para a indelicadeza, fechou a porta e deitada no sofá deixou a mente inventariar a sua história.
Da mãe e do pai biológico nunca teve qualquer noticia. Viveu seus sete primeiros anos no orfanato e depois foi adotada por uma mulata muita bonita e que era uma das estrelas do bordel onde ganhava o sustento. E como era estrela, a mãe Rosangela logo foi escolhida para viver com um engenheiro que chegara a cidade para construir mais uma das suas “fabulosas fontes sonoras e luminosas”. O tipo, de fato, era bem apessoado e a mulata viu nele a sua grande oportunidade. Porém, o titulo de engenheiro era tão falso quanto a sua origem carioca. O título, aliás, era auto-concedido posto que ele nunca avançou além do que se chamava de “curso ginasial”. Mas era bem falante e embora fosse filho das Alterosas usava o típico sotaque de Ipanema. Na verdade, era um pobre diabo que a traição de sua mulher, a doce Verinha, jogou no mais baixo patamar da vida, da qual se alienava graças às duas garrafas de pinga que ingeria todos os dias, dos quais resultou a cirrose que tempos depois o matou. Cerrrto, sangue bom?
De sua família adotiva, o que D. podia lembrar era das surras que a mãe e a madrinha lhe aplicavam no intervalo regular de dia sim, dia não. Uma cadência que foi aumentando na medida em ia crescendo e na proporção que o velho essssperrrrto a cobiçava. Aos doze anos estava amestrada nas “boas maneiras de uma moça direita” e foi por isto que quando o velho insistiu em deitar-se com ela que fugiu apavorada.
Um caminhão que transportava sofás a trouxe até V. e ela foi entregue ao dono do caminhão e dos sofás. Trabalhou como empregada doméstica por uns quatro anos e depois do filho do patrão “ter destruído a sua honra”, conforme tinha sido amestrada, fugiu novamente.
Chegando à capital perambulou pelos bordéis da vida até que conseguiu um “emprego decente” e digno de “uma moça direita”. Foi ser operária num laticínio e fazendo toda a economia que pôde comprou um apartamento que os bons governantes proporcionam às classes desfavorecidas. Também comprou os móveis da casa, as roupas, as comidas e os doces. Variados e ricos em lipídios e em glicídios o resultado dessa festança pantagruélica foi que logo atingiu os três dígitos na balança. Era-lhe um tormento, pois via na televisão que o correto era ser magra. Tinha até um apresentador que dizia ser uma exigência da sociedade atual ser Magérrima, ouviu bem? Magérrima. Também via que a mulher moderna deveria ser atuante, ativa e desembaraçada. Deveria realizar-se profissionalmente e atingir seus objetivos “enquanto e a nível de pessoa”. Sim senhora! Era o que se dizia na televisão e o que as suas colegas do laticínio repetiam. E D. fazia o possível para ser “plenamente resolvida”. Se as outras diziam que eram, ela também tinha que ser, ora pois.
Só não conseguia entender porque, embora fosse “plenamente resolvidas” todas elas ansiavam por casar. O porquê de todas, mesmo não admitindo, ansiarem em deixar os seus malditos empregos. Mas enfim, sabe-se como é . . .
A sua imensa gordura afastara os homens de sua vida e, na verdade, ela preferia que fosse assim. É certo que não podia contar para suas colegas, mas o fato é que ela não gostava da liberdade de poder transar com muitos e secretamente aspirar, isto sim, encontrar um “príncipe encantado”. Antes lhe era proibido querer ter muitos homens. Agora lhe era vedado o desejo de ter apenas um. Eta mundo besta!
Ela leu num pára-choque de caminhão e segundo a Suzi, tão inteligente que chegara ao 2° colegial, aquela frase era de um poeta muito famoso.
E a vida passado, os dias escorrendo, as novelas se sucedendo e eis que num belo dia, no exame de rotina no laticínio, surgiu a leucemia. Choro, medo, desespero, quimioterapias, náuseas, vômitos e, por fim, a remissão. A remissão e a neuropatia periférica que lhe trouxe a Aposentadoria por Invalidez e o tempo livre que estava usando para descobrir que havia algo além das sombras na caverna de Platão.
