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Das Antigas e Das Novas Tábuas

I

“Aqui aguardo sentado, rodeado de antigas tábuas quebradas, e também de tábuas novas meio-escritas. Quando chegará a minha hora? A hora do meu descimento, da minha declinação: porque eu quero voltar outra vez para o laido dos homens.

Eis o que quero agora: hão de vir os sinais indicadores de que chegou a minha hora: o leão risonho com o bando de pombas.

Entretanto, como tenho tempo falo comigo mesmo. Ninguém me conta coisas novas; por conseguinte, narro-me eu a mim mesmo. II

Quando vim para o lado dos homens, achei-os fortificados numa estranha presunção: todos julgavam saber há muito tempo o que é bem e mal para o homem.

Toda a discussão sobre a virtude lhes parecia coisa velha e cansada, e o que queria dormir tranqüilamente até falava do “bem” e do “mal” antes de se ir deitar.

Eu sacudi o torpor desse sono quando ensinei: Ninguém sabe ainda o que é o bem e mal... a não ser o criador.

Só o que cria o fim dos homens e o que dá o sentido e futuro à terra, só esse cria o bem e o mal de todas as coisas.

E eu ordenei-lhes que derribassem as suas antigas cátedras, e onde quer que exista essa estranha presunção, mandei-os rir dos seus grandes mestres de virtude, dos seus santos, dos seus poetas e dos seus salvadores do mundo.

Mandei-os rir dos seus sábios austeros, e punha-os em guarda contra os negros espantalhos plantados na árvore da vida.

Sentei-me à beira da sua grande rua de sepulturas, até entre os abutres, e ri-me de todo o seu passado e do triste esplendor desse passado ruinoso.

À semelhança dos pregadores de quaresma e dos loucos, fulminei anátemas contra as suas grandezas e pequenezas. — Como é pequeno o melhor deles! E igualmente pequeno o pior! — Assim me ria.

E freqüentemente o meu desejo me levou muito longe, mais além, para o alto, por entre riso; eu então voava estremecendo como uma flecha através dos êxtases ébrios de sol: voava para remotos futuros que nenhum sonho viu, para meios-dias mais cálidos dos que jamais pôde sonhar a fantasia — para além onde os deuses se envergonham de todos os vestidos — a fim de falar em parábolas e balbuciar e coxear como os poetas, e na verdade, envergonho-me de ser ainda poeta!

Voava aonde todo o acontecimento me parecia bailes e travessuras divinas, e o mundo só e desenfreado refugiando-se em si mesmo; como um eterno fugir e procurar muitos desses, como o bendito contradizer-se, rir-se e tornar a si de muitos deuses.

Aonde todo o tempo me parecia uma deliciosa zombaria dos instantes, aonde a necessidade era a mesma liberdade, que brincava satisfeita com o aguilhão dessa liberdade.

Aonde tornei a encontrar também o meu antigo demônio e inimigo inato, o espírito de pesadume e tudo o que ele criou: a coação, a lei, a necessidade, a conseqüência, o fim, a vontade, o bem e o mal.

Pois não é necessário haver coisas sobre os quais se possa dançar e passear dançando? Não é necessário que haja, por causa dos leves e dos mais leves, míopes e pesados anões? III

Também além apanhei no meu caminho a palavra “Super-homem” e esta doutrina: o homem é uma coisa que deve ser superada; o homem há de ser uma ponte, e não um fim: satisfeito do seu meio-dia e da sua tarde. A palavra de Zaratustra sobre o grande Meio-dia, suspendi aos ombros como um segundo manto de púrpura.

Fiz-lhes também ver novas estrelas e novas noites, e sobre as nuvens e o dia e a noite estendi o riso como um verdadeiro tapete de variadas cores.

Ensinei-lhes todos os meus pensamentos e todas as minhas aspirações: a concentrar e a unir tudo o que no homem não é mais que fragmento e enigma e pavoroso azar.

Como poeta, como adivinho de enigmas, como redentor do azar, ensinei-os a serem criadores do futuro e a salvar criando tudo o que foi.

