NOS OLHOS DA MINHA MÃE

Os olhos da minha mãe são janelas
Entreabertas e de cortinas esvoaçantes
Na brisa morna de trementes cansaços
Cá fora estou eu arrastada no turbilhão
Dos anos que me pisaram
E no corpo, imprimidas deixaram
As pesadas linhas dos seus passos
Ao largarem vendavais no brando curso
Do rio onde meus sonhos iam desaguar

Já não me encontro debruçada do parapeito
A sentir ao longe a vida a gotejar
Estou parada a olhar as janelas que abanam
Ao leve sopro da respiração cadente
Do peito magro da minha mãe
E no compasso do seu desordenado pestanejar

Lá dentro, por detrás das cortinas
Arrumados com amor
Nas prateleiras poeirentas
Sobre os cadeirões desengonçados
Nas gavetas com cheiro a lavanda
Repousam à minha espera
Os bibes, os laços, os cuidados
Os cisnes a nadar nos lagos
O pardal aos saltos na varanda
O dói-dói sarado com beijos
A febre alta, o presépio, a chaminé
A saia rodada, os risos, os afagos
O pião já gasto de muito rodopiar
O ursinho, a boneca, o bebé
Na sombra, esconde-se o medo
O algodão fofo e doce da feira
Nas mãos pequeninas e lambuzadas
Um balão preso com guita ao dedo
A sineta da escola a badalar
O carrossel veloz numa tonteira
O relógio no seu tiquetaque ritmado
O papão dentro do armário a espreitar
Tantas memórias de um feliz passado.