O albergue municipal na verdade era uma Ong financiada por instituições holandesas e não obstante a presidenta da Instituição desviar grande parte dos recursos para sua conta particular, o lugar era razoavelmente bem estruturado. Logo após o hall de entrada, havia a grande sala, depois o refeitório e, na seqüência, um longo corredor era ladeado pelos quartos. Aqueles do lado direito destinavam-se aos homens, enquanto que os do lado esquerdo eram ocupados pelas mulheres. Os encontros entre os sexos eram comuns e malgrado serem constituídos na maior parte das vezes de tentativas de consumação infrutíferas não deixavam de serem tentados. Até porque o Viagra fora proibido por ordem expressa da Presidenta que temia que o medicamento pudesse afetar o coração de seus “vovozinhos”. No sentido patológico, é claro. Não que lamentasse a morte dos mesmos, mas o problema é que enquanto o defunto não fosse substituído por outro, a verba holandesa diminuía afetando as Receitas da Casa e as da Presidenta.
Já pensou? Justo agora que o meu “sobrinho” – de vinte e cinco anos, 1,80 de altura e peito de remador – está prestes a concluir o seu intrincado curso de Personal Trainner. Ora, aqueles malditos velhos tinham de continuar vivos, sim senhor!
Renê entrou no quarto do velho F. e ficou deslumbrado: duas camas, dois armários, uma mesa cheia de livros e um radio de pilhas no criado-mudo. Luxo igual, após tanto tempo, pareceu-lhe um pedaço do céu. E ficou emocionado quando o velho o convidou para se instalar junto dele. Ao deitar-se estranhou menos a maciez do colchão e muito mais o contato dos lençóis com a pele. Dormiu o sono dos deuses embriagados pela Ambrosina. Naquele seu Olimpo sentiu-se tão protegido quanto no útero de sua mãe. Aquela mesma que ele costumava chamar de “parasita”. Ao lembrar-se disto, chorou.

- Doralice Antunes!

O impulso de se levantar rapidamente dessa vez não foi contido, pois ao contrário do ocorrido no Instituto da Previdência, ali ela precisaria mostrar-se saudável.

- Bom dia! Meu nome é Suellen e eu sou a Presidenta da Instituição “Raio de Luz”. Tudo bem com você?
- Graças a Deus. Rapidamente questionou-se sobre a propriedade da respostas e só se tranqüilizou ao lembrar-se que estava numa instituição religiosa (sic) e que ali não precisava medir as palavras de seu vocabulário que agora já era de tamanho médio.
- Posso te chamar de D.?
- Por favor.
- Então D., o árduo trabalho que fazemos aqui é o de auxiliar o Ser Humano, espelho de Deus e o Ápice da Criação.
- Que lindo, Suellen!
- Você segue alguma religião?
- Não, mas respeito todas elas. Julgou que seria “politicamente correto” falar assim.
- Ah, que bom! Agora me conte porque você se interessou em trabalhar como voluntária, aqui.
Foi a primeira vez, naquela entrevista, que D. precisou mentir. Achou prudente não mencionar que deixara o trabalho voluntário na Biblioteca Municipal por temer um novo encontro com o seu Passado e que, além disso, sentia necessidade de ter um compromisso regular para se iludir que fazia falta a alguém, que servia para alguma coisa.
- É uma forma de retribuir tudo de bom que o Nosso Senhor me deu Suellen.
- Ótimo, vamos começar?
- Vamos sim.
Tendo sido encaminhada ao setor de Serviço Social, a primeira coisa que aprendeu foi que a Presidenta era corrupta e ninfomaníaca. Que os seus “sobrinhos” de vinte e cinco anos giravam em número de cinco e que os gajos a saciavam em seus desejos e vaidades. Outro fato curioso é que todos os “sobrinhos” diziam sonhar em escrever livros que combatessem as injustiças sociais. A Suellen aceitava a contragosto essas aspirações juvenis – sabe-se como são a rebeldia e o idealismo dos pós adolescentes – e achava que eles deveriam, isso sim, escrever livros de auto ajuda que vendem como “pão quente”. Mas é a juventude.
- Um horror menina, precisa ver!