Salvar o passado no homem e transformar tudo “o que foi” até a vontade de dizer: “Mas eu queria que fosse assim! Assim o hei de querer!”

Eis o que chamei a sua salvação; só a isso lhes ensinei a chamar salvação.

Agora espero a minha para voltar pela última vez ao lado deles.

Que mais uma vez quero voltar para o lado dos homens: quero desaparecer entre eles, e oferecer-lhes, ao morrer, o mais rico dos dons.

Eis o que aprendi do sol, desse opulento sol de inesgotável riqueza que, ao pôr-se, derrama o seu ouro pelo mar; por isso, até os mais pobres pescadores remam com dourados remos! Vi isto uma vez, e enquanto o via, as minhas lágrimas não se cansavam de correr...

À maneira do solo, quer desaparecer também, Zaratustra: senta-se agora aqui a esperar, rodeado de antigas tábuas quebradas e de tábuas novas... meio-escritas. IV

Vede: tendes aqui uma nova tábua; mas onde estão os meus irmãos para a levarem comigo ao vale e aos corações de carne?

Assim o exige o meu grande amor aos mais afastados: não vejas pelo teu próximo! O homem é coisa que deve ser superada.

Pode uma pessoa chegar a superar-se por múltiplos meios e caminhos: isso é coisa tua. Só um jogral pensa: “Também se pode saltar por cima do homem:”.

Supera-te a ti mesmo, até no teu próximo, e não consintas te dêem um direito que possas conquistar.

O que tu fazes ninguém to pode tornar a fazer. Fica sabendo: não há recompensa.

O que se não pode mandar a si mesmo deve obedecer.

E há quem saiba mandar, mas esteja ainda muito longe de saber obedecer. V

Tal é a condição das almas nobres: nada querem ter gratuitamente, e menos que tudo, a vida.

O que forma parte da populaça quer viver gratuitamente; mas nós, a quem a vida se deu, pensamos sempre no melhor que poderíamos dar em troca.

E na verdade é nobre a linguagem que diz: “O que a vida nos prometeu a nós, queremo-lo nós cumprir... à vida!”

Não se deve querer gozar onde se não é motivo de gozo. E... não se deve querer gozar!

Que o gozo e a inocência são as coisas mais pudicas: nenhuma delas quer ser procurada.

É preciso possuí-las; mas ainda vale mais procurar a culpa e a dor. VI

Meus irmãos, aquele que é uma primícia há de ser sempre sacrificado; e nós agora somos primícias.

Todos sangramos no altar secreto dos sacrifícios, todos ardemos e nos assamos em honra dos velhos ídolos.

O melhor de nós é ainda novo: excita os paladares velhos. A nossa carne é tenra, a nossa pele não é mais do que uma pele de cordeiro: como não havemos de tentar velhos sacerdotes idólatras?

Em nós mesmos respira ainda o velho sacerdote idólatra que se prepara para celebrar um festim com o melhor que temos.

Ai, meus irmãos! como não hão de ser os precursores sacrificados!

Mas assim o quer a nossa condição, e eu amo os que se não querem conservar. Amo de todo o meu coração os que desaparecem, porque passam para o outro lado. VII

Ser verídicos.. . poucos o sabem! E o que o sabe não o quer ser! E menos que ninguém, os bons.

Os tais bons. Os homens bons nunca dizem a verdade: ser bom de tal maneira é uma enfermidade para o espírito.

Esses bons cedem, rendem-se; a sua memória repete como um eco e a sua razão obedece; não se ouve a si mesma!

Tudo quanto os bons chamam mau deve reunir-se para nascer uma verdade. Ó! meus irmãos! Sois bastante maus para essa verdade?

A audácia temerária, a prolongada desconfiança, o cruel Não, a versão, a incisão no vivo... como é raro isto tudo reunir-se! De tais sementes nasce todavia... a verdade.

Ao lado da consciência réproba cresce todo o saber até hoje! Quebrai, quebrai as antigas tábuas: vós que aspirais ao conhecimento! VIII

Quando há madeiras estendidas sobre a água, quando há pontes e parapeitos através do rio, não se dá crédito a ninguém que diga: “Tudo corre”.

