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Origem de Assim falou Zaratrustra

“Zaratastra” é a obra pessoal do meu irmão, a história das suas experiências íntimas, das suas amizades, do seu ideal, dos seus arroubos, das suas desilusões e dos seus sofrimentos mais amargos. Porém delineia-se aqui, mormente esplendorosa, a imagem da sua mais alta esperança, do seu fim mais determinado. A figura de Zaratustra apareceu desde os jovens anos ao meu irmão que me escreveu, certa vez, tê-la já visto em sonho quando menino. A esta forma de sonho ele deu, segundo os tempos, nomes diferentes; “mas por fim — diz em anotação posterior — dei preferência a um persa. Primeiramente pensaram os persas na história de modo vasto e completo. Veio um séquito de evoluções, cada qual presidida por um profeta. Cada profeta tem o seu Hazar e o seu reino de mil anos.”

Os conceitos gerais de Zaratustra, assim como a figura do anunciador, são de origem antiquíssima. Quem estudar atentamente a obra póstuma de 1869 a 1882 descortinará, embriônico, o ciclo de idéias de Zaratustra, como seja o ideal do super-homem que já se destaca em todos os escritos do autor nos anos de 1873 a 1875. Consultem-se os tomos I e II desta edição (5), bastando-me citar por ora os seguintes tópicos do Nós os filólogos: “Como poder glorificar e louvar um povo todo! Existem solitários, mesmo entre os gregos”.

“Sobremodo interessantes e importantíssimos são os gregos porque possuem multidão de grandes solitários. Como foi isso possível? Cumpre estudá-lo.

“Interessa-me unicamente a posição de um povo com relação à educação de cada qual singularmente; e a dos gregos por certo é muito favorável ao desenvolvimento do indivíduo, não pela bondade do povo, mas pela luta dos maus instintos.

“Mediante felizes invenções pode-se educar o grande indivíduo de modo totalmente diferente e mais elevado do que aquele em que foi educado até o momento através das contingências. Ainda existem esperanças: educação importante do homem.” (Vol. II, Considerações não atuais).

No pensamento da educação do super-homem surge a idéia juvenil de Nietzsche que “o escopo da humanidade está nos seus mais altos exemplares” (ou como ele diz mais claramente em Schopenhauer como educador: “a humanidade tem que trabalhar continuamente para educar homens grandes, individualmente — este é o seu problema que não outro”). Porém os ideais apontados como maiores não são mais, agora, indicados como tipos mais altos da humanidade. Não, sobre este futuro ideal desta futura humanidade o super-homem, o poeta ainda estendeu o véu do futuro. Quem pode saber até que esplendor e que altura se elevará! Por isso o poeta em Zaratustra exclama apaixonado, após haver examinado o nosso maior conceito ideal, o do Redentor, segundo o novo valor da medida:

“Jamais existiu um super-homem. Eu os vi ambos, o homem maior e o homem menor: “Ainda se parecem demais um com o outro. Na verdade, até o maior, achei-o — humano demais!”

“Educação do super-homem” esta expressão foi mais de uma vez subentendida. A palavra “educação” significa: transformação através de novas e mais altas avaliações, que devem reinar sobre a humanidade quais condutores e orientadores do modo de agir e da concepção da vida.

O pensamento do super-homem deve mais ser entendido justamente só em conexão aos demais ensinamentos do autor de Zaratustra: o ordenamento hierárquico, a vontade de poder, e a inversão de todos os valores. Supõe ele que, pelo ressentimento de um cristianismo débil e falsado, tudo quanto era belo, forte, soberbo, poderoso — como as virtudes provenientes da força — tenha sido prescrito e banido e que por isso hajam diminuído muito as forças que promovem e levantam a vida. Mas agora uma nova tabela de valores deve ser imposta à humanidade, ou seja o homem forte, poderoso, magnífico até o seu ponto mais excelso, o super-homem que nos é agora apresentado com transtornante paixão como escopo da nossa vida, da nossa vontade e da nossa esperança.

E como o antigo modo de avaliar que apreciava como sumidades apenas os débeis, os sofredores, os caracteres moderados e sucumbentes, era necessariamente seguido de uma humanidade débil, sofredora, moderna; assim o novo modo oposto de avaliar (que se resume na existência: tudo quanto nasce da força é bom, o que nasce da debilidade é mau) deve apresentar um tipo robusto, sadio, vigoroso, contente de viver e uma apoteose da vida.

