«lágrimas de dois gumes»

 

A noite descia suavemente sobre os meus pés dormentes, de tanto caminhar em vitrinas pardas, agasalhadas pela nudez de manequins que se passeavam em suspiros de glamour.
Não conseguia deixar de pensar naqueles corpos entrelaçados uns nos outros, como se fossem heras a trepar pelas minhas pernas febris de desejo em tons verdejantes de seda pura. Tinha fome do meu corpo ou de outro corpo qualquer, que apenas me tocasse com luvas de pelica, delicadas sonatas num negro piano de cuada.
Toquei-me, e, as pautas escritas em folhas brancas deslizavam em gestos harmoniosos o romper da aurora, o prazer aumentava com a mesma fúria das mãos que saciavam o estremecer das teclas, que se rompiam em orgias de cor preta e branca.
Caí num êxtase selvagem de palmas destiladas, deitada num palco onde as cortinas se fecharam num correr purpúreo de incenso mort du petit Jasmin.
Quando acordei as árvores enroupavam o meu corpo desfolhado, estava submersa em lágrimas de dois gumes num banco de jardim.
O tempo tinha-se esquecido da madame coquet…Olhei de novo as vitrinas, não passavam de folhas de jornal amareladas, lacradas por letras crescentes…” Pour la vente”.
 

 

Conceição Bernardino

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Martes, Febrero 15, 2011 - 00:16

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