Pelo contrário: até os imbecis o contradizem. “Que! — exclamam. — Tudo corre? Então as madeiras e os parapeitos que estão sobre o rio?”

“Por cima do rio tudo é sólido; todos os valores das coisas, os conceitos, todo o “bem e mal” tudo isso é sólido.

E quando vem o cru inverno, o domador dos rios, os mais maliciosos aprendem a desconfiar; e não são só os imbecis que dizem então: “Não estaria tudo imóvel?” “No fundo tudo permanece imóvel”: eis um verdadeiro ensinamento do inverno, uma boa coisa para os tempos estéreis, um bom consolo para o sono invernal e os sedentários.

“No fundo tudo permanece imóvel”; mas o vento do degelo protesta contra esta palavra.

O vento do degelo, um vento que não lavra, um touro furioso e destruidor que quebra o gelo, com hastes coléricas! O gelo, por sua parte, quebra as pontes!

Ó! meus irmãos! Não corre agora tudo! Não cairam à água todos os parapeitos e todas as pontes! Quem esperaria ainda o bem e o mal?

Ai de nós! Glória a nós! Sopra o vento do degelo! Pregai isto através de todas as ruas, meus irmãos. IX

Há uma estranha loucura que se chama bem e mal.

A roda dessa loucura girou até hoje em torno dos adivinhos e dos astrólogos.

Noutro tempo cria-se nos adivinhos e nos astrólogos, e por isso se cria: “Tudo é fatalidade: tu deves porque é necessário!”

Desconfiou-se depois de todos os adivinhos e de todos os astrólogos, e por isso se acreditou: “Tudo é liberdade: podes porque queres!”

Ó! meus irmãos! Sobre as estrelas e sobre o futuro não se tem feito até hoje senão conjeturar, sem se saber nunca; e por isso sobre o bem e o mal não se tem feito senão conjeturar, sem se saber nunca. X

“Não roubarás! Não matarás!” Estas palavras chamavam-se santas noutro tempo; perante elas dobrava a gente os joelhos e a cabeça, e descalçava-se.

Eu pergunto-vos, porém: onde houve jamais no mundo melhores salteadores e assassinos que estas santas palavras? Não há na mesma vida roubo e assassínio? E ao santificar estas palavras, não se assassinou a própria verdade?

Ou seria predicar a morte, santificar tudo o que contradizia e desaconselhava a vida? Ó! Meus irmãos! Quebrai-me as antigas tábuas. XI

Condôo-me do passado inteiro quando vejo o seu abandono à mercê do arbítrio, das disposições, dos desvarios de cada geração que chega e olha tudo o que existiu como ponto de si mesma.

Poderia vir um grande déspota, um gênio maléfico que violentasse arbitrariamente todo o passado, até chegar a ser para ele uma ponte, um prognóstico, um arauto e um canto de galo.

Mas eis aqui o outro perigo e a minha outra compaixão: os pensamentos do que forma parte da população remontam até o avô; mas com o avô acaba o tempo.

Por isso todo o passado fica ao abandono: porque um dia poderia suceder a populaça tornar-se senhor, e todo o tempo se afogasse em águas superficiais.

Por isso, meus irmãos, é preciso uma nova nobreza adversária de toda a populaça e de todo o despotismo, e que escreva novamente, em novas tábuas, a palavra “nobre”.

Que são necessários muitos nobres para haver nobreza! Ou como em tempo disse uma parábola: “A divindade consiste precisamente em haver deuses mas não Deus!” XII

Ó! Meus irmãos! Ao ensinar-vos que deveis ser para mim criadores e educadores — semeadores do futuro — invisto-vos de uma nova pobreza; não é, na verdade, nobreza que possais comprar como bufarinheiros, e com ouro de bufarinheiros, porque tudo quanto tem preço, pouco valor tem.

O que vos honrará para o futuro não será a origem donde vindes, mas o tempo para onde ides! A vossa vontade e o vosso passo que querem ir mais longe do que vós: cifre-se nisto a vossa nova honra!

Não em terdes servido um príncipe — que importam já os príncipes! — ou em vos terdes tornado muralha do existente para o existente ser mais sólido.