Não é porém esse tipo uma imagem, a esperança de um porvir nebuloso e indistinto, ainda distando milhares de anos, não é uma nova espécie darwinística da qual nada se pode saber e sobre a qual pesa quase uma futilidade mesquinha, mas deve ser uma possibilidade atingível pela humanidade presente com todas suas forças espirituais e corporais e atingida através das novas avaliações.

O autor de Zaratustra lembra aquele terrível exemplo da inversão de todos os valores: através do cristianismo pelo qual o inteiro mundo grego divinizado, a orientação grega do pensamento e a galharda romanidade, foram, num tempo relativamente curto, quase destruídos ou transformados.

Não se poderia agora evocar esta medida renovada greco-romana dos valores, espécie de inversão, tornada mais sutil e profunda por uma escola bimilenária de idéias cristãs, e tornar a chamá-la em um tempo para nós mensurável, até que surja aquele magnífico tipo humano que deve ser a nossa nova fé, a nossa nova esperança, e que somos chamados a preparar através de Zaratustra?

Emprega o autor nas suas anotações particulares a palavra “super-homem” (geralmente no singular) como designação de “um tipo perfeito”, em oposição ao “homem moderno”; mas indica principalmente o próprio Zaratustra como tipo do “super-homem”. No “Ecce Homo” esfalfa-se por nos dar clara idéia do precursor e das condições necessárias a este tipo que nos domina, enquanto na “Gaia Ciência” diz: Para compreender este tipo, antes do mais, se deve apresentar clara a sua pressuposição fisiológicai: esta é a que chamo grande saúde. Não sei iluminar melhor nem mais pessoalmente este conceito do que o fiz já num dos parágrafos de encerramento (af. 382) do quinto livro de Gaia Ciência.

“Nós, gente nova, sem nome, mal compreensíveis — reza um texto — nós, seres de um porvir ainda desconhecido, precisamos, para um novo escopo, também de um novo meio, isto é, de uma nova saúde, mais forte, sagaz, tenaz, ousada, mais afoita do que hajam sido as saúdes até agora.

Aquele cuja alma tem sede de experimentar o círculo inteiro dos valores e das maravilhas até hoje e de navegar ao redor de todas as costas deste ideal “mar interno“, aquele que das aventuras da própria experiência quer saber qual a coragem de um conquistador e de um escultor do ideal, como de um artista, de um sábio, de um legislador, de um douto, de um piedoso, de um asceta de velho estilo: carece este, antes do mais, da grande saúde — tal qual não só se possui, mas que também continuamente se conquista e se deve conquistar, porque está sempre a dar e é a que deve dar.

E agora, após que nos distanciamos tanto, nós, argonautas do ideal, mais corajosos do que seja razoável e bastantes vezes náufragos e em condições más, perigosamente sadios, parece-nos que, por prêmio, tenhamos uma outra terra inexplorada à nossa frente, uma terra cujos confins jamais alguém avistou, um além de todos os países e recantos do ideal tidos até hoje, um mundo tão exuberante de belo, de estranho, de coisas misteriosas, temíveis e divinas, que a nossa curiosidade e o nosso desejo de posse são transportados para fora de si, — ah! como doravante nada mais nos satisfaz!

”Como poderíamos nós, depois de tal olhar, com tal fome ardente no cérebro e na consciência, contentarmo-nos ainda com o homem atual? Bastante mal: porém é inevitável que lhe aguardemos as esperanças e as suas metas mais dignas com uma seriedade difícil de sustentar, embora até nem mesmo as guardemos.

Temos à nossa frente outro ideal, um ideal maravilhoso, tentador, cheio de perigos, ao qual não poderíamos persuadir ninguém, para que não outorguemos a alguém assim facilmente o direito: o ideal de um espírito que ingenuamente, isto é, involuntariamente e por exuberância e força impetuosa, se divirta com tudo quanto se chamou até hoje santo, bom, intangível, divino; pelo qual a coisa mais alta em que o povo acha a bom preço a medida do próprio valor, ou seja perigo, decadência, humilhação, ou pelo menos alívio, cegueira, significariam esquecimento temporário de si; o ideal de bem-estar e bem-querer humanos e sobre-humanos, que muitas vezes parecerá não humano; por exemplo quando se defrontarem a total seriedade terrena que se teve até o momento, as solenidades de atitudes, as palavras, o som, a moral, a tarefa como a sua paródia involuntária e visível — com a grande seriedade e esta se erigir, põe-se enfim o ponto de interrogação, evola-se o destino de uma alma, o bisturí se move, a tragédia começa...”

