O segundo Milagre - Capítulo X
X
Ali, qual musa inspiradora da mais bela, sentida, sincera e verdadeira poesia, a sua presença parecia simplesmente fazer parte integrante do meio natural circundante. Ela era a seiva que corre em toda a flora e o bombeado sangue de todos os outros seres vivos.
Como esperasse um qualquer sinal inevitável, deixava o seu olhar abandonado num qualquer invisível e distante fixo ponto muito para além do núcleo da Terra. Observava agora as pequenas bolhinhas que emergiam não se sabe bem de onde para logo de seguida se evaporarem no ar. O odor termal das águas enchia, estonteante, todo o ambiente e Leonor exasperava meio drogada por qualquer luz transcendente. Estranhamente toda essa formigante atmosfera dava-lhe um consolo quase divino e extraordinário. Como se mesmo num ambiente de densa tragédia o seu pensamento positivo fosse capaz de objectivar o quebrar de todas as muralhas levantadas pelo poder do medo do desconhecido. Sentia-se ao mesmo tempo desolada e só, mas não infeliz enquanto desabafava o que lhe confundia e alma:
- Meu Deus. Terá sido aquele povo verdadeiramente acariciado por obra milagrosa?
Nada nos seus semblantes indiciava o contrário da verdade e uma criança é pura demais para conluiar uma mentira tão monstruosa ou tão divinal.
Decidida, baixou-se doce e cautelosamente até ficar de cócoras, tão próxima da água quanto lhe era humanamente possível. De seguida esticou o seu braço direito até a sua mão tocar medrosa e levemente a inesperada e agradável consistência da água encantada sabe-se lá com quê ou por quem, ou até por nada. Ao fazê-lo sentiu um inexplicável e agradável formigueiro subindo pela mão caminhando vagarosamente sobre todo o seu ser como quem cobre um corpo gelado com uma quentinha manta polar. Foi como se o próprio Deus passasse levemente a sua macia e reconfortante mão sobre a sua dividida e momentaneamente descrente fé.
- Meu Deus! Exclamou extasiada pela divina sensação que acabara de percorrer todo o seu corpo.
- Só pode ser verdade. Será que é esta a sensação de beber do cálice divino que Baredeo terá supostamente escondido na Angle-Land?
Como possuída por um desígnio superior e num acto quase desesperado de viciado impaciente, mergulho toda a sua mão na tolerável quentura daquela água para logo de seguida passar ambas as mãos por toda a sua pálida fronte. E foi como se o álcool corasse as suas faces ou como se tivesse estado num solário, todo o seu corpo ganhou uma cor mais viva, mais colorida e animadora.
- Não tenho qualquer dúvida! È milagre!
Gritou exasperada mas cautelosa dentro de si mesmo com o cuidado de não acordar as almas do outro mundo e principalmente os vários pares de olhos dissimulados por entre a floresta.
Agora, ali, naquele abençoado local era possuída pela mesma estranha sensação que tivera um par de dias antes quando se encontrava na fonte das águas perto de Alcobaça. Estava sem qualquer dúvida a ser observada. Não era pelos guardas mas sim por outra coisa qualquer. Nesse mesmo instante a brisa ganha uma nova e estridente vida. Toda a mata murmura através do dançar das copas das árvores verdes amareladas acastanhadas fazendo lembrar couves-brócolo em diferentes estágios de floração. A passarada começou a chilrear sonoramente anunciando uma chuva iminente no céu brilhante e vazio de nuvens de primavera quando subitamente ao som de cornetas crocitadas de vários cornos alvoraçados tudo parou como se alguém tivesse premido um primário botão que pausou todo o movimento. Até a brisa ficou estática como uma estátua sem vida. Nem um movimento, nem um som. Uma flat line sem pi
Leonor percebeu instintivamente que algo estava a acontecer e acto contínuo levantou-se bruscamente e como soubesse o ponto do qual estava a ser observada, fitou a escuridão onde nem o sol era capaz de penetrar que se mostrava para além da densa vegetação estendendo-se pela ligeira colina à sua frente. Confiante ousou:
- És tu de novo, não és?