Não em ter-se a vossa linhagem feito cortesã na corte, e me terdes aprendido como o flamengo, a estar durante longas horas à beira do lago: porque saber estar de pé é um mérito nos cortesãos; e todos os cortesãos julgam que ter a autorização de se sentar faz parte da felicidade depois da morte.

Nem tampouco em que um espírito a que chamam santo conduziu os vossos ascendentes a terras prometidas, que eu não elogio; porque no país onde brotou a pior das árvores — a cruz — nada há a elogiar!

E na verdade, onde quer que esse “Espirito Santo” conduza os seus cavaleiros, tais cortejos são sempre... precedidos de cabras, gansos, loucos e tresloucados.

Ó! Meus irmãos! Não é para trás que a vossa nobreza deve olhar, mas para a frente! Deveis ser expulsos de todas as pátrias e de todos os países dos vossos ascendentes.

Deveis amar o país dos vossos filhos: seja este amor a vossa nobreza; o país inexplorado no meio de longínquos mares; é isto que eu digo às vossas velas que procurem e tornem a procurar!

Deveis redimir-vos em vossos filhos de serdes filhos de vossos pais: assim libertareis o passado todo! Ponho por cima de vós esta nova tábua. XIII

“Para que viver? Tudo é vão! Viver... é trilhar palha; viver... é queimar-se sem se chegar a aquecer”.

Estas velhas cantilenas passam ainda por “sabedoria”: são estranhas, transcendem a ranço; por isso são mais honradas. Também a podridão enobrece.

Crianças é que podiam falar assim por que temem o fogo que já os queimou. Há muita puerilidade nos antigos livros da sabedoria.

E o que trilha palha, como teria o direito de zombar quando se trilha o trigo?

Seria preciso amordaçar tais loucos!

Estes sentam-se à mesa sem levar nada, nem sequer um bom apetite, e agora blasfemam: “Tudo é vão!”

Mas comer e beber bem, meus irmãos, não é na verdade uma arte vã. Quebrai, quebrai-me as tábuas dos eternamente descontentes. XIV

“Para os puros tudo é puro”. — Assim falava o povo. — Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco!

Por isso os fanáticos e os que curvam a cerviz, que também têm o coração inclinado, predicam desta forma:

“O próprio mundo é um monstro lamacento!”

Porque todos esses têm o espirito sujo, especialmente os que se não dão paz nem sossego enquanto não vêm o mundo por detrás: são os crentes no mundo posterior!

A esses lhes digo eu na cara, conquanto não soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por ter também traseiro: isto é muito verdade!

Há no mundo muita lama: isto é muita verdade! Mas nem por isso o mundo é um monstro lamacento!

É sensato haver no mundo muitas coisas que cheirem mal: o próprio asco cria asas e forças que pressentem mananciais!

Até nos melhores há qualquer coisa repugnante, até o melhor é coisa que se deve superar!

Ó! Meus irimãos! É sensato haver muita lama no mundo! XV

Tenho ouvido piedosos crentes em além-mundos dizerem à sua consciência palavras como estas, e de verdade, sem malícia nem zombaria, embora na terra nada haja mais falso nem pior:

“Deixai o mundo ser mundo! Não movais sequer um dedo contra ele!”

“Deixai as pessoas estrangularem-se, transpassarem-se, e pulverizarem-se; não movais sequer a um dedo para vos opordes a isso. Assim aprenderão a renunciar ao mundo”.

“E deverias abater e estrangular a sua própria razão, porque essa razão é deste mundo; assim aprenderás tu mesmo a renunciar ao mundo”.

Quebrai, quebrai, meus irmãos, essas velhas tábuas dos devotos! Aniquilai as palavras dos caluniadores do mundo! XVI

“Aquele que aprende muito esquece todos os desejos violentos”. Assim se murmura hoje em todas as ruas escuras.

“A sabedoria fatiga; nada vale a pena; não devo cobiçar”. Também encontrei esta nova tábua suspensa nas praças públicas.

Quebrai, meus irmãos, quebrai também essa nova tábua! Penduraram-na os enfastiados do mundo, os predicadores da morte e os carcereiros: porque ela é também um apelo ao servilismo.