Devidamente apresentada à realidade do lugar (do Mundo?), D. sentiu-se mais a vontade e menos pecadora por ter mentido. Em resposta à pergunta seguinte, escolheu trabalhar na Biblioteca da Instituição, onde lhe disseram que um velho explicava as obras clássicas aos internos que tivessem a curiosidade (ou a falta do que fazer) de aprender. O que viu lhe agradou: embora pequena a sala de leitura era clara e limpa. No centro havia uma longa e sólida mesa de madeira e todas as paredes sustentavam estantes recheadas de livros e revistas. Rodeando a mesa ela percorria as estantes e pesava a preguiça em ler tudo aquilo e o quanto teria sido bom ler aquilo tudo. E nessa divagação ficou por um bom tempo. Mas precisamente até que foi sacudida por uma voz áspera e repleta de sotaque das Alterosas:
- Uai, você é nova aqui?
- Sou sim. Eu me chamo D.lice, mas pode me chamar de D.. Comecei hoje a prestar serviço voluntário na Instituição.
- Hum.
Como entrou, o velho saiu. O seu caminhar só era perceptível pelo barulho que a sua bengala fazia ao tocar o chão. Sem saber o que fazer, D. começou a folhear algumas revistas e quando ia começar a ler a reportagem sobre as mulheres que são bem sucedidas profissionalmente, mas infelizes por não se casarem e não terem filhos, foi interrompida pela volta do velho e de mais quatro acompanhantes.
As três mulheres recém chegadas não lhe chamaram a atenção, porém o homem que acompanhava o velho causou-lhe um baque e, na mesma hora, ela sentiu o coração acelerar, as mãos ficarem frias e só a muito custo e grande esforço é que conseguiu reter o vômito. Sim! Agora limpo e barbeado, ela não teve dificuldade para reconhecer aquele que lhe “desonrara”. O maldito, mil vezes maldito, Renê. O “CORONÉ” de V.. O rei do Inferno onde não faz menos que 40° graus, onde as árvores são retorcidas, onde todos são gordos, onde todos usam roupas pretas (apesar do calor, mas eficientes, conforme acreditam para tornar-lhes magros); onde a poeira vermelha recobre os vivos e mortos – lembrou-se da sujeira perpétua – algo tinha que ser – do túmulo do velho Felinto; onde se toma sorvete de “creme holandês” por que “tem gosto de infância”, onde o riso histérico precede, permeia e finaliza qualquer conversa numa sábia atitude para iludir-se que se é feliz.
Renê envelhecera muito, mas ainda tinha alguns atrativos. O que se modificara muito fora a sua expressão fisionômica. Agora parecia meigo e sereno. Perdera aquela arrogância que lhe fora tão característica e quando ele a olhou e lhe sorriu ela viu quase que um outro homem. Quase que um outro Renê. Muito, mas muito mesmo, diferente daquele que lhe estuprara. Aos poucos a sua respiração voltou ao normal, o suor secou em suas mãos e ela sentiu-se calma. O fantasma que dias atrás lhe aterrorizara, agora era apenas uma amarga lembrança que – tinha certeza – aos poucos ela conseguiria digerir.
O velho convidou-a a juntar-se ao grupo e após ter sentado na cabeceira da mesa disse em tom solene:
Eu me chamo F. e me deram o adjetivo de “Pensador”.
A segunda charada do dia D. decifrou naquele momento e não resistindo à curiosidade perguntou-lhe:
- O senhor não se lembra de mim?
- Não. De onde e por que a conheceria?
- Nós estivemos juntos na ante-sala da Perícia do Seguro Social, lembra-se? O senhor até me deu o seu telefone e eu tentei ligar-lhe algumas vezes, mas sempre caia na secretaria eletrônica.
- Não, não me lembro. Quanto ao telefone devo avisar a todos que geralmente ele é desligado por excesso de pagamentos.
O irônico “excesso de pagamentos” não despertou as gargalhadas que o velho esperava porque não fora compreendido. Assim, ele voltou ao seu arrazoado:
- Muito bem, o que faremos a partir de hoje será o que antigamente era chamado de Sarau. As pessoas se reuniam para ler e discutir literatura. Alguma pergunta?
- Por favor, disse D., eu presto serviço voluntário aqui na Instituição. Hoje é o meu primeiro dia e eu não sei se posso participar. Posso?
- Olha, como você é voluntária eu não sei se pode participar. Seria bom se você perguntasse à p.. da Suellen.
- Está certo. Com licença.
