Livro das horas vagas
Penso lendo, ajo escrevendo
O murmúrio que vou sofrendo
Numa linha de tantas curvas rectas
Sem ideias ou guias concretas.
Navego perdido e sem sorte
Como a noite sem estrela do norte
Num oceano de dúvidas cansadas
Feito de turvas imagens raras
Do que eu quero ser indeciso,
Igual a um tosco e pobre improviso.
Marco P. S. Dias
A caminhada
No tiquetaque acelerado dos meus dias
Apertam-se-me as horas vagas
E o tempo corre como areia pelos dedos
Como fosse sua natureza ser assim
Apesar de o ser só por eu estar aqui.
Revolta-me tudo ter um prazo,
Não poder ser apenas um acaso,
O cumprir-se a existência
De ser social sem dependência.
Esse tempo indefinido que sempre vagueou
Criou-me para ser aquilo que sou,
Mas retira-me num baile a esperança
De com o mundo ter mais uma dança.
No tiquetaque acelerado dos meus dias
Escapam-se-me as horas vagas
E meu desejo fica como em meio,
Sem tercetos, um soneto só de quadras
Onde tudo o resto são fadas.
Vontade eremita
Não estar do mundo isolado
Para que se faça poesia
É ter que escrever
Antes que nos interrompam,
Cortando em último a meta,
Pois só estar no pódio nos afecta.
Melhor estaria numa estéril floresta
Vendo a quietude por uma fresta,
Não ouvindo mais que o silêncio desta
Pintando só poesia que é festa.
Sou porque tenho que ser
Um eremita sem viela
Nos confins do pensamento
Que são o meu feroz unguento.
Criar algo belo na Literatura
É para o enfermo cansado mundo
E para eu não ser surdo - mudo
Nossa única autêntica e franca cura.
Ser
A vida é esse momento efémero
Que acorrenta os homens à esperança
De uma outra ainda ter
Porque melhor que viver é acreditar
Que esta é só uma passagem
Com forma para a outra espiritual margem.
Essa é que é equilibrada e perfeita,
O contrário desta, injusta e desfeita.
A outra que é sem provas um milagre
Cativa obscuras as almas sem fé
E dá a quem nada tem o mais que lhe é pedido
Não fosse simples o que está perdido
Num caminho que já não comanda
Sentir-se aconchegado por uma voz
Que não houve nem vê mas sente
Porque lhe inculcaram isso sem porquês.
A vida é a barca de todas as marés
Tocando um dia o lodo e noutro o todo
Preenchendo o vazio dos corações
Como fosse o ouro das multidões.
Olhar distante
Retém esse momento
Em que te fixas no espelho
E tenta ver para dentro
De teu ser liquido e vermelho.
Investiga teu querer,
Teus caminhos bombeados
Por uma armada de tornados
Cilindrados pelo bater
Potente de mustang
Que te faz viver
Emocional e completo
Onde desistir te é exangue.
Não sejas do desejo seu deserto,
Uma vida nascida só para morrer!
Circo
Esta alegre e cínica democracia
Tem prazer em haver discórdia
E jubila com a utopia
De não ser por querer o que queria.
Veste-se de riquezas a Nova Belém
E no grande palco das encenações
Dizem o que querem ouvir as multidões
Fazendo do destino da nação
A pobre imagem de um postal recordação.
Fizesse a honestidade ao estado auditoria
E clarividente, a névoa se reflectiria, a água tão
Límpida como um coqueiro azul.
A discórdia está a sul do que não é
Porque os engomados deste país
São meros actores duma história
Onde até há para outros glória
Mas, estes são meras marionetas,
Palhaços vestidos a rigor,
Marionetas engraçadas, fraldas
Empestadas, um moribundo fedor.
Poema do porque
Quando nasci para ti
Na escrita que te dei
Era diferente do que sou
E estava muito longe de onde estou.
Quando me dizes que já não
Digo o que dizes que te disse
Penso que há nisso razão
Mas, depois acho-lhes tolices.
Quando pensas que não sou
Quem era porque mudei,
Não te esqueças de tudo o que te dei
Não será nunca aquilo que te dou.
Esse passado que converges em presente
Não é o futuro que imaginas
Porque se fui aquilo que sou
Serei também dos teus netos o mesmo avô.
Guerra ao ouro negro
Quem dera eu pudesse
Ser anjo sublimado
E que tudo o que tocasse
Pudesse ser por mim amado
Quem dera embelezar
O mais negro dos cenários
E seria eu a anti-gaiola
Dos infelizes canários.
Fosse ainda uma criança
E brincaria como quem dança
Feliz por estar contente
Só como rodeado de gente.
Posso pouco de mim dar
Mas, pode minha fé
Andar em seu próprio pé
E fazer-me eu um planador,
Com combustível de ar e calor
Afastando do mundo esse rude
Humano vício que é o crude.
Os passos finais
No tempo da censura ditada
Respeitava-se a Terra nossa aliada,
Agora com tanta liberdade dada
Jaz morrendo devagar e muda a coitada.