Eles têm aprendido mal, e não as coisas melhores, e tudo cedo e depressa de mais: comeram mal e revolveu-se-lhes o estômago: que um estômago revolto é esse espírito que aconselha a morte! Porque o espírito, meus irmãos, é verdadeiramente um estômago.

A vida é uma fonte de alegria! Mas para aquele que deixa falar o estômago sobrecarregado, a da tristeza, todas as fontes estão envenenadas.

Conhecer é um gozo para quem tem vontade de leão. Mas o que se fatigou é tão somente “querido”; todas as ondas brincam com ele.

E assim fazem todos os fracos: perdem-se no caminho. E o seu cansaço acaba por perguntar a si mesmo: “Porque seguimos este caminho? Tudo é igual!”

É a eles que agrada ouvir pregar: “Nada vale a pena! Não deveis querer!” Mas isso, todavia, é um apelo ao servilismo.

Ó! Meus irmãos! Zaratustra chega como uma rajada de vento fresco para todos os que estão cansados do seu caminho; ainda há de fazer espirrar muitos narizes!

O meu hálito livre sopra através das paredes, penetrando nas prisões e nos espíritos presos!

A vontade liberta, porque a liberdade é criadora: assim ensino eu. E só para criar precisais aprender!

E só de mim necessitais aprender; a aprender, aprender bem. Quem tiver ouvidos que ouça. XVII

A barca está pronta; voga ali, além, talvez para o grande nada.

Quem quererá, porém, embarcar para esse “talvez?”

Nenhum de vós quer embarcar na barca da morte? Como quereis então estar cansados do mundo!

Cansados do mundo! E nem sequer estais desprendidos da terra! Eu sempre vos vi desejosos da terra, enamorados do vosso próprio cansaço da terra!

Não é em vão que tendes o lábio descaido: ainda nele pesa um desejo terrestre! E em vosso olhar não flutua uma nuvem de alegria terrestre que ainda não esqueceste?

Há na terra muitas boas invenções, umas úteis, outras agradáveis; por isso é preciso amar a terra.

E algumas invenções são tão boas que, como o seio da mulher, são úteis e agradáveis ao mesmo tempo.

A vós, porém, fatigados do mundo e preguiçosos, é preciso sacudir-vos com vergastas! É necessário aligeirar-vos as pernas com vergastadas!

Que, se não sois enfermos e seres gastos, de quem a terra está fatigada, sois preguiçosos ladinos ou gatos gulosos e casmurros que só buscam o seu prazer.

E se não quereis tornar a correr alegremente, o melhor é desaparecerdes.

Não há que ter empenho em ser médico dos incuráveis; assim ensina Zaratustra. Desaparecei, pois!

Mas é necessário mais valor para rematar do que para fazer um verso novo: isto sabem-no todos os médicos e todos os poetas. XVIII

Ó! Meus irmãos! Há tábuas criadas pela fadiga e tábuas criadas pela preguiça: conquanto falem de igual modo querem ser ouvidas de maneira diferente.

Vede esse prostrado! Falta-lhe apenas um passo para chegar ao fim; mas, por causa da fadiga, o valente caiu irritado na areia.

Simplesmente rendido boceja à vista do caminho da terra, do seu fim e de si mesmo: não quer dar mais um passo, o valente!

O sol agora derrete-o, e os cães quereriam lamber-lhe o suor; mas para ali está caido pertinazmente e prefere consumir-se.

Consumir-se a um passo do seu fim! A semelhante herói o melhor é erguê-lo pelos cabelos até a sua reação!

Mais vale, em verdade, que o deixeis onde caiu até que lhe venha o sono, o sono consolador, com um rumor de chuva refrigerante.

Deixai-o deitado até despertar; até que repila todo o cansaço e tudo o que nele demonstrava cansaço.

O que haveis de fazer, meus irmãos, é afastar dele os cães, os preguiçosos casmurros e toda essa praga invasora.

