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Era o que me faltava! - 1

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1

 

Esperei até ter a certeza de que poderia escapar sem ser notada. O meu coração batia desordenadamente e as minhas mãos já estavam a inchar, o sangue latejando-me cada vez mais descompassado nos pulsos apoiados na tijoleira do chão. Começava a sentir picadas nos joelhos e a náusea do medo quando finalmente me atrevi a gatinhar até à porta das traseiras, a entreabri com o cotovelo, me ergui com lentidão e saí esgueirando-me para a copa e, na semiobscuridade, porque era fraca a claridade que procedia da cozinha, a atravessei às apalpadelas. Então andei depressa e desemboquei no largo corredor de entrada para o refeitório, sem ninguém me ver, por pura sorte, ou graças à telenovela que concentrava as atenções na televisão da sala de convívio. Depois, já sem pressa, a respiração a acalmar-se, encaminhei-me para a ala da minha cela.

Controlando o nervosismo, fechei mansamente a porta metálica do meu cubículo e por breves momentos encostei-lhe a fronte procurando que a frescura do contacto me abrandasse o calor das têmporas e esse lenitivo me passasse para o coração serenando-me a angústia. Faltaria à chamada da noite, mas as guardas faziam por ignorar isso quando alguma, das bem comportadas, optava por deitar-se mais cedo, por indisposição ou por sono de cansaço. Bastaria justificar e pedir desculpa no dia seguinte.

Aqui não adianta perder a cabeça “Não abras a porta ao desespero!” e muito menos me posso deixar dominar pelo medo. Se consegui ultrapassar a crise de claustrofobia que esteve iminente nos primeiros dias de clausura nestes profundamente tristes dois metros por três de opressiva reclusão, sem outro compadecimento que não o meu próprio, e sem lágrimas nem resmungos nem gritos, ainda que a hora de arrependimento não me tenha chegado nem tão pouco consiga pensar o meu futuro por mais do que até daqui a algumas horas, também não será agora que me renderei ao acabrunhamento.

Nesta prisão, para quem assim o quiser, não há rotina. O que de certo modo me é caricato pois é essa maneira de estar a que mais agrada à minha maneira de ser: cada dia, cada momento se possível, diferente do que passou. Mas nesta prisão também não há nada que se compare à vida em liberdade. “O falso do Zé Mário! O que ele me fez...”

Bem. Enquanto tiver comigo a minha pedrinha de jaspe e a segura evasão que encontro na escrita das minhas recordações, sei que vou aguentar seja o que for. “Apaga a luz e deita-te, anda, que a guarda de ronda deve estar a aparecer... Vais dar-lhe as boas-noites ou vais contar-lhe o que viste há bocado?”

Assisti hoje a um assassinato a sangue frio... E não tenho consciência para decidir se não a meu favor, quer dizer, calar-me…

Desde que fui julgada, por qualquer bloqueio psíquico, não me debruço sobre o que poderá ser o meu futuro mas sei que quero sair daqui viva e pouco molestada. “Não ver, não ouvir, não falar...” boa regra, aqui dentro, e fácil de respeitar. Vim parar a uma selva, onde só se pode sobreviver em permanente alerta, com sagacidade, e usando os instintos. “Nisso és boa, ou parecia que eras...” Contem comigo.

Fiquei só eu, já para além da hora, a limpar o chão da cozinha, abaixada por detrás do enorme balcão, e ouvi tudo, até o murmurado lamento da vítima, meio ai meio suspiro, e um barulho abafado quando o corpo tombou. E reconheci as vozes. Não fui lá ver a infeliz, e por isso neste momento ainda posso dizer que poderá ter sido apenas imaginação. Mas não tenho dúvidas que amanhã os pormenores ficarão claros, mesmo que sejam oficialmente sonegados. Aqui sabe-se sempre tudo, nem que só por meias palavras ou por piadas de escárnio ou por gestos de terror.

Ajuste de contas no mundo da droga. Admira-me que nesta prisão haja ética entre as traficantes. Ninguém impele ninguém ao consumo. Claro que, se alguma reclusa entra em desesperança de causa há sempre uma invisível mão a ceder-lhe um grama de alívio. Mesmo assim, só quem se abandona à persistência do uso, e fatalmente acaba em dependente, é que se arruína, abdicando da sua vontade e da sua alma. Nesse patamar sem retorno há hierarquias de poder e códigos de vandalismo moral e quem não os acata, tentando eximir-se à escravidão, é severamente punido. Furar a malha de cumplicidades, mesmo logrando a transferência para outro estabelecimento, é uma ilusão.

Curioso é que sejam mulheres, tanto a vítima como a agressora. Uma com muito má fama, insociável, irascível, malcriada, até violenta. A outra, incrivelmente, faz parte do grupo das bem comportadas.

 
(continua)

Qualquer coincidência
com factos e pessoas da vida real
é precisamente coincidência.

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

 

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quinta-feira, abril 11, 2013 - 11:15

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Nuno Lago

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