Embora a figura de Zaratustra e grande parte dos pensamentos principais dessa obra possam ser achados muito antes nos sonhos e nos escritos do autor, “Assim falava Zaratustra” nasceu, no entanto, em Sils-Maria em 1881, e o que induziu Nietzsche a exprimir em dizeres poéticos o novo ciclo de idéias foi o pensamento do eterno retorno.

No outono de 1888 meu irmão escreve exatamente nos seus esboços autobiográficos ditos “Ecce Homo” como isso lhe surgiu à mente: “A concepção fundamental da obra, do pensamento do eterno retorno, esta mais elevada forma de afirmação que possa ser atingida — pertence a agosto de 1881: é lançada sobre um papel com a menção: “6000 pés além do homem e do tempo”.

Fui aquele dia ao lago de Silvaplana entre os bosques e me detive junto a um robusto tronco piramidal. Ocorreu-me então este pensamento. Se me reporto a dois meses antes dessa data, acho, como indício, uma transformação improvisada e muito firme do meu gosto principalmente pela música.

Pode-se considerar, talvez, Zaratustra inteiro como obra musical; certamente foi um como renascimento artístico, uma premissa. Num pequeno lago alpino junto a Vicenza, onde passei a primavera de 1881, juntamente com meu mestre e amigo Peter Gast, também este um “ressuscitado”, descobri que a fênix música nos voava à frente com penas velozes e esplendentes, como nunca no passado.”

Entre começo e fim de 1881 surge a decisão de deixar anunciar pela boca de Zaratustra, com palavras de hino e ditirambo, a doutrina do eterno retorno. Achamos de fato, entre os seus papéis, uma folha escrita naqueles dias que nos põe claramente sob os olhos aquele primeiro esboço de “Assim falava Zaratustra”.

“Meio-dia e eternidade.” “Aceno de uma vida nova.

Abaixo vem escrito:

“Zaratustra, nascido junto ao lago Urmi, abandonou pelos trinta a sua pátria, esteve na província de Ária e compôs nos dez anos de sua solidão entre montanhas o Zend-Avesta”.

O sol do conhecimento está de novo no zênite; e em redor está a serpente da eternidade na sua luz — é a vossa hora, vós irmãos do zênite”.

Aqui estão as seguintes notas:

“Para o projeto de um novo modo de viver.

Primeiro livro: No estilo da primeira frase da nona sinfonia. Chaos sive natura: “Do desumanamento da natureza”. Prometeu chegar acorrentado ao Cáucaso. Escrito com a crueldade do “c r a t o s”, do poderio.

Segundo livro: Fugitivo, cético, mefistofélico. “Da incorporação das experiências”. Conhecimento-erro que se torna orgânico e organizante.

Terceiro livro: O mais íntimo e mais etéreo que jamais fosse escrito: “Da última felicidade do solitário” — o qual de pertencente a outros se tornou “patrão de si mesmo” no grau mais elevado: o perfeito ego: só este ego possui amor; nos primitivos degraus onde não chegou a solidão e o maior domínio de si, algo há que difere do amor.

Quarto livro: Ditirambo-maior: “Annulus aeternitatis”. Anseia por viver todo mais uma vez e vezes eternas. A perene transformação: deves penetrar em breve espaço de tempo em muitos indivíduos. O meio é uma luta contínua.

Sils-Maria, 26 de agosto de 1881.”

Naquele verão de 1881, o meu irmão novamente se sentiu, após muitos anos, mais débil e pior que um convalescente, e na plena sensação de sua precedente e ótima saúde não só nasceu a “Gaia Ciência”, — que pela sua entoação deve ser considerada um prenúncio de Zaratustra, mas a própria obra de Zaratustra. Um destino cruel quis que, exatamente ao tempo da sua cura, lhe sobreviessem muitas dolorosas experiências pessoais.

Sofreu profundas desilusões na amizade que considerava tão alta e sagrada e sentiu, pela vez primeira, em todo o horror, aquela solidão a que é condenado todo grande. É o abandono algo que difere por completo da solidão voluntária e beatificante. Como desejou então o perfeito amigo que o compreendia plenamente, ao qual podia dizer tudo e que julgava ter achado desde a primeira infância e nos diversos períodos da sua vida!