Toda a praga invasora da gente “ilustrada” que se alimenta do suor dos heróis! XIX

Eu traço em torno de mim círculos e santas fronteiras: cada vez são menos os que sobem comigo por montanhas mais elevadas; eu levanto uma cadeia de montes cada vez mais santos.

Mas onde quer que desejeis subir comigo, meus irmãos, olhai que não haja parasitas que subam convosco!

Um parasita é um verme rasteiro e insinuante que quer engordar com todas as vossas intimidades enfermas e feridas.

É esta a sua arte; adivinhar onde estão, fatigadas, as almas que sobem. Na vossa aflição, no vosso descontentamento, no vosso frágil pudor constrói o seu repugnante ninho.

Onde o forte é débil, onde o nobre é demasiado indulgente, é ali que constrói o seu repugnante ninho; o parasita habita onde o grande tem recantos doentes.

Qual é espécie de seres mais elevada, e qual a mais baixa?

O parasita é a espécie mais baixa, mas o da espécie mais alta é o que alimenta mais parasitas.

Como não há de a alma, que tem a escala mais vasta, descer mais baixo, transportar sobre si o maior número de parasitas?

A alma mais vasta que pode correr, extraviar-se e errar mais longe em si mesma; a mais necessária, que por prazer se precipita no azar.

A alma que é e se submerge na corrente do há de ser; a alma que possui e quer o querer e o desejo.

A alma que foge de si mesma, e que se alcança a si mesma no mais amplo círculo; a alma, mais sensata a quem a loucura convida mais docemente.

A alma que ama mais a si mesma, na qual todas as coisas têm a sua ascensão e a sua descensão, o seu fluxo e o seu refluxo... Ó! como não havia a alma mais alta de ter os piores parasitas? XX

Ó! Meus irmãos! Acaso serei cruel? Mas eu vos digo; ao que cai é ainda mister empurrá-lo!

Tudo o que é de hoje cai e se desconcerta: quem, pois, o quereria deter? Eu, pela minha parte, ainda quero empurrá-lo.

Conheceis a volutuosidade que precipita as pedra em profundidades? Vede os homens de hoje: olhai como rondam pelas minhas profundidades!

Eu sou um prelúdio para melhores tangedores, meus irmãos! Um exemplo! Procedei segundo meu exemplo!

E a quem não ensinardes a voar, ensinai-lhe... a cair mais depressa! XXI

Agradam-me os valentes; mas não basta ser uma boa espada; é preciso saber também a quem se fere!

E muitas vezes mais valentia em se abster e em passar adiante, a fim de se reservar para um inimigo mais digno.

Vós deveis ter somente inimigos dignos de ódio, mas não inimigos dignos de desprezo: é mister estardes orgulhosos do vosso inimigo; já uma vez vo-lo ensinei.

É mister reservarde-vos para o inimigo mais digno, meus amigos: por isso há muitos adiante dos quais deveis passar; sobretudo ante a canalha numerosa que vos apedreja os ouvidos, falando-vos do povo e das nações.

Livrai os vossos olhos do seu “pró” e do seu “contra”! Há ali muita justiça e injustiça: ver tal coisa revolta.

Vê-la é investir, é tudo a mesma coisa. Ide-vos, pois, ao bosque e dai paz à vossa espada!

Segui os vossos caminhos! E deixai os povos, e nações seguir os seus! Caminhos escuros na verdade, onde já não trilha nenhuma esperança.

Reine o bufarinheiro onde tudo quanto brilha é só ouro de bufarinheiro! Já não é tempo de reis: o que hoje se chama povo merece rei.

Senão, olhai como as nações imitam agora os bufarinheiros: aproveitam as menores utilidades em todas as varreduras.

Espiam-se, espreitam-se; é a isso que chamam “boa vizinhança”. Ditosos tempos aqueles em que um povo dizia:

“Sobre nações quero eu fazer-me senhor!”

Que, meus irmãos, o melhor deve reinar, o melhor quer também reinar. E onde se ouve outra doutrina, é que falta o melhor. XXII

Se estes tivessem o pão de graça, atrás de quem andariam a gritar? Em que se ocupariam se não fosse da sua subsistência? E é necessário terem vida rigorosa!

