Resíduos: de tudo fica um pouco. (Drummond de Andrade)

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
 

Carlos Drummond de Andrade, grande poeta brasileiro (1902-1987), In: "A Rosa do Povo".

"O homem, ser mortal, conferiu imortalidade aos deuses." (C.D.A.).

"Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”. (C.D.A., em sua última entrevista).

Submited by

Lunes, Mayo 2, 2011 - 10:16

Poesia :

Sin votos aún

AjAraujo

Imagen de AjAraujo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 6 años 44 semanas
Integró: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AjAraujo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Meditación É preciso fazer alguma coisa (Thiago de Mello) 0 3.026 09/23/2011 - 10:34 Portuguese
Poesia/Intervención Estrada da utopia 0 861 09/23/2011 - 00:27 Portuguese
Poesia/Aforismo O tempo corrente que leva 0 2.275 09/23/2011 - 00:06 Portuguese
Poesia/Dedicada O velho e o menino 0 1.501 09/22/2011 - 23:47 Portuguese
Videos/Musica J.S. Bach - Sheep May Safely Graze (Emma Kirkby, soprano) 0 12.468 09/20/2011 - 22:30 Inglés
Videos/Musica Monteverdi - Venite, venite (Emma Kirkby & Evelyn Tubb) 0 5.443 09/20/2011 - 22:22 Inglés
Videos/Musica John Dowland - Fine Knacks for Ladies (Emma Kirkby) 0 4.456 09/20/2011 - 22:19 Portuguese
Videos/Musica John Dowland - Flow my teares (Emma Kirkby) 0 5.983 09/20/2011 - 22:16 Inglés
Videos/Musica Haendel - Messiah, If God be for as (Emma Kirkby) 0 6.267 09/20/2011 - 22:10 Inglés
Videos/Musica Henry Purcell - Dido's lament, York, 2007 (Emma Kirkby, soprano) 0 8.089 09/20/2011 - 22:07 Inglés
Videos/Musica Pergolesi - Stabat Mater (Emma Kirkby, soprano & James Bowman, tenor) 0 37.945 09/20/2011 - 22:04 Inglés
Videos/Musica Haendel - Messiah, But who may abide recorded in Westminster Abbey (Emma Kirkby & David Thomas) 0 3.964 09/20/2011 - 21:59 Inglés
Videos/Musica Henry Purcell - An Evening Hymn (Emma Kirkby) 0 3.920 09/20/2011 - 21:55 Portuguese
Videos/Musica Henry Purcell - Abdelazer Suite: II. Rondeau (Roger Norrington & Orchestra of the Age of Enlightenment) 0 8.810 09/20/2011 - 21:53 Inglés
Poesia/Intervención Presenças (Dom Pedro Casaldáliga) 0 2.238 09/20/2011 - 21:46 Portuguese
Poesia/Meditación Poderás ser a nossa Paz? (Dom Pedro Casaldáliga) 0 1.361 09/20/2011 - 21:38 Portuguese
Poesia/Meditación Terra nossa, Liberdade (Dom Pedro Casaldáliga) 0 7.831 09/20/2011 - 21:26 Portuguese
Poesia/Meditación Retificação (Saber Esperar) (Dom Pedro Casaldáliga) 0 4.787 09/20/2011 - 21:02 Portuguese
Poesia/Meditación Saber Esperar (Dom Pedro Casaldáliga) 0 4.863 09/20/2011 - 20:59 Portuguese
Poesia/Meditación A verdade (Thiago de Mello) 0 3.311 09/19/2011 - 00:37 Portuguese
Poesia/Intervención Memória da Esperança (Thiago de mello) 0 2.486 09/19/2011 - 00:32 Portuguese
Poesia/Intervención Narciso cego (Thiago de Mello) 0 1.416 09/19/2011 - 00:28 Portuguese
Poesia/Meditación Os Estatutos do Homem (Thiago de Mello) - uma carta universal dos direitos humanos poética. 0 3.800 09/19/2011 - 00:21 Portuguese
Poesia/Meditación Para os que virão (Thiago de Mello) 0 1.873 09/19/2011 - 00:15 Portuguese
Videos/Musica Tocando em frente, de Almir Sater & Renato Teixeira (Xangai) 0 4.469 09/18/2011 - 22:37 Portuguese