Mas agora que a sua trilha ia ficando cada vez mais íngreme e perigosa não achava mais ninguém que pudesse andar com ele; assim criou para si na figura ideal do filósofo real o amigo perfeito, e fez com que este anunciasse os intentos mais altos e mais sagrados.

Perguntar se, sem as experiências amargas do tempo de intervalo, ele teria levado a efeito o primeiro esbôço de “Assim falava Zaratustra” no verão de 1881, e se neste haveriam dominado aquelas tonalidades de alegria que reconhecemos no esquema, é agora pergunta ociosa.

Porém, talvez possamos dizer com Meister Eckardt, mesmo com respeito ao Zaratustra: “O animal mais veloz que nos conduz à perfeição é a dor.”

Escreve meu mano, quase ao despontar da primeira parte de Zaratustra: “No inverno de 1882-1883 vivi naquele remansoso golfo de Rapallo, não longe de Gênova, que se interna por Chiavari e as elevações de Portofino,

A minha saúde não era ótima; o inverno estava frio e excessivamente chuvoso; a hospedaria pequena dava diretamente para o mar, de modo que à noite se não podia dormir; e eu tinha quase que exatamente o oposto do que teria sido desejável. Apesar disso, e quase a demonstrar a minha frase que toda coisa decisiva acontece “não obstante tudo” foi naquele inverno e naquelas condições desfavoráveis que nasceu o meu Zaratustra.

Pela manhã saí rumo ao sul tomando a estrada magnífica que leva a Zoagli, ladeada de pinheiros e que o mar distante domina; à tarde, mal consentia a minha saúde, dava a volta do golfo de Santa Margarida até Portofino. Ainda mais queridas são para mim esta localidade e esta paisagem pelo amor que lhes teve o imperador Frederico III; no outono, por 1886, novamente estava eu naquela praia quando ele visitou pela última vez aquele pequeno esquecido reino da felicidade. Veiu-me assim em mente por essas razões, todo o primeiro Zaratustra, sobretudo Zaratustra mesmo, como tipo; ou, antes, ele mesmo me empolgou...”

Foi escrita esta primeira parte de Zaratustra em dez dias apenas, do começo a meados de feverero de 1883. “A parte do remate foi justamente ultimada na hora sagrada em que morreu em Veneza R. Wagner”.

Meu irmão designou aquele tempo, com exceção dos dez dias durante os quais escreveu “Zaratustra” como o pior para sua saúde; com isso não entende ele as suas condições precendentes de saúde, mas sim um forte resfriado que o atingiu em Santa Margarida e o oprimiu ainda por muitas semanas em Gênova.

Reportava-se mais ao estado da sua alma, àquele abandono indescritível para o qual achara palavras de dor tão lancinante em Zaratustra. Também a acolhida que teve a primeira parte de Zaratustra entre conhecidos e amigos foi muito deprimente, uma vez que se não sentiu entendido por aqueles a quem a oferecera. “Para muitas coisas que eu havia dito não achei ninguém amadurecido; Zaratustra é uma demonstração de que se pode falar com a maior clareza sem ser entendido por ninguém.”

“Meu irmão ficou muito desalentado com aquela incompreensão; e visto como no mesmo tempo se desacostumara, com grande esforço de vontade, do cloral sonífero, que tinha usado no tempo do resfriado, a primavera seguinte, (1883) que passou em Roma foi antes triste. Nesse particular escreveu: “Passei uma primavera triste em Roma — onde eu ia levando a vida — nada fácil. No fundo magoava-me aquele local indecoroso para a poeta de Zaratustra, que eu não havia escolhido entre os outros de minha dileção; queria ir a Aquila, antítese de Roma, fundada propositalmente por inimizade a Roma como um dia hei de fundar um lugar em recordação de um inimigo comme il faut da igreja, parente meu achegado, o grande Hohenstaufen — imperador Frederico II.

Porém foi destino geral: precisei voltar.

Por fim parei na praça Barberini, após me ter cansado na procura afanosa de uma localidade anticristã. Receio ter perguntado certa vez, para evitar odores desagradáveis, se haveria um quarto sossegado para um filósofo no próprio palácio do Quirinal. Num alpendre, no alto, sobre esta praça de onde se vê a cidade e se ouve o murmúrio da fonte, foi composta aquela canção tão solitária como jamais dantes havia sido ideada, do canto noturno; naquele tempo sempre na fantasia me perpassava uma melodia de tristeza indizível cujo estribilho continuamente eu tornava a achar nas palavras: morto de imortalidade.”