São animais rapaces: no seu “trabalho” há também roubo; nos seus “lucros”... há também astúcia. Por isso devem ter vida rigorosa.

Devem, pois, tornar-se melhores animais rapaces, mais finos e astutos, animais mais semelhantes ao homem porque é o melhor animal rapace.

O homem arrebatou já as suas virtudes a todos os animais; por isso, de todos os animais é o homem que tem tido vida mais dura.

Só as aves estão acima dele. E se o homem aprendesse também a voar, ó! a que altura voaria a sua rapacidade! XIII

Eis como quero o homem e a mulher: um, apto para a guerra, a outra, apta para dar à luz; mas os dois aptos para dançar com cabeças e pernas.

E que todo o dia em que se não haja dançado, pelo menos uma vez, seja para nós perdido! E toda a verdade que não traga ao menos um riso nos pareça verdade falsa. XXIV

Quanto à maneira por que “atais” os vossos matrimônios, cuidai não seja um mau nó.

Atastes com demasiada pressa? Pois disso se segue um rompimento, um adultério.

E ainda vale mais romper o vínculo do que sujeitar-se a mentir. Eis o que me disse uma mulher: “É verdade que quebrei os laços do matrimônio, mas os laços do matrimônio tinham-me quebrado a mim”.

Sempre vi os mal-avindos sedentos da pior vingança: vingam-se em toda a gente de não poderem já andar separados.

Por isso quero que os que estão de boa fé digam: “Nós não nos amamos: procuremos conservar o afeto!” Ou então: “Seria a nossa promessa um equívoco?”

“Dai-nos um prazo, uma breve união para vermos se somos capazes de uma longa união! Grave coisa é ser sempre dois!”

Assim aconselho a todos que estão de boa fé; e a que se reduziria o meu amor ao Super-homem e a tudo o que deve vir, se aconselhasse e falasse doutro modo?

E não só vos deveis multiplicar, mas elevar. Ó! Meus irmãos, ajude-vos nisso o jardim do matrimônio! XXV

Aquele que conhece a fundo as antigas origens acabará por procurar as fontes do futuro e novas origens.

Meus irmãos, já não passará muito tempo sem novos mananciais soarem em novas profundidades.

Que o terremoto funda muitas fontes e cria muita sede; eleva também à luz forças interiores e secretas.

O tremor de terra revela mananciais. Do cataclismo dos povos antigos surgem mananciais novos.

E se alguém exclama “Olhai: aqui tendes uma fonte para muitos sedentos, um coração para muitos desmaiados, uma vontade para muitos instrumentos”, em torno desse alguém se reúne o povo, quer dizer, muitos homens que tentam a prova.

O que ali se ensaia é quem sabe mandar e quem deve obedecer.

A sociedade humana é uma tentativa: eis o que eu ensino: uma longa investigação; mas procura o que mando.

Uma tentativa, meus irmãos, e não um “contrato”. Rompei com tais palavras dos corações covardes e dos amigos de composições! XXVI

Ó! Meus irmãos! Em quem se encontra o maior perigo do futuro humano? Não é nos bons e nos justos?

Nos que dizem e sentem no seu coração: “Nós sabemos já o que é bom e justo, e possuimo-lo: desgraçados dos que ainda querem procurar aqui!”

E por muito mal que os maus possam fazer, o que fazem os bons é o mais nocivo de tudo!

E por muito mal que os caluniadores do mundo possam fazer, o que fazem os bons é o mais nocivo de tudo!

Meus irmãos, alguém olhou uma vez o coração dos bons e dos justos, e disse: “São os fariseus”. Ninguém, porém, o entendeu.

Os bons e os justos mesmos, não o deviam compreender: o espírito deles é um prisioneiro da sua consciência.

A verdade, porém, é esta: é forçoso os bons serem fariseus: não têm escolha!

É forçoso os bons crucificarem o que inventa a sua própria virtude! É esta a verdade!

Outro que descobriu o seu país — o país, o coração, e o terreno dos bons e dos justos — foi aquele que perguntou: “A quem odeiam mais?”