Não obteve qualquer resposta durante o momento seguinte e por isso voltou a insistir:
- Aqui me tens. Diz-me qualquer coisa. Prova-me que o meu instinto não está errado.
O mesmo silêncio perturbador consumia todo o seu ser.
- Foste tu quem operou este milagre, não foste? Fala comigo, suplico-te. O que queres de mim?
Tudo continuava na mesma. Nada mais que um monólogo interior. Um leve desespero começava lentamente a instalar-se na sua mente até que uma diferente agitação na vegetação trouxe consigo uma resposta pausada e confiante:
- Sim. Estou aqui.
Embora Leonor ansiasse por aquele momento, tudo estremeceu nela como estivesse a ser alvo de uma gigantesca actividade sísmica. A mesma voz suave e grave ao mesmo tempo que ouvira dias antes, estava de novo ali, vinda não sabia bem de onde, chocando ligeira como uma divina onda sonora no seu confuso entendimento. O seu sangue fervilhava de temor, mas a coragem instalara-se como um elixir de vontade e emoção dentro do seu coração. O destino fora-lhe traçado transcendentemente e a suas entranhas ditavam-lhe que era seu dever avançar no desconhecido e por isso, numa espécie de salto cego num abismo de fé controlou todos os seus receios e continuou dirigindo-se mentalmente a quem quer que estivesse ali:
- Quem és tu? Diz-me por favor. O que queres de mim? Mostra-te.
Perto dali, a guarda real e os restantes elementos da comitiva denotava os primeiros sinais de desassossego e de novo não tardaria que alguém se aproximasse aconselhando-a a seguir viagem ou questionando quanto mais desejaria ficar naquele desinteressante local. Existem tantas outras coisas mais belas nas redondezas, porquê perder tempo naquele sítio? Contudo por agora as expressões de tédio não tinham voz e Leonor podia continuar o seu misterioso encontro sem quaisquer perturbações.
Ela estava de costas para todos e mesmo que não estivesse o resultado seria o mesmo pois, o diálogo que se iniciara era surdo e telepático, sem indícios sonoros ou gestuais. Era como se estivesse apenas a pensar com os seus botões e como todos sabiam que a rainha precisava frequentemente de momentos solitários de reflexão nada de suspeito caia sobre a sua imagem quieta.
A brisa soprava ligeira por entre as formas encantadas da natureza e a água da presa sorria feliz riacho abaixo enquanto a conversa continuava:
- Quem eu sou já tu sabes ou julgas saber. Talvez me imagines com uma forma monstruosa, como um demónio, como um anjo, ou como o próprio Deus. Na realidade é indiferente a maneira como me imaginas. Mas se quiseres pensa em mim como alguém e não um bicho. Alguém que pode ter todas as formas imagináveis e que pode até ter assumido aquela que te descreveram os aldeões.
Leonor não conseguiu conter a estupefacção de alma estampada na sua cara e o seu corpo reagiu juntando as duas mãos à altura do peito como quem reza uma ave-maria na presença de uma força sobrenatural infinitamente superior à sua existência enquanto escutava aquele discurso enigmático dentro da sua cabeça. Uma sensação incomparável verdadeira e pura que jamais sentira quando dentro de um templo cristão. A voz continuou misteriosa como antes respondendo às suas suplicadas questões:
- O que pretendo de ti Leonor? Não é tarefa fácil explicá-lo porque infelizmente nem sempre os humanos querem ouvir o que tenho para lhes dizer. Às vezes sinto-me como um médico sendo queimado pelo olhar inquietante de um doente que sabe que vai morrer mas espera que o médico calma e serenamente lhe dê um diagnóstico diferente.
Leonor é assaltada por uma súbita angustia e quase à beira de derreter em lágrimas mete-se á conversa:
- Uma morte? Vou morrer, é isso? Ai meu Deus que triste sina a minha. E o meu povo, e o meu filho?
- Calma Leonor. Não me interpretaste bem. Não vais morrer. Melhor; terás um dia inevitavelmente que atravessar o vale sagrado, mas isso não será tão cedo. Viverás ainda por muitos e longos anos e estás destinada a fazer tantas majestosas obras, quanto passar por muitas e dilacerantes dores.
