Era o que me faltava! - 1
.

Controlando o nervosismo, fechei mansamente a porta metálica do meu cubículo e por breves momentos encostei-lhe a fronte procurando que a frescura do contacto me abrandasse o calor das têmporas e esse lenitivo me passasse para o coração serenando-me a angústia. Faltaria à chamada da noite, mas as guardas faziam por ignorar isso quando alguma, das bem comportadas, optava por deitar-se mais cedo, por indisposição ou por sono de cansaço. Bastaria justificar e pedir desculpa no dia seguinte.
Aqui não adianta perder a cabeça “Não abras a porta ao desespero!” e muito menos me posso deixar dominar pelo medo. Se consegui ultrapassar a crise de claustrofobia que esteve iminente nos primeiros dias de clausura nestes profundamente tristes dois metros por três de opressiva reclusão, sem outro compadecimento que não o meu próprio, e sem lágrimas nem resmungos nem gritos, ainda que a hora de arrependimento não me tenha chegado nem tão pouco consiga pensar o meu futuro por mais do que até daqui a algumas horas, também não será agora que me renderei ao acabrunhamento.
Nesta prisão, para quem assim o quiser, não há rotina. O que de certo modo me é caricato pois é essa maneira de estar a que mais agrada à minha maneira de ser: cada dia, cada momento se possível, diferente do que passou. Mas nesta prisão também não há nada que se compare à vida em liberdade. “O falso do Zé Mário! O que ele me fez...”
Bem. Enquanto tiver comigo a minha pedrinha de jaspe e a segura evasão que encontro na escrita das minhas recordações, sei que vou aguentar seja o que for. “Apaga a luz e deita-te, anda, que a guarda de ronda deve estar a aparecer... Vais dar-lhe as boas-noites ou vais contar-lhe o que viste há bocado?”
Assisti hoje a um assassinato a sangue frio... E não tenho consciência para decidir se não a meu favor, quer dizer, calar-me…
Desde que fui julgada, por qualquer bloqueio psíquico, não me debruço sobre o que poderá ser o meu futuro mas sei que quero sair daqui viva e pouco molestada. “Não ver, não ouvir, não falar...” boa regra, aqui dentro, e fácil de respeitar. Vim parar a uma selva, onde só se pode sobreviver em permanente alerta, com sagacidade, e usando os instintos. “Nisso és boa, ou parecia que eras...” Contem comigo.
Fiquei só eu, já para além da hora, a limpar o chão da cozinha, abaixada por detrás do enorme balcão, e ouvi tudo, até o murmurado lamento da vítima, meio ai meio suspiro, e um barulho abafado quando o corpo tombou. E reconheci as vozes. Não fui lá ver a infeliz, e por isso neste momento ainda posso dizer que poderá ter sido apenas imaginação. Mas não tenho dúvidas que amanhã os pormenores ficarão claros, mesmo que sejam oficialmente sonegados. Aqui sabe-se sempre tudo, nem que só por meias palavras ou por piadas de escárnio ou por gestos de terror.
Ajuste de contas no mundo da droga. Admira-me que nesta prisão haja ética entre as traficantes. Ninguém impele ninguém ao consumo. Claro que, se alguma reclusa entra em desesperança de causa há sempre uma invisível mão a ceder-lhe um grama de alívio. Mesmo assim, só quem se abandona à persistência do uso, e fatalmente acaba em dependente, é que se arruína, abdicando da sua vontade e da sua alma. Nesse patamar sem retorno há hierarquias de poder e códigos de vandalismo moral e quem não os acata, tentando eximir-se à escravidão, é severamente punido. Furar a malha de cumplicidades, mesmo logrando a transferência para outro estabelecimento, é uma ilusão.
Curioso é que sejam mulheres, tanto a vítima como a agressora. Uma com muito má fama, insociável, irascível, malcriada, até violenta. A outra, incrivelmente, faz parte do grupo das bem comportadas.
Qualquer coincidência
com factos e pessoas da vida real
é precisamente coincidência.
Escrito de acordo com a Antiga Ortografia
Submited by
Prosas :
- Inicie sesión para enviar comentarios
- 1780 reads
other contents of Nuno Lago
Tema | Título | Respuestas | Lecturas |
Último envío![]() |
Idioma | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/Poetrix | Por vezes nossas estradas se cruzam… | 0 | 1.276 | 02/01/2013 - 14:37 | Portuguese | |
Poesia/Desilusión | Eu não… | 0 | 1.144 | 02/01/2013 - 14:32 | Portuguese | |
Poesia/Fantasía | Coisas que não esqueço! | 0 | 1.136 | 01/31/2013 - 12:18 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | O fruto e a flor | 0 | 1.573 | 01/31/2013 - 12:13 | Portuguese | |
Poesia/Meditación | Os teus azuis | 0 | 1.149 | 01/31/2013 - 12:03 | Portuguese | |
Poesia/Desilusión | Não sei onde estou! | 1 | 876 | 01/30/2013 - 19:29 | Portuguese | |
Poesia/Pensamientos | O amor é assim... | 0 | 889 | 01/30/2013 - 12:20 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | ADEUS! . . . . . . . . Duplix | 0 | 1.744 | 01/30/2013 - 12:10 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Não sabes? | 0 | 1.149 | 01/29/2013 - 12:06 | Portuguese | |
Poesia/Fantasía | Canta bem de mais… | 0 | 895 | 01/29/2013 - 11:59 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Assim sem nada… | 0 | 2.925 | 01/29/2013 - 11:52 | Portuguese | |
Poesia/Erótico | Frágil véu | 2 | 1.489 | 01/28/2013 - 15:24 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Encanto | 0 | 1.182 | 01/28/2013 - 15:12 | Portuguese | |
Poesia/Erótico | Que julgas ver no espelho? | 0 | 950 | 01/28/2013 - 15:00 | Portuguese | |
Poesia/Amor | Teu Perfil | 0 | 1.322 | 01/28/2013 - 14:56 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | AQUI… | 1 | 1.284 | 01/27/2013 - 22:08 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Ainda dói | 0 | 2.626 | 01/27/2013 - 15:29 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Contrastes | 0 | 1.140 | 01/26/2013 - 12:07 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Impudica? | 0 | 1.323 | 01/26/2013 - 11:59 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Não sei, não… | 0 | 2.770 | 01/26/2013 - 11:55 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | No meu mundo… | 1 | 812 | 01/26/2013 - 03:02 | Portuguese | |
Poesia/Erótico | … Um poema! | 0 | 1.084 | 01/25/2013 - 15:02 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | SEDUÇÃO | 0 | 1.003 | 01/25/2013 - 14:53 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | A beleza … | 0 | 1.199 | 01/24/2013 - 12:15 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Ter-te… | 0 | 1.540 | 01/24/2013 - 12:04 | Portuguese |
Add comment