O criador é quem eles mais odeiam: aquele que quebrar tábuas e estranhos valores, ao destruidor, a esse é que chamam criminoso.

Que os bons... não podem criar: são sempre o princípio do fim.

Crucificam aquele que escreve novos valores em tábuas novas; sacrificam para si o futuro; crucificam o futuro inteiro dos homens!

Os bons sempre o princípio do fim. XXVII

Meus irmãos, compreendestes também estas palavras, e o que disse um dia o “último homem?”.

Em quem se encontram os maiores perigos para o futuro dos homens? Não nos bons e nos justos?

Acabai, acabai com os bons e os justos! Meus irmãos, compreendestes também esta palavra? XXVIII

Fugis de mim? Assustai-vos? Tremeis ante esta palavra?

Meus irmãos, enquanto vos não disse que acabasseis com os bons e com as tábuas dos bons, não embarquei o homem no seu alto mar.

Só agora é que lhe sobrevem o grande terror, o grande olhar inquieto, a grande enfermidade, a grande náusea, o grande enjôo.

Os bons ensinaram-vos coisas enganadoras e falsas seguranças: tínheis nascido entre as mentiras dos bons e havíeis-vos refugiado nelas.

Os bons falsearam e desnaturalizaram radicalmente as coisas.

Mas o que descobriu o país “homem” descobriu ao mesmo tempo o país “futuro dos homens”. Agora deveis ser para mim corajosos e pacientes marinheiros!

Caminhai direitos a tempo, meus irmãos! Aprendei a caminhar direitos! O mar está agitado; há muitos que necessitam de vós para se encaminharem.

O mar brama: tudo está no mar! Eia! Avante! velhos corações de marinheiros!

Que importa a pátria? Nós queremos governar lá em baixo onde está o país de nossos filhos! Além, ao longo, mais fogoso do que o mar, se desencadeia o nosso grande desejo. XXIX

“Porque serei tão duro? — disse um dia o diamante ao carvão comum. — Não somos próximos parentes?”

Porque sois tão brandos? vos pergunto eu, meus irmãos: então não sois meus irmãos?

Porque sois tão brandos, tão pegajosos, tão frouxos? Porque há tanta renúncia, tanta abdicação em vossos corações? Tão pouco alvo no vosso olhar?

E se não quereis ser destinos, se não quereis ser inexoráveis, como poderíeis um dia vencer comigo?

E se a nossa dureza não quer cintilar e cortar a sachar, como poderíeis um dia criar comigo?

Que os criadores são duros. E deve-nos parecer beatitude imprimir a vossa mão em séculos como em cera branda, e escrever sobre a vontade de milenários como sobre bronze — mais duros que o bronze, mais nobres que o bronze. — E o mais duro é mais nobre.

Meus irmãos, eu coloco sobre vós esta nova tábua: Fazei-vos duros! XXX

Ó! tu, vontade, necessidade minha, trégua de toda a miséria! Livra-me de todas as pequenas vitórias!

Azar da minha alma a que chamo destino! Tu que estás em mim e sobre mim, livra-me e reserva-me para um grande destino!

E tu, última grandeza, vontade minha, conserva-a para um fim, para que sejas implacável na tua vitória! Ai! Quem não sucumbirá à sua vitória?

Ai! Que olhos se não têm turvado nessa embriaguez de crepúsculo? Que pé não tem tropeçado e perdido a sua firmeza na vitória?

A fim de estar preparado e maduro quando chegar o Grande Meio-dia, preparado e maduro como o bronze reluzente, como a nuvem cheia de relâmpagos e o seio cheio de leite.

Preparado para mim mesmo e para a minha vontade mais oculta: um arco anelante da sua flecha, uma flecha anelante da sua estrela.

Uma estrela preparada e madura no seu meio-dia, ardente e trespassada, satisfeita da flecha celeste que a destrói.

Sol e implacável vontade de sol, pronta a destruir na vitória.

Ó! vontade, necessidade minha, trégua de toda a miséria! Reserva-me para uma grande vitória”.

Assim falava Zaratustra.

Friedrich Nietzsche

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sábado, abril 11, 2009 - 00:56

Poesia Consagrada :

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