Ela adquire de novo o controlo sobre as suas emoções, mas a confusão instala-se definitivamente na sua alma.
- Não percebo nada. Porquê tantas charadas? Quem morre afinal? Que grandes obras são essas que falas e que perdas são essas que alertas? Diz-me a verdade, por favor de Deus. Sinto-me sufocar de ansiedade. Diz-me a verdade (sobe o tom da voz no pensamento).
- Acalma-te Leonor. Dir-te-ei tudo o que o posso e é necessário que saibas. Quanto ao resto descobrirás por ti própria com o passar do tempo. Também cumpro as minhas ordens.
- As tuas ordens? Ordens de quem, Por Deus? Ai que me sinto já a enlouquecer.
- Não tens com que te preocupar. Não enlouquecerás. Pelo contrário serás de todas a mais lúcida e recordada. Quanto à origem das minhas ordens, essa resposta encontra-se em tudo aquilo o que nos rodeia e ainda muito mais além.
Mais uma charada. Bolas até já eu me começo a sentir irritado com tanto segredo. Imagino o turbilhão de possibilidades que esmagam entre si dentro da cabeça de Leonor.
- Tu que narras mantêm-te fiel ao teu dever e não interfiras por favor. Mas, atendendo ao teu papel crucial nesta história e ao estado devastado da rainha, vou levantar um pouco o véu e mostrar-vos o aspecto da cara que conforta a curiosidade.
- Ups… sem comentários.
- Agradeço.
Assim, como já disse há pouco, eu não tenho forma, mas posso possui-las todas. Muita tenho tido durante a minha inexorável existência e há muitos séculos escolhi por acaso o corpo que agora dá forma ao meu espírito. Recordo-me como se fosse ontem. Foi nos primórdios da romanização nestas bandas ocidentais. Uma emboscada traiçoeira levada a cabo por um oficial romano e uns quantos legionários ali para os lados de São Jorge deixava às portas da morte o último dragão português. E não sei que estranho sentimento humano se apossou de mim, mas algo semelhante a pena e misericórdia gritou mais alto dentro da minha infinidade. Dessa maneira, momentos depois de todos saírem vitoriosos na procura de um meio de transporte para levar o troféu dali para fora eu apareci e desapareci. Mas isso agora é irrelevante. O que me trás aqui Leonor é a tua alma pura e principalmente o teu carinho e lealdade para com os outros, quer sejam ricos ou pobres, são simplesmente todos iguais. É esse tipo de energia que me faz aparecer em determinadas épocas e lugares à presença dos iluminados. É a tua aura bondosa que me mantém aqui tão perto de ti.
Leonor parecia não acredita no que está a ouvir. Os seus olhos abriam-se como coubesse lá dentro todo o universo. O seu semblante mostrava-se ansioso, radiante e iluminado, mas ao mesmo tempo também carregado de desconcertantes dúvidas e assombrosos receios. Não pensava contudo em nada. Estava dominada pela transcendência daquele momento revelatório. Enquanto isso o espírito-dragão continuava:
Existem mais como eu espalhados pelos diferentes universos conhecidos e desconhecidos. Nós zelamos pela ordem cósmica universal. Somos uma espécie rara de anjos sensitivos que não habitam nem na Terra nem no Céu. Vivemos sem noção temporal e apenas conhecemos o tempo medido quando descemos até à Terra. Depois vivemos num indefinido limbo de eternidade.
Trabalhamos para uma voz que fala connosco como eu falo para ti. Se essa voz é a de Deus como o concebes pouco nos interessa. É-nos dito que existe de facto um paraíso e inferno mas como nunca vi nem um nem outro, deixo isso a quem de direito.
Leonor sentiu de novo necessidade de o interromper, agora mais calma e mais serena no seu coração, uma vez que o rumo da conversa seguira para algo que muito respeitava e adorava, a religião. Ela era uma mulher de fé e de excepcionais crenças cristãs.
