O Fim da Noite.

A manhã aproximava-se lentamente, pálida e fresca, Augusto Rego depois de mais uma noite inquieta sem sono, tinha as esperanças viradas para um caminho de andarilho, de passadas curtas e sem propósito. Antes andar sem rumo pelo fim da noite, que remoer mais uma hora de desconforto nos lençóis amarfanhados, assim pensou. Descia a longa avenida de altos muros brancos, pontilhados pelo alinhamento de uma carreira de buracos côncavos, preparados para o escoamento de águas do campo lá em cima, moldados agora para outro intento, faziam a vez de ninhos improvisados para famílias inteiras de rolas e pombos, que se agitavam à sua passagem. Com a visão das luzes da cidade ao fundo, depois da ponte, desanuviava a raiva que lhe marcava o peito a cada passo que dava. Fugia lesto do presente incómodo, na direção do bulício da cidade prestes a acordar. Aí encontraria qualquer rastro de memórias antigas que talvez o iluminassem de alegria, nem que fosse por um momento só.

Em vez disso, encontrou a imagem torpe de um homem, baloiçando trémulo na balaustrada diminuta da ponte e equilibrando o peso bastardo de uma grande pedra nos braços, junta ao peito pelo abraço de um cordame agreste. Bastaram alguns segundos para discernir as suas intenções. Uma fraqueza que à vista, era completamente nova para si, mas uma que nem por isso já não lhe tivesse passado amiúde pela cabeça, em tempos.

- Espere aí, o que vai fazer? - Gritava Augusto, num rude alerta lançado ao suicida. - Não faça isso! Vai se estatelar lá em baixo, não tem altura que chegue para saltar. – Achou pouco o argumento. Não tinha razão para mais.

- Deixe-me em paz. - Respondeu-lhe o outro, secamente, numa voz nasalada. - Que tem você a ver com isso? – Persignou-se prontamente, com a intenção da queda já determinada.

De facto, assim era. Que tinha Augusto Rego a ver com aquilo? Ele mesmo, constantemente assaltado por sonhos de morte, que o libertassem de uma vida que tanto o desgostava. Naquele instante, um prazer doloroso gravou-se-lhe mais fundo no espírito, mais poderoso que um simples delírio. - Melhor do que sonhar é fazer. – Argumentava no redemoinho da sua mente confusa.

Ocorreu-lhe pela similitude da imagem, que em vez de o contrariar, de bom grado se juntaria a ele em cima do corrimão. Era essa a estalada virtuosa que o seu juízo lhe oferecia. Porém, congelou de medo, ao ver a morte assim tão perto de si, claramente estampada no rosto daquele homem. O bom senso vigorava como sempre lhe cuidara, amaldiçoando-o uma vez mais com o suor pegajoso da covardia.

Talvez fosse mais seguro sonha-la, e evitar a dor de a conhecer tão de perto. E o certo é que, depois de tantos anos ansiando-a, nunca lhe havia sido devidamente apresentado, de modo que sentiu quase uma vergonha estranha apoderando-se de si, ao vê-la assim mesmo ao seu lado, e acabrunhou-se por lhe ter dirigido a palavra sem pensar bem no conteúdo do que lhe dizia. Uma timidez copiosa à qual não era estranho, a mesma lição de sempre a repetir.

- Vai mesmo fazê-lo? – Perguntou-lhe com calma, colocando-se prostrado a seu lado. – Vai mesmo saltar? – Continuou, debruçando o rosto no sentido do negrume do rio.

O homem, de costas voltadas para si, com uma perna já lançada para o além do varandim da ponte, e o peso do pedregulho a puxá-lo para o passo derradeiro, não foi capaz de lhe responder de imediato. Deixou que as suas palavras escorressem para dentro como óleo por si abaixo, num rastro moroso formado pelo eco daquelas palavras de estorvo, e só no exato instante em que se sentiu de tal forma incomodado pela última pinga que escorria é que manifestou vontade de lhe responder. Não o fez contudo, e Augusto, sem que se apercebesse disto, voltou à carga.

- Ouça-me, - Continuava este numa birra de criança. - Estou a falar consigo. Descanse que não vou fazer nada para o impedir. Longe de mim. Cada um é dono de si mesmo, e se está aí em cima é por quer aí estar, eu..eu, só queria saber porquê. Curiosidade, percebe-me? – Insistia Augusto no diálogo descabido.

Na estranheza da situação, o suicida não conseguia de todo articular fosse o que fosse. Talvez, bem lá no fundo, tivesse a esperança que Augusto fosse a mão resoluta de Deus que o resgatasse daquelas intenções extremas, e o carregasse em mãos de aconchego para a solução do seu problema.

- Vá-se daqui! - Respondeu-lhe com rispidez apercebendo-se da insensatez. - Já lhe disse que não tem nada a ver com isto.

- Porra homem, eu não o vou empurrar, nem me aproximo mais, vê! Só quero saber..

- Saber o quê, merda! O que raio é posso eu fazer por si, quer me dizer, quer? Que merda de coisa é essa que quer saber?

- Porquê! – Descaiu-se o outro num fio de voz. - O que foi que o levou a fazer isto. – Argumentava. - Estou curioso!

