Infância (Paulo Mendes Campos)

Há muito, arquiteturas corrompidas,
Frustrados amarelos e o carmim
De altas flores à noite se inclinaram
Sobre o peixe cego de um jardim.
Velavam o luar da madrugada
Os panos do varal dependurados;
Usávamos mordaças de metal
Mas os lábios se abriam se beijados.
Coados em noturna claridade,
Na copa, os utensílios da cozinha
Falavam duas vidas diferentes,
Separando da vossa a vida minha.
Meu pai tinha um cavalo e um chicote;
No quintal dava pedra e tangerina;
A noite devolvia o caçador
Com a perna de pau, a carabina.
Doou-me a pedra um dia o seu suplício.
A carapaça dos besouros era dura
Como a vida — contradição poética —
Quando os assassinava por ternura.
Um homem é, primeiro, o pranto, o sal,
O mal, o fel, o sol, o mar — o homem.
Só depois surge a sua infância-texto,
Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem.
A morte é antes, feroz lembrança
Do que aconteceu, e nada mais
Aconteceu; o resto é esperança.
O que comigo se passou e passa
É pena que ninguém nunca o explique:
Caminhos de mim para mim, silvados,
Sarçais em que se perde o verde Henrique.
Há comigo, sem dúvida, a aurora,
Alba sangüínea, menstruada aurora,
Marchetada de musgo umedecido,
Fauna e flora, flor e hora, passiflora,

Espaço afeito a meu cansaço, fonte,
Fonte, consoladora dos aflitos,
Rainha do céu, torre de marfim,
Vinho dos bêbados, altar do mito.
Certeza nenhuma tive muitos anos,
Nem mesmo a de ser sonho de uma cova,
Senão de que das trevas correria
O sangue fresco de uma aurora nova.
Reparte-nos o sol em fantasias
Mas à noite é a alma arrebatada.
A madrugada une corpo e alma
Como o amante unido à sua amada.

O melhor texto li naquele tempo,
Nas paredes, nas pedras, nas pastagens,
No azul do azul lavado pela chuva,
No grito das grutas, na luz do aquário,
No claro-azul desenho das ramagens,
Nas hortaliças do quintal molhado
(Onde também floria a rosa brava)
No topázio do gato, no be-bop
Do pato, na romã banal, na trava
Do caju, no batuque do gambá,
No sol-com-chuva, já quando a manhã
Ia lavar a boca no riacho.
Tudo é ritmo na infância, tudo é riso,
Quando pode ser onde, onde é quando.

A besta era serena e atendia
Pelo suave nome de Suzana.
Em nossa mão à tarde ela comia
O sal e a palha da ternura humana.
O cavalo Joaquim era vermelho
Com duas rosas brancas no abdômen;
À noite o vi comer um girassol;
Era um cavalo estranho feito um homem.
Tínhamos pombas que traziam tardes
Meigas quando voltavam aos pombais;
Voaram para a morte as pombas frágeis
E as tardes não voltaram nunca mais.
Sorria à toa quando o horizonte
Estrangulava o grito do socó
Que procurava a fêmea na campina.
Que vida a minha vida! E ria só.

Que âncora poderosa carregamos
Em nossa noite cega atribulada!
Que força do destino tem a carne
Feita de estrelas turvas e de nada!
Sou restos de um menino que passou.
Sou rastos erradios num caminho
Que não segue, nem volta, que circunda
A escuridão como os braços de um moinho.

Paulo Mendes Campos, (1922-1991), poeta, cronista e tradutor mineiro.
 In: Melhores Poemas. Seleção de Guilhermino César
 Editora Global, 3a. ed., São Paulo, 2000 

.

Submited by

Lunes, Abril 23, 2012 - 10:57

Poesia :

Sin votos aún

AjAraujo

Imagen de AjAraujo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 6 años 23 semanas
Integró: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AjAraujo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Meditación É preciso fazer alguma coisa (Thiago de Mello) 0 1.781 09/23/2011 - 11:34 Portuguese
Poesia/Intervención Estrada da utopia 0 824 09/23/2011 - 01:27 Portuguese
Poesia/Aforismo O tempo corrente que leva 0 1.639 09/23/2011 - 01:06 Portuguese
Poesia/Dedicada O velho e o menino 0 1.161 09/23/2011 - 00:47 Portuguese
Videos/Musica J.S. Bach - Sheep May Safely Graze (Emma Kirkby, soprano) 0 6.866 09/20/2011 - 23:30 Inglés
Videos/Musica Monteverdi - Venite, venite (Emma Kirkby & Evelyn Tubb) 0 3.304 09/20/2011 - 23:22 Inglés
Videos/Musica John Dowland - Fine Knacks for Ladies (Emma Kirkby) 0 2.941 09/20/2011 - 23:19 Portuguese
Videos/Musica John Dowland - Flow my teares (Emma Kirkby) 0 3.019 09/20/2011 - 23:16 Inglés
Videos/Musica Haendel - Messiah, If God be for as (Emma Kirkby) 0 3.276 09/20/2011 - 23:10 Inglés
Videos/Musica Henry Purcell - Dido's lament, York, 2007 (Emma Kirkby, soprano) 0 4.052 09/20/2011 - 23:07 Inglés
Videos/Musica Pergolesi - Stabat Mater (Emma Kirkby, soprano & James Bowman, tenor) 0 31.439 09/20/2011 - 23:04 Inglés
Videos/Musica Haendel - Messiah, But who may abide recorded in Westminster Abbey (Emma Kirkby & David Thomas) 0 2.333 09/20/2011 - 22:59 Inglés
Videos/Musica Henry Purcell - An Evening Hymn (Emma Kirkby) 0 2.795 09/20/2011 - 22:55 Portuguese
Videos/Musica Henry Purcell - Abdelazer Suite: II. Rondeau (Roger Norrington & Orchestra of the Age of Enlightenment) 0 4.397 09/20/2011 - 22:53 Inglés
Poesia/Intervención Presenças (Dom Pedro Casaldáliga) 0 1.015 09/20/2011 - 22:46 Portuguese
Poesia/Meditación Poderás ser a nossa Paz? (Dom Pedro Casaldáliga) 0 769 09/20/2011 - 22:38 Portuguese
Poesia/Meditación Terra nossa, Liberdade (Dom Pedro Casaldáliga) 0 6.375 09/20/2011 - 22:26 Portuguese
Poesia/Meditación Retificação (Saber Esperar) (Dom Pedro Casaldáliga) 0 3.636 09/20/2011 - 22:02 Portuguese
Poesia/Meditación Saber Esperar (Dom Pedro Casaldáliga) 0 3.129 09/20/2011 - 21:59 Portuguese
Poesia/Meditación A verdade (Thiago de Mello) 0 2.526 09/19/2011 - 01:37 Portuguese
Poesia/Intervención Memória da Esperança (Thiago de mello) 0 1.730 09/19/2011 - 01:32 Portuguese
Poesia/Intervención Narciso cego (Thiago de Mello) 0 1.333 09/19/2011 - 01:28 Portuguese
Poesia/Meditación Os Estatutos do Homem (Thiago de Mello) - uma carta universal dos direitos humanos poética. 0 2.188 09/19/2011 - 01:21 Portuguese
Poesia/Meditación Para os que virão (Thiago de Mello) 0 1.316 09/19/2011 - 01:15 Portuguese
Videos/Musica Tocando em frente, de Almir Sater & Renato Teixeira (Xangai) 0 3.353 09/18/2011 - 23:37 Portuguese