Naquela primavera demoramos um pouco demais em Roma; e sob o influxo do tempo cansativo a oprimir que então chegara, e do desalento a que aludi, meu irmão decidiu de não escrever mais absolutamente, e por forma alguma continuar Zaratustra, embora eu me houvesse oferecido a livrá-lo de todo cansaço quanto à impressão e quanto ao editor.

Mas, quando a 17 de junho voltámos à Suiça e ele viveu novamente ao contato familiar do ar sadio dos montes, despertou-se toda a sua alegre vontade de criação, e escreveu-me acerca de um futuro manuscrito em preparação: “Aluguei aqui para três meses: na realidade sou o maior louco se me deixo desalentar por causa da temperatura italiana”.

De quando em vez aponta-me a idéia: “o que vem depois?” O meu “porvir” é para mim a coisa mais obscura do mundo; como porém muitas coisas devo ainda executar, eu deveria pensar só nelas como no meu porvir e deixar o mais a ti e aos deuses.”

Foi escrita a segunda parte de Zaratustra entre 26 de junho e 6 de julho em Sils-Maria: “Regressando, no verão, ao lugar sagrado onde me fulgiu à mente a primeira idéia de Zaratustra, achei a segunda parte da obra.

Bastaram dez dias; nem me fora necessário mais tempo em caso algum, tanto para a primeira, como para a terceira ou a última parte”.

Muitas vezes falou do estado de arrebatamento em que escreveu Zaratustra, como se fora propriamente assaltado por uma plêiade de pensamentos durante os seus passeios despreocupados, e pudesse apenas tomar, às pressas, alguns apontamentos a lápis, no seu canhenho; apontamentos que, ao regressar, escrevia depois com tinta, até meia-noite.

Diz-me ele em carta:

“Não podes facilmente ter um conceito exato da veemência destas formações”; e descreve com entusiasmo apaixonado, no Ecce Homo (outono de 1883) o incomparável estado de alma em que foi escrito Zaratustra:

“Haverá alguém, no fim do século XIX, que tenha um conceito claro daquilo que os poetas do velho tempo chamavam inspiração? Caso não, quero descrevê-lo. Com uma nesga de superstição realmente apenas se poderia negar a idéia de existir somente incarnação instrumento, médium de forças prepotentes”.

“O conceito de revelação no sentido de que inopinadamente, com indizível segurança e profundidade, algo se manifeste, se faça sentir, e agite e abale, até o mais profundo, simplesmente descreve a consistência do fato. Sente-se — não se procura; toma-se — não se pede que dê; fulgura imperioso um pensamento sem dilação, — jamais tive eu possibilidade de escolha.”

“Um arrebatamento cuja tensão se resolve numa crise de lágrimas, e durante o qual o passo ora involuntariamente treme, ora se torna lento; uma perfeita extrinsecação com a mais distinta consciência de infinitos calafrios sutis e tremores até à ponta dos pés; uma profundidade de alegria na qual o que existe de mais doloroso e mais escuro não age como contraste, mas como uma tinta, exigida e necessária, em tamanha exuberância de luz; um instinto de condições rítmicas estendido sobre o grande espaço das formas (o comprimento, a necessidade de um ritmo mais amplo, é como a medida para a força da expressão, uma espécie de compensação pela sua pressão e sua tensão)”.

“Tudo acontece no ponto culminante, involuntariamente, mas como num furacão de sentimentos de liberdade, de coisas incondicionadas, de poder, de divindade. A involuntariedade das imagens, das similitudes é o fato mais maravilhoso; não mais se tem conceito algum do que seja imagem, similituide, tudo se apresenta como a impressão mais vizinha, mais exata, mais simples. Realmente parece, para lembrar uma palavra de Zaratustra, que as próprias coisas sejam similitudes”:

“Aqui todas as coisas chegam acariciantes à tua palavra e te engodam, pois querem cavalgar sobre teu dorso. Por esta similitude tu cavalgas a essa verdade. Aqui se te revelam as palavras de todo o ser e os escrínios secretos das palavras; toda existência quer aqui transformar-se em palavra, todo porvir quer aprender contigo a falar.” Esta é a minha experiência da inspiração; não duvido que se deva remontar séculos para achar alguém que me possa dizer: é todavia a minha”.

