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Cinzas
Os ramos rasgavam-lhe a carne, ardente se tornava na absorção dos seus suores, lancinantes dores que lhe percorriam a alma enquanto corria pela selva densa na noite cerrada, no meio dos sons de pele a romper apenas distinguia a sua respiração, selvagem e ofegante, bombardeada pelo coração cansado da corrida e aterrorizado com uma possível paragem, nas narinas sentia o cheiro nauseabundo dos corpos carbonizados.
E as cinzas desfaleciam dos céus. Eram presságios da ausência de presságios, o fim eminente de não existir um começo, bailavam desde o cume das escuridões até à verdejante envolvência, as tonalidades de cinzento cresciam com o tempo, e as trevas enegreciam. Sentia medo de não mais vir a sentir medo, o fim que existiu poderia ser o seu, e as memórias, meras memórias, poderiam vir a ser as cinzas que ousassem cair de outras escuridões.
Seguia na direcção do seu instinto, da sua paranóia, o esconderijo perfeito seria a miragem mais fabulosa da sua vida, a temeridade se contentaria com a imperfeição, o pânico com a hipótese remota de não vir a sucumbir no meio das cinzas, de tudo o que deixara de ser seria o mínimo, a réstia de esperança que desaparecera onde deveria pertencer. Estavam todos mortos. As artes estavam em cinzas. Os monumentos em pedras soltas moribundas. Os livros em agonias nas chamas. Apenas todas as memórias eram dele, as de todos, poderiam em breve ser as de ninguém, nem as trevas se importariam em contá-las aos ventos, suprema aniquilação.
Um arauto de possibilidade invadiu-lhe as entranhas, um fio de ar fresco penetrou-lhe na pele desfeita e suada, emergia uma caverna subtil entre as folhagens, escondida pelas intempéries de toda a envolvência, a fuga, a esperança, a réstia da vivência. Esbracejou tentando desobstruir a entrada, tentando discernir minimamente a estranha reentrância, ela existia, entrou sofregamente, assim poderia ele também existir, as memórias dos que já não tinham memória também. Camuflou o melhor que conseguiu a entrada, entre laivos de fúria, lágrimas de tristezas passadas e futuras, entre terrores lancinantes. Pareceu-lhe bem camuflado o esconderijo, entre receios atrozes de sensações de se sentir a céu aberto, indefeso, nu, sujeito às iras dos demónios, os passos no exterior decidiram-lhe a mente, avançou rastejantemente para dentro da caverna, o mais rápido que conseguiu, tentando abafar a sua ofegância, os seus gemidos, os seus espasmos de dor, os seus movimentos.
As memórias dilaceravam-lhe a mente, os estridentes gritos da sua família a carbonizar rasgavam-lhe o cérebro, ensopavam-lhe ainda mais os olhos. E os seus filhos, despedaçados pelas iras dos demónios cinzentos, como o seu coração se sentia em agonia profunda, lacrimejando torrencialmente nas suas entranhas. E como se sentia um covarde, o único que havia fugido da aldeia, enquanto todos os outros lutavam contra o impossível, contra as bestas das cruzes, contra as canas que cuspiam morte nos sons das explosões, tudo era inútil, a fuga era a única fuga, e a covardia a sua derradeira arma de afronta, como os deuses deveriam estar furiosos com as suas acções, como eles o arranharam na sua fuga esperando a clemência e arrependimento, e embora os sentisse, não iria voltar atrás, para a morte, para a sua e para todas as das memórias dos seus, elas viviam na sua mente, as crianças brincalhonas com as penas de Coatl, as mulheres dançantes nas festivalidades dos Fogos Novos, as apoteoses com os cogumelos dos deuses, nas pinturas dos mais fúteis pormenores existenciais, nos amores entre vários corpos entregues às luxúrias dos deuses, as imagens percorriam-lhe a mente rapidamente, como que tentando nunca ser esquecidas, e de fundo cantavam as sonoridades dos pássaros ao ritmo dos tambores.
Parou por instantes, o corpo sucumbia às angústias e ao cansaço, a mente implorava por paz e repouso, a alma por existência, e tudo assim surgiu quando se deitou, a exaustão vencera, e não lhe pareceu que valesse a pena a continuação do rastejamento, não sabia onde estava, apenas a totalidade da escuridão o cercava, e os gemidos das chuvas, dos ventos, dos seres das profundezas.
Nada mais poderia fazer, mesmo que conseguisse fazer algo, a sorte ou os infortúnios não estavam nas suas mãos, nem sequer as flechas e o arco com que costumava andar, talvez perdidos na sua fuga, nem a adaga da sua sandália, certamente teria perdido as sandálias na sua desenfreada corrida, nada que fizesse falta, nada que conseguisse parar as explosões uivantes e dilacerantes das canas dos demónios cinzentos, nem tão pouco as suas fogueiras, muito menos os seus instintos sanguinários e demoníacos, apenas a espera seria a solução.
Nos curtos momentos em que conseguiu pensar vislumbrou um sono pela extenuação completa em que se encontravam o seu corpo, mente e alma, alusões rapidamente esquecidas quando sentiu a cair em si a cinza. Mesmo na escuridão perfeita sabia qual o tacto da cinza, qual o seu sabor na boca, qual o seu cheiro nauseabundo, e ela caía sobre si vorazmente, enquanto o pânico voltava às suas entranhas em multiplicações tenebrosas. Soltou gemidos e sentiu suores frios entre os suores ardentes da sua pele, e mais intensamente bramiu quando sentiu a respiração grave no seu ouvido direito. Várias mãos o agarraram e uma tapou-lhe os sons de terror que botavam da sua alma. A respiração no seu ouvido direito continuou, até proferir estranhos sons.
― Nem as memórias nos escapam, as trevas terão um fim, e no fim estás tu, ninguém mais...
Nada compreendeu, mas soube que as chamas dos demónios cinzentos iriam crepitar em si.
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Comentários
Re: Cinzas
Texto bem escrito em dom da palavra!
:-)