Uma apreensão quase infantil tomou o seu espírito e enquanto aguardava que Suellen terminasse de atender um de seus “sobrinhos” sentiu novamente o coração disparar. Naquele mesmo dia reencontrara dois homens que em passados diferentes e de modos distintos entraram em sua vida. E, agora, estava prestes de poder compartilhar com outros amantes da literatura (a faxineira da Instituição preferia chama-los de desocupados) a sua ânsia de saber e a vontade aprender. Eram tantas as emoções que ela não percebeu que o “sobrinho” de Suellen arfava extenuado enquanto que a “tia” tinha os olhos brilhantes e as faces muito rosadas.
Sim, é claro que você pode, D.. É até bom que você os mantenha ocupados com estas bobagens.
Andando com a pressa que as pernas travadas permitiam, D. conseguiu chegar quase que no fim do Sarau.
- E então? Tudo bem? Você poderá participar dos saraus conosco?
- Sim. Estou devidamente autorizada – e tentando ser engraçada – abençoada.
Como ninguém riu de sua tola piada, arrependeu-se na mesma hora.
- Bom, nós leremos durante a semana e na próxima segunda-feira discutiremos o que foi lido. Certo? Começaremos com “Ilíada” de Homero e com “Eneida” de Virgilio. Tudo bem?
Cada qual pegou os respectivos exemplares e na saída Renê aproximou-se de D. e com a humildade que tanto treinara para conseguir esmolas disse-lhe:
- Moça, eu não tenho quase nenhum estudo e será que a senhora poderia me ajudar?
Ter sido chamada de “moça” agradou sua vaidade. De “senhora”, o seu orgulho pátrio. Afinal quando ele a estuprou, entre outros palavrões, gritava alucinado:
“É isso que você merece sua brasileira vagabunda! Eu sou sírio! Entendeu sua p.. brasileira! É só para isto que servem as ‘vacas’ do Brasil. Dar para estrangeiros. È por isto que tem a fama de serem baratas. Cadela . . .”
- Posso sim. Eu vou estar aqui o dia todo e depois do almoço você pode me procurar.
Enquanto ele se deliciava com a perspectiva de ter “um horário de almoço”, além do próprio – é claro – ela se deliciava com a oportunidade de vingar-se daquele “turco” desgraçado que tinha vindo “matar a fome aqui”. A “vaca brasileira” serviria para mais alguma coisa, viu seu “sírio filho da p...”, pensou.
- Onde estão os outros?
Meio constrangida e até um pouco temerosa, D. respondeu ao velho:
- As outras ‘meninas’ não virão mais, seo F..
- Por que?
- É que quando escutaram que haveria um Sarau elas pensaram que seria igual ao que freqüentavam em São José. Chegaram a me dizer que lá havia homens tão ricos que tinham até caminhonetes Hilux. Aquela loura, a Elzamari, até nos mostrou as fotos dos bailes. Aqui elas também acharam que seria um baile.
- Muito bem. Vamos continuar apenas nós três. Leram os livros?
- Sim. Eu e o Renê lemos juntos.
- E o que mais chamou a atenção de vocês?
- Bom mestre, falou Renê, eu gostei dos combates. Parecia até que o tal de Homero e o outro, o Virgilio, tinham assistido aos filmes do Bruce Lee.
- Não seria o contrário Renê? Não teria sido os cineastas que se inspiraram nestes e em outros livros para fazerem os seus filmes?
- Será?
- E você D.?
- Eu gostei do fato da Guerra de Tróia ter sido motivada pelo amor. Achei tão lindo!
- Muito bem. Agora vamos analisar os outros aspectos:
1°) o tema das duas obras é o mesmo, porém cada um dos lados conta a sua versão. Certo?
- É
- 2°) o motivo da guerra não foi, viu D., o amor, mas sim a cobiça e o rapto de uma mulher.
- Hum, hum.
3°) os dois livros foram escritos há mais de 3.000 anos. Certo?
- Tudo isso?
4º) O que mudou daquela época em relação à nossa?
- As armas, mestre?
- Sim, exatamente Renê. Apenas o armamento uma vez que o motivo dos conflitos atuais, basicamente, ainda é a cobiça. E a condição da mulher continua ser a de um objeto a ser cobiçado. Em Tróia, o objeto do desejo, de cobiça era uma mulher, mas independente do objeto o que motiva as guerras atuais continua sendo a cobiça.