- És então um anjo ao serviço de Deus?
- Não é bem isso, mas serve a comparação.
- E queres-me fazer crer que eu sou digna da atenção do Senhor das alturas?
- Sim. Efectivamente é essa a realidade
- E então, como todos os santos, vens anunciar-me os martírios que terei que passar até chegar ao céu?
- É mais ou menos isso. Menos, porque esses martírios que falas, não os conheço eu, e mesmo que os conhecesse não os poderia revelar, sob pena de poderes sentir tentada a escolher um qualquer caminho mais simples e menos doloroso, alterando irremediavelmente todo a obra que erguerás. Mais, porque estou aqui para iluminar o caminho que deves seguir na tua vida que de resto não será muito diferente daquele que escolherias sem a minha influência.
Leonor não ousava sequer questionar o que ouvia como se falasse com o seu próprio soberano Deus. Podia dizer que não queria ser escolhida. Ou que para aceitar tão enorme fardo exigia conhecer todos os pormenores da demanda que lhe reservara o destino, mas não, a sua devoção era realmente tão pura quanto verdadeira, e se aquela voz lhe ordenasse que se atirasse para dentro de um poço, num misto de devoção quase doentia e de incompreensão, fá-lo-ia.
Não esqueçamos que actualmente a ciência, esse fonte inesgotável brotando uma vontade infinita de resposta aos infindáveis porquês, concluiu, devendo muito a Darwin e a tantos outros estudiosos, que muito da fé não é mais que uma reminiscência de tabus medievais sustentados na pobreza da ignorância humana e que se mesmo actualmente mesmo com acesso a tanta informação, tanta verdade tão transparente, existe por aí quem se mate pela fé, simplesmente porque não conseguem discernir por eles próprios. Toda a sua racionalidade não passa de uma marioneta nas mãos de encenadores de tragédias baratas. Deixam-se levar por influências de massas corruptas que representam a síndrome da falta de amor-próprio e da condescendência de ainda bem que há quem pense por mim.
Nos dias de hoje só é burro quem quer, ou que infelizmente nasceu com alguma deficiência psicológica que afecta a sua capacidade de pensar.
Há quinhentos anos tudo era diferente. Os primeiros passos iluminados eram ainda frustradas tentativas de gatinhar. A libertação e emancipação do homem renascendo de um complexo mundo trevas eram regidas tortuosamente sob o poder da igreja e da nobreza, sua cúmplice nas atrocidades praticadas.
Leonor, apesar de demonstrar uma precoce vontade de decidir por si própria, vivia sob o jugo do clero e imbuída num pseudo-feudalismo (porque parece que o feudalismo puro nunca existiu em Portugal) governado a partir da vontade celeste através dos semi-deuses bispos e monarcas. Isso levava naturalmente a ter uma crença avassaladora no reino do céu.
Tudo o que aquela voz ordenasse não representaria no fundo um dever, mas antes um prazer de servir condignamente a vontade divina.
Após uma breve pausa a voz continuava o seu discurso:
- O que achas do teu esposo?
Leonor era apanhada de surpresa.
- Do meu esposo?
E não podia mentir.
- Sim. O que representa ele na tua vida e na vida do teu povo?
Sentiu necessidade de reflectir um pouco antes de dar qualquer resposta por mais comprometedora que pudesse ser.
- O meu esposo. D. João II?
Fechou os olhos. Deixou a brisa e o som de um aguaceiro leve que a água fazia filtrando-se por entre as pedras até bater na outra que a recebia de braços abertos ao nível da presa. Encheu o peito de ar e expeliu o que sentia como hipnotizada sob o poder da verdade:
- O meu marido é um tirano cruel mas é também um incansável e perfeito rei.
Tem lutado como nenhum outro pela prosperidade desta nossa pequena nação. Possibilitou-nos sermos respeitados como uma grande potência em todo o mundo cristão. Julgo que me respeita e me estima e não tenho quaisquer dúvidas pelo amor que nutre por nosso filho D. Afonso.