No outono de 1883 meu irmão largou Engadina, e veiu por algumas semanas na Alemanha; no inverno seguinte, 1883-1884, após umas estadias em Stresa, Gênova e Spezia parou em Niza, onde tão bem se deu com o clima, que escreveu a terceira parte de Zaratustra: “Durante o inverno, sob o céu alciôneo de Niza que pela vez primeira em vida eu contemplava, concebi o terceiro Zaratustra — e o terminei.

Um ano apenas, calculado para o trabalho inteiro. Muitos recantos e muitos outeiros desconhecidos de Niza foram consagrados em mim por momentos inolvidáveis; aquela parte decisiva que traz o título de “Das tábuas velhas e das novas”, foi pensada durante a cansativa saída da estação para os maravilhosos ninhos rochosos mouriscos de Elz.

A agilidade dos músculos era sempre maior em mim quando mais rica fluía a força criadora. O corpo é entusiasta, deixemos ficar a alma... Podia-se ver-me freqüentemente a dançar; então podia eu passear nos montes durante sete, oito horas sem qualquer sinal de cansaço, dormia bem, ria muito —, gozava de paciência e vigor perfeitos.”

Cada uma das três partes de Zaratustra nasceu assim depois de uma preparação mais ou menos longa conforme já disse, em dez dias aproximadamente. Somente a última parte foi composta com algumas interrupções. Os primeiros apontamentos foram escritos durante uma estadia costumeira em Zurich em setembro de 1884; logo continuei uma primeira elaboração em Mentone, em novembro de 1884, e, após uma pausa mais longa, foi o manuscrito terminado entre fins de janeiro e meados de fevereiro de 1885, em Niza.

Intitulou-se então o meu mano “quarta e última parte”; mas já antes da publicação privada, e pouco tempo após, escrevia-me que desejava compor uma quinta e uma sexta parte, sobre o que todavia existem dispositivos.

Nesta quarta parte (em cujo manuscrito pronto para o prelo existe a nota: “Para os meus amigos somente, não para a publicidade”) ele a considerava como algo de inteiramente pessoal, e impunha, aos poucos a quem presenteou com um exemplar, o mais estrito sigilo.

Muitas vezes pensou se seria oportuno publicar também esta quarta parte, mas julgou não o poder fazer sem mudar com antecedência alguns tópicos. Em todo caso, destinou os quarenta exemplares de quarta parte, impressos, do manuscrito inteiro, como presente para “aqueles que para tanto lhe fossem beneméritos”. Com esse critério só teve aso para dar presente sete exemplares — tanto era então solitário e incompreendido.

Já no princípio da origem desta história adotei as razões que impeliram meu irmão ai incorporar em um persa a figura ideal do seu real filósofo; mas porque deva ser exatamente Zaratustra aquele em cuja boca as suas novas doutrinas, ele mesmo no-lo diz nas seguintes palavras:

“Não se me perguntou e dever-se-ia ter-me perguntado, o que é que, exatamente no meu falar, no falar do primeiro imoralista, o que significaria o nome de Zaratustra: uma vez que o que estabelece a espantosa unicidade daquele persa na história é exatamente o contrário. Zaratustra viu por primeiro a verdadeira roda do mecanismo das coisas, na luta do bem e do mal — a tradução da moral na metafísica como força, causa, escopo em si, é obra dele. Porém, fundamentalmente, esta pergunta em si já seria a resposta. Zaratustra criou este erro fatalíssimo, a moral.

Deve ser, por conseguinte, também o primeiro a reconhecê-lo. Não só que tenha aqui uma experiência mais longa e maior do que jamais teve pensador algum — a história inteira é a confutação experimental da frase da assim chamada “orientação moral do mundo”: — porém o mais importante é ser Zaratustra mais verdadeiro do que todos os pensadores.

A sua doutrina, e esta somente, tem como virtude mais alta a veracidade — se opõe à vileza do “idealista”, — que foge ante a realidade; Zaratustra tem mais valor, quanto à consistência, do que todos os pensadores juntos. Dizer a verdade e arremessar bem as flechas é esta a virtude persa. Compreendem-me... O triunfo sobre a moral por causa da verdade, o triunfo sobre o moralista nas suas antíteses — em mims — isso na minha boca significa Zaratustra”.

Arquivo Nietzsche. — Weimar, julho de 1910.

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sábado, abril 11, 2009 - 01:27

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