A sua picardia transbordou a resolução louca do pobre homem. Como se não bastasse a decisão de desespero que o levara naquela noite na senda da morte, em cima disso ainda haveria de aguentar com a curiosidade mórbida daquele estranho? Relançou a perna com delicadeza à segurança do corrimão, e resvalou para dentro do passadiço da ponte. Depois, sem bem sequer altear o tom de voz, virou-se para Augusto, mostrando-lhe nitidamente o rosto translúcido da perdição, e falou-lhe com uma voz calma e circunspecta, vinda do fundo do desespero:

- Esta pedra que aqui vê, aguenta bem com o peso de dois. Quer saber, quer mesmo saber? – Já baixado à altura do passeio, mostrou-lhe a pedra elevando-a à altura dos olhos, retesando os músculos dos braços enquanto a segurava assim, não parecia pesar mais do que uma pena para si, pois não havia qualquer alteração de esforço no seu rosto que assim o denotasse.

Augusto Rego ficou lívido num instante. Por nada deste mundo esperava essa resposta. Todas, menos esta resposta. Nunca o seria capaz, era um mundo virado do avesso o seu. Não havia lugar nesse mundo para clareza de raciocínio. E acabou por recolher-se ao seu buraco de vergonha, evadindo-se da ação de uma resposta.

- Desculpe, não era a minha intenção..eu não queria! Vou-me embora e deixo-o entregue ao seu destino. – Exclamou baixo, novamente como uma criança, que foi apanhada numa asneira.

Aquele que sonha com a morte, que a deseja todos os dias, teme-a tanto, que nunca arregimenta coragem para tratar dos termos do seu fim. Augusto Rego afastou-se lentamente do homem, todo ele encolhido num feixe de vergonha e acanho. O suicida fitava-o atentamente, esperando apenas que ele se afastasse o suficiente para prosseguir com as suas intenções. Em simultâneo perpassava-lhe uma tristeza imensa pelo rosto por descobrir que afinal Deus não tinha mudado de ideias e o deixava ali abandonado à mercê da danação. Determinado, e se possível ainda mais transtornado, voltaria ao seu poiso no topo dos balaústres da ponte.

- É, é assim mesmo, - Remeteu-lhe o discurso pelas costas. - Ponha-se a andar daqui seu maluco, não há nada aqui para ver. São só tarados que aparecem nesta cidade de merda. Porra para isto! – Continuou por alguns momentos barafustando de fúria.

A figura inerte de Augusto, esmiuçada num molho convoluto de embaraço, afastava-se lenta virada à direção de onde viera antes.

Para o homem que reconquistara a posse do tabuleiro da ponte, uma segunda subida até ao precipício mostrava-se agora mais complicada, como se o peso da pedra se tivesse multiplicado por cem e esta se tornasse quase impossível de erguer, todavia um peso ainda maior parecia querer arrastá-lo do topo da ponte ventosa. A imagem de Augusto, afastando-se em desalento.

O roçar rude da corda no seu pescoço embaraçava-lhe os gestos e acusava já uma moléstia interior difícil de quantificar. O breu aquoso lá em baixo aliciava-o ainda, tanto, que fechou os olhos e preparou-se para o passo decisivo.

Uma paz infinita corria solta dentro do seu peito, um prenúncio certo da razão de ali estar àquela hora da madrugada, debruçado sobre a morte, resoluto por criar o fecho de uma existência que por circunstâncias adversas o conduzira àquele lugar.

Os dedos inconstantes iam tocando a melodia do adeus, por cada nota de desapego que faziam na superfície da pedra, o peso, a própria dor do parco equilíbrio concediam-lhe o avolumar da vontade de partir.

Quatro dedos apenas seguravam aquele peso descomunal naquele momento. Quatro fios de carne e osso o separavam da morte, e contudo, os seus olhos não despegavam da figura de Augusto, já quase perdido na neblina gélida da manhã. Era tudo quanto os seus sentidos se queriam concentrar, naquele homem que se afastava. Quis acreditar que fosse mais do que isso, que aquele corpo na distância, era uma esperança, e ainda que hirto numa estaca de força no cimo do corrimão, ouviu a sua própria voz a gritar alto, cortando a névoa espessa que o tentava ocultar de si.

Augusto ouviu com clareza o grito a escorrer comprido pela espessura do nevoeiro e atrasou o passo até o parar num repente. Ao voltar-se ouviu apenas o ruído húmido de algo pesado que se afundava no rio, e o próprio som deve ter criado o estranho fenómeno de dissipar a bruma opaca, pois conseguiu vislumbrar na distância, um homem parado em cima da ponte, fitando-o com um sorriso.

A manhã chegara por fim, imensa, completa de luz, e Augusto dirigiu-se de novo para a cidade, fazendo companhia à vida que ali nascera.

 

Casimiro Teixeira

2004

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Martes, Junio 14, 2011 - 19:37

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neomiro

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Meus Parabéns Construção

Meus Parabéns

Construção sublime.

No limiar do sentido. No fundo do desespero.

Na companhia do frio matutino que esmorece com o levantar da luz.

O juízo recuperado com o dissipar do nevoeiro.

 O adiar da inevitabilidade da morte, numa esperança de recuperação

do sentido... de prazer... de uma raíz (identidade//ligação).

Um Abraço. 

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O Fim da Noite

Grato por essas palavras repletas de poesia, fico muito feliz por ter gostado do conto Ricardo.

um grande abraço,

neomiro

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Gostei muito,uma história

Gostei muito,uma história muito bem construída,capaz de emitir som,imagem com detalhes realistas e ao mesmo tempo o imaginário criativo que nos liberta...

Parabénssmiley

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Muito obrigado Suzete pelas

Muito obrigado Suzete pelas suas carinhosas palavras.

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Concurso Literário "Ser Solidário"

Este conto foi agraciado com uma de duas menções honrosas atribuidas no I Concurso Literário "Ser Solidário" organizado pelo Serviço de Humanização do Hospital de S. João do Porto. O que foi motivo de grande orgulho para mim.

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