Se uma é duradoura doença
A outra não foi para essa a cura
E aquela que mais perdura
É alvo fácil da nossa vil ofensa
E não fazer desta nossa crença
É mostrar que não se pensa
Que um dia não haverá sorrir
E nossos filhos não terão devir.
Quando o nascer não existir
Também a morte deixará de vir
Porque escolhemos o destino cruel
De alimentar a esperança
Com o suco do nosso fel
Tal qual geme calado o animal
Com sua ferida profunda fatal,
Vindo ao mundo sem razão ancestral,
Para um viver indiferente afinal.
Não dês
Dá a quem nada quer ter
Um diário e imundo lixo
E o infeliz olhará fixo
O que jamais irá perder.
Dá aos pombos o teu milho
E nunca mais verão outro trilho.
Dá ao homem tudo que quiser
E verás o menos que fizer
Será a melhor ganha batalha
A escultura que com agrado talha.
Dá a quem não tem água
E esperará que procures
Outra fonte que fresca a traga
E com isso o corrompes.
Não dês a chance ao vício
De ter seu próprio ofício
Porque o que se dá é pouco e vão
Ao desejo de um sufoco
De ser muito mais que um troco
Numa vontade de milhão.
Contradigo minha criação
Porque forças superiores
Sobre meu querer agem
Sou simplesmente pajem
Desta minha mensagem.
Penso o que aconteceu
Mas, o que está para vir
É mais um teatro de rir
Cujo fantoche sou eu.
Tudo o que me acontece
Antes feito da minha prece
É agora o que em mim cresce
O assombro que o destino tece.
Porque forças superiores
Designam tudo o que se cria,
Para mim malignas dores
São campos das mais belas flores,
Fossas de equilibrados odores
E filas de trânsito minhas melodias.
Baco
Fez-se sol ao homem que chovia,
Ilumina-se-lhe a alma na escuridão,
Transformam-se em anjos os mostrengos
Depois de uns copos de Reguengos.
Quis o néctar com ardil
Soltar os génios do covil
Que da madeira fizeram o barril
E do porco temperado pernil.
Disfarça-se o tempo que antes se perdia,
Desdenha-se tudo o que se temia,
Aquece-se a noite que era fria
E faz-se alegre o Homem que sofria.
Culpado
Sou um capitão a naufragar
Perdendo meus olhos além-mar,
Bem longe no horizonte
Estão meus males e tormentos
E tudo o que de mim dista
Até ao misterioso firmamento
É muito mais que um turva vista
Assombrada por um terrível Creonte.
Fosse do passado o novo Infante
E de novo ergueria a merecida glória
Dum país que ficou para a Historia
Como o rio vai para jusante.
Sou um tolo que sonha uma nação
Tão distorcida como a minha imaginação
Porque meu ser traz com ele a peste
Do esquecimento que tu a Portugal deste.
A bifurcação
Mais vale por ao mal um fim
Que deixa-lo por aí assim-assim.
Essa erva daninha que não definha
Anda naquele que caminha
E suas pernas são seu meio
Para chegar aos outros – eu creio.
Não é uma energia milenar
É antes do Homem seu mais antigo par
Vestido de uniformes de encantar
Para aos fracos o bem roubar.
Na subconsciência do teu ser
Está o teu mais bem-querer,
Único que te pode apaziguar
E de todos os males afastar
Mas, se escolheres viver no limbo
De não teres a tua benquerença
Não tardará que ele te vença.
Dança bêbeda
Às vezes sinto-me como um
Submarino na rota irremediável de um
Cruel e mortal torpedo
E então a minha razão e meu querer
Tornam-se num náufrago
À deriva nas profundezas de meu ser
Como quisesse andar em frente
Mas, ao invés, dançam como bêbedos
Uma estranha dança contemporânea
Onde se magoa quem mais se ama.
São perdão e tudo o que te clamo
Porque o arrependimento e a vergonha
Coabitam nesta expressão medonha
Quando não sou quem me chamo.
Amor fantasma
É um rochedo estalando
Meu pensamento inacabado
Duma história sem passado
Como o futuro visto de lado.
Queria dizer-te o que sinto
Mas se o fizer talvez minta
Porque não sou quem me pinto
Nem minha ideia real e sucinta.
Só te olhar é meu receio
E não te premiar é o que odeio
Neste momento de pura timidez
Que adúltera os meus porquês
E faz recuar o que quer andar
Por não poder o que te quero dar.
Envoltos na bruma
Ziguezagueiam as andorinhas,
Ligeiras pretas e branquinhas,
Anunciando mais primavera
A um mundo que se dilacera.
Está aquecendo meu coração
A visão duma nova biosfera
Colorida, chilreante e sincera
Operando em mim com emoção.
Cantam as cigarra seu rac-rac
Como um esmoril afia lâminas
Na cadência, certo tiquetaque
Do relógio quente das rotinas.