- Mas e o Amor não conta, seo F.?
- O Amor, D., é apenas mais uma das faces da cobiça. Quem ama cobiça o Ser Amado. E aquele que amando é rejeitado ou renuncia ao seu Amor, no mínimo, cobiça a compaixão e a solidariedade dos outros. Ou, então, deseja o título e desprendido ou altruísta. Concorda?
- Acho que sim. Não sei.
- Veja D., quem ama cobiça aquela(e) a quem ama ou, então, a glorificação de seu sofrimento. Ou avança sobre aquele(a) que não lhe pertence. Ou, ainda, busca ter mais méritos que agradariam o Ser amado.
- Mas, seo F., e nos casos de Amor Puro? Quando o que se quer é apenas entregar-se completamente?
- Não deixa, D., de ser também uma forma de cobiça. Essa renúncia, na verdade, é o desejo de transferir para o outro a responsabilidade de proporcionar a felicidade para si mesmo.
- Nossa!
- Bem, vamos prosseguir. Se eu disser que, em resumo, o que podemos captar das duas obras é o fato que após mais de três mil anos nós ainda somos iguais e que não avançamos um milímetro sequer no que se refere a nossa essência vocês concordariam?
- Eu concordo mestre. Agora eu posso ver que tudo o que cobicei na vida era apenas parte da minha cobiça maior e esta era simplesmente “ser alguém”. Olha, eu nunca tive estudo; na minha família sempre imperou a lei da sobrevivência e eu embarquei nessa onda. Eu não sabia, mas algo me dizia que eu “não era” e que para “eu ser” eu “devia Ter”.
- Eu não sei seo F., se posso concordar. Eu acho que nós avançamos sim. O senhor pode ver que a mulher de hoje é independente, trabalha, estuda e “a nível de pessoa” e “enquanto cidadã” (achou-se o máximo por ter decorado essas expressões) é “plena e realizada”.
- E é feliz?
- Como?
- Atenção D., nós estamos falando da essência e não da aparência.
- Não entendi.
- Veja, por exemplo: no telejornal da noite nós assistimos que as mulheres árabes continuam sufocadas pelas leis machistas. Agora há pouco nós vimos que no Afeganistão elas tinhas que se cobrir dos pés à cabeça e eram espancadas, humilhadas etc. Concorda?
- É sim. Eu achei um horror.
- Mas logo após o telejornal, assiste-se a uma novela que retrata os costumes árabes e a protagonista encanta e fascina de tal maneira as mulheres que se pode afirmar que a grande maioria, talvez a totalidade, delas sonha em ser como a atriz. Senão a própria. Prova disso é que no último carnaval a fantasia que mais vendeu era inspirada na dita cuja. Estou certo?
- Sim, a Jade é linda. É eu acho que nesse ponto o senhor está certo.
- Então D. nós chegamos num impasse. Externamente a mulher quer, ou melhor, talvez seja induzida a ser “moderna”. Porém, no seu intimo, ela quer, de certo modo, ser submissa.
- Mas seo F., talvez o que a mulher admire na atriz que representa e simboliza a mulher árabe seja apenas a sensualidade e não a opressão que ela sofre.
- Mas isto, D., não deixa de ser uma outra contradição. Afinal, quando as feministas queimaram os sutiãs não estavam protestando justamente por serem tratadas como meros objetos sexuais? Como explicar, então, esse desejo de ser sensual e, ao mesmo tempo, mas em sentido contrário, não admitir ser um símbolo sexual?
- Eu não sei.
- Contudo D., é possível que em nossa época esteja acontecendo a antítese que Hegel afirmou.
- Como assim?
- Hegel foi um filósofo que entre outras coisas afirmou que a história é um Processo Dialético, ou seja, há uma tese, uma antítese e uma síntese.
Sem perceber Renê roncou.
- Neste caso D., o predomínio do Homem é a tese a qual é confrontada pela antítese que é o avanço da Mulher. Pois bem, num certo momento, desse embate surgirá uma acomodação que será a Síntese.
- E, então, o Homem e a Mulher dividiriam tudo, não é mesmo? Mas será, seo F., que essa tal de síntese vai demorar?