Como tivesse sido atiçada por um pensamento recalcado, seus abriram-se um pouco mais e mudando o seu calmo tom de voz para outro possuído por raiva, disparou:
- Desgraçado! Chacinou toda a minha família!
A forma como disse isto obrigou à intervenção do mediador do universo:
- E sentes desejo de vingança por tamanha atrocidade?
Sem hesitar ou revelar qualquer espécie de fingimento no que ia dizer, respondeu curta, serena, firme e prontamente:
Não. Eu amo-o. Tudo o que fez foi pelo seu povo. Nada pode ele contra a vontade divina. Não. Admiro-o em vez de o detestar por mais estranho que te possa parecer. Sempre me respeitou. E foi ele quem me deu o meu bem mais precioso.
Enquanto parecia reflectir sobre o que dizia a voz falou feliz:
- Claro que não. Foi por isso que te escolhi. E foi também por isso que a tua beatitude me trouxe também até à tua presença. Não há espaço dentro do teu coração de sorriso de criança para a maldade e o ressentimento. Tens tudo ao teu alcance. A bondade e a riqueza do teu reino centralizada na tua coroa ao alcance das tuas mãos. Pensa. O que faz teu marido pelo bem do povo que encontras perdido por este país fora?
Leonor era apanhada de surpresa. O que tinha a riqueza ver com todo o ambiente espiritual e divino que rodeara aquele encontro até ao momento? Reflectia, mas não percebia. Coitada. Estaria a tornar-se traidora da sua própria fé? Estaria ela a entrar em algum súbito e malicioso conluio contra o seu marido? Todo a gente sabe quão intricadas são a riqueza e a religião. Uma não vive sem a outra tal como a Terra não viveria muito sem o Sol. O que é que uma coisa tinha a ver com outra? Assim, respondeu sem conseguir disfarçar uma incomodativa insegurança no que dizia:
- O meu esposo não tem tempo como desejaria para visitar todo o seu povo.
- Desculpas.
Pensava a voz numa frequência diferente daquela que usava para falar com Leonor. E não se contendo, interrompeu o que ela dizia para enfiar uma mão fechada na ferida minúscula sangrando abundantemente que se abrira inesperadamente no seu coração:
- E tu, o que achas do teu povo?
- O que penso do meu povo? Não estou a perceber a tua pergunta.
- Será que não? – E na realidade, Leonor sabia bem qual a intenção da questão. Não poderia dar outra resposta:
- O meu povo. O meu povo vive na miséria. Somos tão ricos. Temos tanta fartura à mesa. Nós temos tudo e o meu povo não tem nada.
- Os seus olhos humedeceram-se como sempre fazem sempre algo nos toca no mais profundo do nosso ser. Duas lágrimas atrevidas, uma em cada olho, verteram lentamente sobre a sua alva face marcando nela um trilho de tristeza de quem está de mãos atadas ao preconceituoso pelouro das tradições ancestrais. Tal como um Prometeu, estava nas suas mãos o poder de dar o fogo aos seus seguidores e no seu coração a coragem para enfrentar todas as torturas do destino. Que faria ela?
- Tu podes mudar tudo isso. – Com uma equilibrada e serena voz de hipnotizador voltava o outro. Continuava:
- Tu tens riqueza sem limites disponível para servires os mais necessitados. O que representam uns míseros cobres para o embuchado cofre do teu reino. – Leonor abandonara mentalmente o local onde se encontrava e via-se numa gruta ofuscada por doentio brilhar dourado, enquanto arremessava endiabrada lingotes de ouro e jóias preciosas à força de uma gigantesca forquilha, riqueza essa que chovia directamente do céu sobre o seu povo matando-se, agonizando por mais uma moeda de ouro.
Tudo acontecia como previsto. A tarefa revelava-se fácil de mais. O que não tinha morada interferia de novo:
- A desgraça de Portugal está escrita mas é possível amenizar os danos futuros. Está na hora de investir o que teu marido adquiriu usando a força do punhal ou roubou das mãos dos selvagens como quem tira uma goma a uma criança. É este o momento.