Esconde-se o verde da canção
Num estágio, vã inerte nação.
Não ser só gente
Minha cabeça quer explodir
Esta pressão que me habita
De eu não conseguir fugir
Desta vida bela e maldita.
Vivo na felicidade da tristeza
D e tudo me ser fosco com clareza
Num mundo de incertas certezas
Das vontades perdidas portuguesas.
Sou a esperança brilhando dormente
De não querer só mais uma gente
Num tempo continuo e infinito
Que dilui tudo quanto grito.
Por isso detono-me ao mundo,
Ah, que rebentar tão profundo!
Ler é crescer
Ler é aprendizagem eterna
Dando ao pobre nómada
Elegância medida fraterna
De cruzado lutando a armada.
É da finita eterna inconsciência
O fruto pronto amadurecido
Caindo sobre o outro adormecido
Leitor com toda a consciência,
Esse desfecho tocante inesperado
Habilmente desarmadilhado
Por essa mão iluminada criadora
Enlaçando seu próprio desenlace,
Fixando-nos nesse surdo impasse,
Crescente clímax que se adora.
O pardal
Quero ser a melódica calma
Que me traz a certa música
Extasiando meu corpo e alma,
Silêncio puro que me fica.
Sou uma linha inerte e plana
Aquecida pelo som do aconchego
Dum fogo surdo e sem chama
Estalando a luz a que não chego.
Sou o conjunto das sensações
Que lutam pela vida em mim
Num gesto delicado infernal
Como o inferno de eu ser ruim,
Ou prado do mais belo pardal,
Os retratos das minhas sensações.
Conjuntura
Sou uma gritante raiva afónica
De ser base certa de algo cónico
Que comanda invariável o querer,
Minha cansada fúria de viver.
Minha vida é uma inconstante
Regra de três ou quatro simples
Feita de muitas variáveis distantes
Por eu nunca ser como dantes.
Sou uma leve impressão digital
Perdida por estar escondida
Actuando como fútil prova perdida
Dos crimes nunca antes cometidos
Mas, sempre cúmplices prometidos
Desta real vontade de cravar metal.
Nó cego
Confesso-me desorientado
Incompreendido e amado
Em toda a irremediável
Contradição que multiplico.
Meu amor é leve e não fiável
E o teu superior e sustentável;
Nesta dúvida em que me fico
Qual a mais justa variável?
Meu querer é forte e diverso
Tão mutável como um sentimento
Vagueando neste infinito universo
De eu ser alegria e sofrimento.
Serei sem base a pequena potência
Que decresce a minha vã essência?
A escada da desilusão
Triste crocitar anunciando a má sorte
És o engodo envenenado
Que me sufoca o entendimento.
Nunca me compreenderás?
Sou-te um asno ignorante,
Sumida sombra dilacerada
A cada tua inconsciente facada.
Teu nulo incentivo afunda-me
Pouco a pouco no lodo em que me vês.
Tudo para ti são porquês
E maus augúrios
E meu silêncio tua crescente ignorância.
Não valho nada porque não ajo
E vou entretendo a desilusão
Com que lentamente vais
Minando o meu coração.
Meu corpo é uma construção
Precária feita de cartas raras
Cuja iminente tempestade
Encaminha para a pura verdade;
Minha alma tornou-se
No recanto mais sombrio
Dos meus próprios medos
De já não ser capaz de voltar atrás.
O novelo que enrolei nesta
Eternidade voltou a desfiar-se
E o engenho que o criou
Desapareceu em mim,
O infeliz que o moldou.
Meu querer quebrou as asas
Da minha fé e aquele que me habita
É um estranho, já não sei quem é.
A revolta
A revolta é como estar de boca fechada,
Cosida, sangrando no fundo
De um profundíssimo poço
Tapado pelo peso da nossa ignorância.
Nada do que se quer é fluído,
Antes um desejo estagnado pútrido.
É como uma avalancha de gritos surdos
Que teima em não se desprender
Da segurança da sua essência gélida.
É a agonia do macadame que não chora
Por seu destino ser ser pisado.
E é muito mais que isto tudo;
É a lágrima que se solta do não
Haver diálogo na ignóbil incompreensão
Desse olhar vago entristecido
Que fita o medo do desconhecido
Sem sinais de ti
Estava enfermo e triste,
Na penumbra inverno fria,
O homem que tu feriste
Com o gelo da teimosia.
Mas depois veio a quentura
E o homem que triste estava
Ergueu-se para a aventura
Que este calor lhe dava.
A escuridão fez-se luz,
A ciência tirou-te a cruz,
O conhecimento abriu caminho,
E tu saíste de fininho
Deixando aos iluminados
O azedume dos enganados.
ola a todos!
Estes são alguns dos textos
do livro das horas vagas
editado pela corpos editora
Espero que gostem
Um grande bem hajam :pint:
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Re: Livro das horas vagas
Criativo e inspirado, boas palavras!!! :-)