- Eu não sei D.. Não sei nem mesmo se é a Antítese que está acontecendo ou se o que existe é apenas uma manipulação da mulher.
- Manipulação? Como assim?
- Sobre isto nós conversaremos daqui a alguns dias. O que é certo, todavia, é que a “tal de síntese” custará muito a chegar. Se chegar.
Nisto, Renê acordou.
- Mas por que?
- Nós vimos D., através de Homero e de Virgilio que mais de três milênios não foram capazes de mudar a nossa essência e que essa essência se resume em desejar; ou segundo Schopenhauer, na “vontade”, no instinto de conservação. E isto, D., pode, ou melhor, deve estar relacionado ao nosso desenho biológico. Gostemos ou não. A rigor, somos formados e limitados por um conjunto de elementos químicos baratos e disso resulta que Homens e Mulheres nunca serão iguais porque os elementos que os formam, embora iguais têm dosagens diferentes.
- Mas seo F., as mulheres não querem ser iguais aos homens. Querem, sim, ter os mesmos direitos.
- Querem mesmo? Então como você explica o paradoxo do fascínio que a mulher árabe representa, sendo que ela é o protótipo da mulher oprimida? D., houve um dramaturgo no Brasil, para horror das feministas, que disse: “toda mulher gosta de apanhar” e ao ser questionado se ele se referia a todas elas, ele respondeu que não: “só as mulheres normais”. Mas por hoje chega. Durante a semana pesquisem quem foi Marx e Engels e qual o significada da expressão: “Exército de Reserva”.
Enquanto o velho dava essas instruções finais, Renê refletiu muito sobre a afirmação do dramaturgo e soltou uma sonora gargalhada. Não pela frase em si, mas por ter, pela primeira vez na vida, entendido algo abstrato. D., por outro lado, censurou com um olhar severo aquela risada e começou a compreender o que o velho tinha lhe perguntado na Previdência. De fato, será que tinha valido a pena?
O primeiro impulso foi responder que não, pois pelo que via em seu redor a mulher não conquistara o “seu espaço”, mas apenas acumulara funções; ou, então, as delegava para outras mulheres. Uma mulher oprimindo outra mulher. O sonho dos machistas e o pesadelo das feministas? Em época de “globalização” seria a “terceirização da opressão”. E, a par dessa opressão terceirizada, D. podia ver que a “opressora” ressentia-se do que imaginava ser uma usurpação, por parte da oprimida, de seu espaço e tarefas tradicionais.; ou em outras palavras, esse ressentimento ficava explicito em cada vez que a patroa criticava o trabalho de sua empregada. Sabe-se como é a cabeça das mulheres, enfim . . .
O segundo impulso, ou antes, a reflexão que seguiu ao impulso inicial, aconselhou-a a não dar um veredicto definitivo. Talvez o velho estivesse errado. Homem antigo, idéias antigas . . . Sabe-se como é a cabeça dos homens . . .
Depois, ainda tinha aquela história da manipulação que ela não entendera direito e que o velho não lhe explicara. Melhor, então, não responder de imediato. Talvez fosse apenas senilidade. O certo é que se sentiu feliz por ser madura e não decidir nada. O velho, porém, chamaria o seu amadurecimento de covardia.
E o (sapo?) barbudo Marx entrou em sua vida. E D. constatou que o tal de “Exército de Reserva” existia mesmo. Só que agora era constituído pelas mulheres. Os homens ao invés de defenderam o seu território da invasão feminina deixaram-no livre e aberto. Todas as mulheres agora podem ser pedreiras, médicas, motoristas e o diabo a quatro. Porém, com uma condição: a de terem salários menores. Dados estatísticos que se transformam em realidade cotidiana e deleite para os homens e para os capitalistas. Ambos (os mesmos?) inventaram então “ajuda profissional”, “plenamente realizada enquanto pessoa”, “depressão”, “ritmo alucinante e não tenho tempo” e principalmente “estressada” e “auto-estima”. E com essa manipulação as exploram nas fábricas, nos escritórios, nos consultórios e, pior, nos lares; onde também devem prestar o serviço que é “típico de mulheres” como era no tempo da minha mãe.
- Leram sobre Marx e Engels?
- Sim, mestre.
- E então D., valeu a pena?
- Valeu, velho?

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domingo, agosto 2, 2009 - 17:27

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