Leonor ouvia mas não estava ainda ali. Como estalando os dedos e chamando o seu nome melodicamente – Leonor. – Leonor. – Leonor. - Voltou à Terra
- Já ouviste falar num artista e arquitecto italiano chamado Alberti? – Desperta, fixava mais profundamente por entre o mato e as árvores antes de responde:
- Não. Devia?
- Na verdade, tanto faz. Para o que nos serve, uma sua famosa cogitação, é-nos o bastante; - Quem tem tempo e dinheiro e sabe como emprega-lo pode fazer ou mandar fazer tudo o que lhe apetecer. – E deve ter sido das poucas vezes durante muitas por vir que alguma notícia terá chegado tão fresca a Portugal.
Como, para bom entendedor meia palavra basta, Leonor não precisou sequer sentir-se iluminada para perceber que a tirania de seu esposo era a chave que abriria a difícil porta da misericórdia.
- Percebes agora onde quero chegar. Não só o teu coração é puro como tens os meios para atingir os necessários fins.
- Sim eu entendo, mas por onde devo começar. – Um tetra-termo entre virtude, merecimento, poder e lavagem de cérebro orientavam agora o seu visionário renascido olhar de misericordiosa.
- Tudo a seu tempo. Primeiro terás de consciencializar toda a tua corte e principalmente o teu esposo da necessidade vital de ter um povo feliz para que toda a nação evolua também feliz e consequentemente uma nação forte, próspera, equilibrada e justa socialmente. Quanto isso, não encontrarás qualquer resistência, pois a tua aura resplandece de confiança e bondade. A tua fé, a tua persistência e o teu encanto farão o resto.
Eram dez da manhã quando o tossir rouco e propositado de capitão da guarda rompeu abruptamente o silencioso meloso que se instalara naquele local durante o período que decorrera desde que os aldeões deixaram a rainha sozinha na sua meditação matinal. E apesar de levar um susto de morte, Leonor consegui conter o seu sobressalto não evidenciando qualquer surpresa ao mesmo tempo que se virava na sua direcção para saber o porquê da sua intromissão indesejada. Ao mesmo tempo que se voltava meditava sobre tudo o estava a acontecer; o milagre operado ali; a sua conversa com o mensageiro de sabe-se lá quem; e sobre o que ele lhe pedia. A menos de dez metros dela, hirto como um eucalipto, olhando rude como o mais mal-educado dos homens, o seu servidor fiel estacou, melindrado e aborrecido.
- O que se passa Viriato. – Inquiriu Leonor, com a mesma serenidade de todos os dias.
- Desculpe incomodá-la minha senhora. Mas, talvez fosse mais prudente seguir viagem. Os homens e os cavalos estão a ficar inquietos com a demora e a história dos campónios também… - Deteve-se. – E não vai querer chegar atrasado ao almoço real que está a ser preparado para si.
O capitão tinha razão, mas enquanto não recebesse as suas ordens não poderia abandonar aquele local estranho e desinteressante.
Leonor entendia a sua preocupação, contudo algo de superior a empatava e não podia simplesmente sair dali agora. Voltaria a sentir o bafo de Deus? Com toda a consideração e respeito devidos aos seus fieis, um pequeno atraso seria perfeitamente compreensivo.
A voz não conseguiu conter um pequeno sorriso pelo dilema que a rainha passava, sorriso esse que ela ouviu ao mesmo tempo que dava uma resposta ao seu capitão:
- Tem razão Viriato. Volte para junto dos homens e prepare-os para seguirmos viagem dentro meia hora. Agora deixe-me a sós por favor.
Dito isto, a natureza ou algo superior a ela lançaram uma arrepiante brisa polar sobre o capitão ao mesmo tempo que as copas das árvores se agitaram em seu redor, provocando-lhe uma súbita sensação de mal-estar, como se algo ruim estivesse na sua proximidade, acto contínuo e sem dizer palavra, cumprindo as ordens da sua rainha, afastou-se agastado daquele local indefinido como um gato foge da água, vociferando qualquer coisa como:
- Sim senhora. Vou avisar de imediato os homens. Considere-nos desde já preparados para seguirmos viagem. Com todo o respeito. – E foi-se.
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